ontem & hoje

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As minhas memórias do parque caldense remontam a meados dos anos 50, uma vez que estava próximo da casa onde residia sendo um atractivo bastante forte para qualquer criança ou jovem.
O parque significava o lago, os jardins com belos arranjos florais, as avionetas, o ringue de hóquei em patins, os barcos, o parque infantil, os patos e os pombos, o pavilhão onde estava a vida de Cristo do Bordalo Pinheiro. O Museu Malhoa para as crianças naquela época estava muito longe de qualquer propósito de visita. Era como um templo sagrado…
Dos pavilhões do Parque apenas me lembro da Biblioteca Municipal, onde nos anos 50 e 60 as crianças da minha idade procuravam as enciclopédias onde se podiam ler palavras menos próprias para a idade.
Perto da biblioteca havia a sala da Banda de Comércio e Indústria, onde ainda no início dos anos 60 me tentei exercitar nos dons musicais, com um rotundo fracasso. O solfejo foi a barreira que nunca consegui ultrapassar. Mas lembro-me dos sons que provinham do interior dos pavilhões, especialmente nas noites de ensaio.
Na primeira fotografia também se vê o edifício mais antigo do Salão Ibéria, que a memória não me permite vislumbrar. Para mim o Salão Ibéria já teve outro visual, menos pomposo, apesar de também não ter tido melhorias muito grandes em relação à versão inicial.
O primeiro filme que me levou ao Salão Ibéria foi a Música do Coração, uma fita musical melodramática rodado em 1965, mas de forte conteúdo anti-nazi que me impressionou fortemente e que, como todas as crianças, provocou intenso choro. A história romanceada mas verdadeira da família Von Trapp, as belas paisagens da Áustria, a ironia da trama que se desenrola naquela fita em que sobressai Julie Andrews, os pecados das freiras para salvarem aquela família da perseguição nazi, bem como a traição arrependida do namorado da Agathe von Trapp, arrebatavam todos os espectadores. A fuga final em direcção às montanhas da liberdade na Suíça permanecia depois na memória por longo tempo. Para quem teve de fazer o mesmo a partir de Portugal anos depois via-se a viver o mesmo drama salvador.
Não me recordo se o regime salazarista havia feito alguns cortes de cenas que pudessem envolver críticas ao seu alinhamento ideológico com o regime de Hitler, mas não me recordo que o filme – que recebeu o Óscar de melhor filme de Hollywood em 1966 – constituísse qualquer momento de contestação ao regime. Para mim aqueles momentos tão idílicos só me levaram a defender, quando chegou a época das visitas de estudo no Instituto Comercial que frequentava em Lisboa, a propor como destino a Áustria e a não perder uma ida a Salzbourg para visitar o palácio onde o filme havia sido rodado.
Ao longo dos anos e até hoje, os pavilhões estiveram sempre na memória dos caldenses, apesar de continuadamente se virem a degradar. Construídos no âmbito de um projecto que nunca foi muito bem deslindado por Rodrigo Berquó, nos finais do séc. XIX, passou depois por quartel do Regimento de Infantaria 5, por sede de colectividades, escola primária, escola secundária, escola do Magistério Primário, escola de Polícia. Para tudo, enfim, aquele edifício serviu, quando nas Caldas era preciso criar algo de novo e que necessitasse de instalações.
Evidentemente que durante muitos anos alguns dos serviços de apoio ao Hospital Termal por ali passaram. Mas para mim uma das utilizações que mais me retém a memória foi das instalações do CCC – Conjunto Cénico Caldense, onde se realizaram espectáculos inesquecíveis, que eram espaços de liberdade num tempo em que poucos se podiam dar a esse luxo, arrostando com as consequências desses actos. Recordamos espectáculos teatrais, de dança, musicais, debates que trouxeram a Caldas alguns dos nomes mais importantes da literatura, crítica, música, teatro, etc.
O CCC pagaria também caro esse arrojo, uma vez que no início dos anos 70, perante o protesto nacional de alguns nomes da cultura portuguesa, viu fechadas as suas instalações com razões esfarrapadas que tudo justificavam.
Mesmo assim e naquele tempo foi possível abrir alguns meses depois uma nova sede num armazém no centro da cidade, perante a raiva dos alinhados com o regime.
Se há uma imagem da cidade que para nós tem um significado profundo e fortemente representativo de uma época da história recente do país e da cidade será essa que se apresenta em dois momentos separadas por um século.
Provavelmente os Pavilhões do Parque vivem com uma maldição original, facto que hoje os deixa em risco permanente de ruírem. Tal se deverá, provavelmente, a que para muitos dos actuais responsáveis pelas decisões locais eles lhes digam muito pouco. Ou são jovens ou, se mais idade tiveram, nunca viveram as dinâmicas das colectividades e outras instituições que ali estiveram sediadas.
Para mim, nenhum dos recentes projectos têm grande significado ou viabilidade, como da sua utilização como Hotel, para a instalação de um Museu “Nacional” da Cerâmica, ou mesmo para clínica termal. Certamente, os pavilhões teriam como melhor destino serem reconstruídos e adaptados a espaços criativos e de empreendedorismo em actividades ligados às indústrias culturais, verdadeiro modelo de incubação de negócios para o séc. XXI, a exemplo do que se faz noutros países e mesmo noutras cidades portuguesas onde a visão e a motivação dos responsáveis parece mais rica.
Poucas cidades conseguem reunir um conjunto arquitectónico num local tão privilegiado com tão grande potencial. Por cá pouco se faz com o muito de que se dispõe. E são muitas as vezes que se prefere fazer obra nova a reconstruir-se o que melhor há.

JLAS

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