“Pelo S. Martinho vai à adega e prova o vinho”. O ditado é antigo e a tradição continua a manter-se. Gazeta das Caldas falou com alguns produtores, da Ramalhosa (Alvorninha) e do Salgueiro (Bombarral) que por esta altura provam o vinho novo, resultante das uvas vindimadas em Setembro. Normalmente, este ritual é partilhado por familiares e amigos, saboreando a bebida com outras iguarias do Outono.
Adensava-se a tarde de S. Martinho (11 de Novembro) quando os amigos de António Morais chegaram à sua porta, na localidade da Ramalhosa, com um único propósito: provar o vinho novo, resultado da vindima de Setembro. A prova veio comprovar o que já esperavam: “está muito bom!”, conta o agricultor à Gazeta das Caldas.
Este é um ritual que acontece todos os anos e António Morais, de 77 anos, recorda que já o encontrava na casa do avô, também ele agricultor e produtor de vinho. A prova é feita, mas este ano o vinho ainda precisa de “aclarar” mais, pois tem feito pouco frio. Quer isto dizer que está bom no que respeita ao sabor, mas que ainda precisa de mais algum tempo de repouso nos reservatórios para que as partículas que lhe causam a falta de transparência se depositem no fundo.
Este agricultor da Ramalhosa já chegou a produzir à volta de 25 mil litros de vinho, que vendia a um armazenista de A-dos-Francos. Mas com o avançar da idade tem vindo a diminuir a produção. Este ano tem cerca de 3000 litros, que serão gastos entre família e amigos. “As vinhas ficaram velhas e serão arrancadas”, conta o produtor. Mas já tem terreno lavrado para colocar alguns pés de videiras novas para continuar a fazer vinho, para consumo de casa.
Ao longo de todos estes anos de trabalho, muitas foram as alterações que foi encontrando na produção do néctar dos deuses, desde logo na selecção das castas e nos depósitos para a sua conservação. “Antes eram barris de madeira, depois vieram os depósitos em cimento e agora as cubas de inox”, inovações que António Morais vê como melhorias no caso da higiene.
Outra das alterações é ao nível do bagaço, que é a massa vínica que resulta da retirada do sumo da uva. Antes este era aproveitado e entregue a destilarias, que lhe extraiam o álcool restante para fazer aguardente. Agora, a legislação em vigor não o permite e o bagaço é aproveitado para dar de comer às ovelhas e para estrumar a terra.
Para ter um bom vinho são precisas boas uvas. Mas o que faz as uvas serem boas? De acordo com António Morais, é a combinação do tempo com o crescimento do fruto. “A uva amadurece muito bem é com orvalhos e sol”, conta, dando nota que o vinho que produziu este ano andará na casa dos 13 ou 14 graus de teor alcoólico.
Apesar de considerar o vinho como bom, a produção foi baixa, pois as videiras sofreram os efeitos de várias pragas ao longo do ciclo de crescimento da uva. “Estragou-se muita uva ainda em pequena e tive que fazer bastantes tratamentos na vinha”, recordou.
Há vários anos que a sua vindima é feita só com reformados. Este ano, perto de 20 amigos juntaram-se e ofereceram-se para trabalhar na colheita, tendo apenas como recompensa pelo trabalho levarem algum vinho. “Por vezes levam logo em mosto e fazem água-pé e vinho, outros vêm cá depois e levam o vinho novo”, contou o septuagenário que na sua vinha de cerca de um hectare tem as castas Fernão Pires, Roriz tinto, Cruzado de Sete e Castelão branco.
António Morais só faz vinho tinto. As uvas brancas junta-as com as tintas para dar cor, “apurar mais o vinho e ajudar no grau”.
A nova geração de produtores
A escassos metros da casa de António Morais vive Lucas Francisco, de 16 anos. Também segue os passos de uma família de agricultores e produtores de vinho. A frequentar o primeiro ano de Técnico de Produção Agropecuária (equivalente ao 10º ano) na Escola Profissional de Agricultura e Desenvolvimento Rural de Cister (EPADRC), em Alcobaça, o jovem ocupou-se este ano, pela primeira vez, da vindima do avô por este estar doente.
“Sempre gostei muito da agricultura e acompanhava sempre o meu avô, com quem aprendi muitas coisas”, conta Lucas Francisco, que contou com a ajuda dos pais nesta experiência vínica.
Os mais de quatro hectares de vinha na Ramalhosa foram começados a vindimar a 24 de Setembro e o vinho ainda não foi aberto. O Inverno prolongado atrasou a rebentação da planta, explica à Gazeta das Caldas.
A prova normalmente é feita pelo S. Martinho mas como o processo de maturação do vinho está um pouco atrasado, o jovem estima que este esteja pronto dentro do próximo mês.
É o tio quem faz as provas e “disse que ainda não estava bom”, refere Lucas Francisco, acrescentando que o vinho ficará mais algum tempo em repouso, também para aclarar. Depois será vendido a um armazenista.
O futuro agricultor explica ainda que este ano houve muitas pragas na vinha, o que levou a uma quebra na produção. Ainda assim estima que produzam cerca de 10 mil litros de vinho tinto, resultante das castas Periquita, Roriz e Castelão (branco). O teor alcoólico anda nos 13 graus.
Embora os pais não sejam agricultores, Lucas Francisco gostaria de se dedicar à terra. “A vinha e a fruticultura são a minha preferência e um dia gostaria de inovar nestas áreas”, contou.
Antes percorriam-se as adegas
João Soares tem 64 anos, é natural do Salgueiro (Bombarral) e produz vinho desde que se lembra, pois é um hábito que já havia na sua casa paterna. E é sempre por esta altura “que se abre a pinga”, que este ano tem entre os 13 e os 15 graus de teor alcóolico. Produz cerca de 2000 litros de vinho tinto para seu consumo próprio e de amigos, mantendo-se como um dos três produtores daquela aldeia.
O que produz nas suas vinhas, vende para a cooperativa. Hoje produz entre as 15 e as 20 toneladas de uvas, mas já produziu 60 toneladas.
Actualmente João Soares produz tantas toneladas de pêra como de vinho. Só que diz que é mais fácil lidar com as uvas pois pulveriza-se com sulfato e enxofre, e faz-se um tratamento para a lagarta não atacar.
João Soares recordou que houve uma altura em que se arrancaram vinhas para plantar pereiras e hoje “já estamos a fazer ao contrário”. As pereiras precisam de mais cuidados, é preciso andar sempre de olho nelas e a providenciar tratamentos.
Antigamente, no tempo do pai, o vinho era colocado em cascos de madeira que agora foram substituídos por cubas de inox e de plástico. A venda era feita a comerciantes enquanto que agora as uvas vão directamente para a cooperativa. “Vinham levantar as amostras para analisar o vinho e depois ofereciam o dinheiro”, explicou. Há cerca de 30 anos começaram as cooperativas, o que veio ajudar os produtores, pois estabilizou mais os preços. Por exemplo, antes pagava-se consoante o grau que o vinho possuía, enquanto que agora vende a uva ao quilo, a 12 ou 13 cêntimos.
“Sou do tempo em que se vendia por 1800$00 (8,97 euros) cada medida de vinho [20 litros]”, explicou João Soares acrescentando que está também a apostar na plantação de novas castas que, além de bem pagas, enriquecem posteriormente o vinho. “Tenho moscatel, que este ano possui muito bom grau”, disse.
E o que acompanha o vinho no magusto? Não podem faltar as castanhas assadas, o chouriço assado, frutos secos, azeitonas, tremoços, pevides e pão caseiro. Além do vinho, também se saboreia a água-pé. Esta, para ser boa, “tem que se deixar ferver a água com o desperdício dos cachos, de modo a ficar com um paladar mais gostoso”, explicou o produtor.
João Soares produziu à volta dos 300 litros de água-pé. “A branca é melhor, mas eu este ano fiz tinta”, explicou. Hoje, como dantes, os convívios do S. Martinho são feitos à volta da mesa, se bem que no tempo do seu pai a tradição era outra. Aos domingos percorriam-se as adegas de uns e outros da aldeia. “É preciso não esquecer que antes não havia carros para sair como hoje”, disse João Soares, que quer manter a tradição ligada à produção do vinho e à celebração do magusto, entre familiares e amigos.


































