ANTÓNIO XAVIER – “Ser comerciante é ter tido uma vida de trabalho”

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84 ANOS, CASADO, 2 FILHAS e 4 netos

notícias das Caldas
Durante 42 anos foi aqui o meu local de trabalho onde eu era patrão de mim próprio | JOEL RIBEIRO

Era aqui a minha mercearia. Foram 42 Anos aqui passados, numa vida cheia de rotinas: abrir às 8h00, fechar às 13h00 para almoçar, reabrir às 15h00 e fechar às 19h00. Os dias todos iguais, mas ao mesmo tempo todos diferentes. Quarenta e dois anos nos quais conheci três gerações de clientes: os avós, os pais e os netos.
Mas isto agora está tão diferente. A minha mercearia agora é um café e o Largo Heróis da Naulila não tem nada a ver com o que era no meu tempo. Isto era quase uma família. Havia as bombas de gasolina da BP, o Marinto, o Duarte Xavier que vendia fazendas, a Ribatejana, a Pensão Irmãos Unidos, a pensão do Emílio Rosa, o pessoal do Thomaz dos Santos que também aqui vinha. Outros tempos. Agora tudo mudou e até compreendo que as pessoas façam as compras nos grandes supermercados.

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Nasci em 27 de Agosto de 1931 no Bairro da Ponte e apesar de o meu pai ter pensado noutros voos para mim – queria que eu tirasse um curso – o meu destino estava marcado para ser comerciante. Pois se praticamente nasci atrás de um balcão!… O meu pai, a quem chamavam o Zé Coradinho, tinha uma padaria com fabrico próprio, uma mercearia e uma taberna, e desde miúdo que comecei a ajudá-lo no negócio.
Confesso que não gostava muito da taberna. Aquilo eram bêbados logo de manhã a matar o bicho e a beber copos de três. Eu preferia a mercearia que, naquele tempo, praticamente só vendia bens essenciais: a massinha, o arroz, o azeite, o petróleo para iluminação e pouco mais. Não havia detergentes, nem cosméticos, nem iogurtes, nem cereais, nem bolachas, nem enlatados, nem refrigerantes, nem uma quantidade enorme de produtos que só mais tarde se tornaram correntes nas mercearias das Caldas.
Para mais o Bairro da Ponte nos anos quarenta era uma zona muito pobre, quase miserável. As pessoas mal tinham dinheiro para comer e no tempo da II Grande Guerra – eu era miúdo -, mas lembro-me bem que chegou a haver senhas de racionamento.
Fiz a 4ª classe na escola primária junto ao posto da Polícia de Trânsito. Da minha casa para lá tinha que atravessar uns descampados ali na zona onde estão agora os Silos (sim, ainda sou do tempo em que os Silos não tinham sido construídos) e que era a zona da feira. Depois matriculei-me na Escola Bordalo Pinheiro que ficava atrás do Chafariz das Cinco Bicas, no curso Comercial, que era de três anos.
Mas só fiz um ano! Em vez de ir para a escola, eu queria era jogar à bola na Mata. Perdi dois anos por faltas. E não tive outro remédio a não ser dizer ao meu pai que, aos 16 anos eu não queria estudar, mas sim trabalhar.
Ele não gostou. Queria que eu fosse doutor. Mas respondeu-me: ‘Ah queres trabalhar? Pois não ficas aqui ao pé de mim. Vais conhecer patrão!’. E mandou-me para os armazéns do Tavares, Santos & Amaral, Lda., ao pé da Praça da Fruta. Estive lá 10 anos como empregado de balcão. Aquilo era uma das mercearias mais modernas das Caldas. Naquele tempo não havia supermercados nem mini-mercados, nem nada disso, mas mercearias havias dezenas na cidade. Hoje só resta uma: a do Pena.
Além de empregado de balcão, também trabalhei no armazém e até andei na viagem pois havia uma carrinha que fazia a ronda pelas aldeias da região para vender a mercadoria que as pessoas encomendavam. Posso dizer que estes anos deram-me tarimba para enfrentar aquilo que viria a ser a minha vida futura.
Em 1957, tinha eu 26 anos, o meu pai negociou o trespasse de uma mercearia (a antiga Casa João Rego) na Rua Capitão Filipe de Sousa e ofereceu-me o negócio. Eu já há muito que pensava estabelecer-me por conta própria e foi assim que agarrei naquilo e ali abri a Mercearia Xavier.
Trabalhei muito, mas aquilo correu bem. E devo ter ficado um bom partido porque em 1958 comecei a namorar a Maria Teresa, que também era filha de comerciantes, ali ao lado no Largo Heróis da Naulila e casei-me em 1959.
Como disse, a minha clientela atravessou três gerações. Conheci os pais, os filhos e os netos. Nunca me faltou freguesia. E então à segunda-feira não tinha mãos a medir porque vinham as pessoas das aldeias aviar-se às Caldas.
De 1957 a 1999 foi este o meu local de trabalho onde eu era patrão de mim próprio. Com a minha mulher, e mais tarde com as minhas filhas, sempre demos conta do recado. Não tivemos empregados. E durante 21 anos seguidos nunca tivemos férias. Só descansávamos aos domingos e feriados. A primeira vez que fechei a loja para férias foi em 1978 para ir passar uma semana ao Algarve.

DE MERCEARIA A MINI-MERCADO

Nos anos setenta achei que estava na altura de dar um jeito nisto. Ampliei a loja e transformei a mercearia num mini-mercado, que era coisa que na altura já começava a estar na moda. Hoje os mais novos não percebem que era uma grande novidade as pessoas poderem tirar os produtos das prateleiras e virem pagar à caixa. Porque eu antes cheguei a ter tulhas na mercearia. Com arroz, massa, farinha, açúcar, feijão, trigo. Era tudo aviado à mão, pesado numa balança e embrulhado em papel pardo. Só mais tarde é que chegaram os produtos embalados e até os sacos de plástico.
E assim se passaram 42 anos numa rotina sempre igual. Pelo meio participei, já depois do 25 de Abril, na comissão para “semana inglesa” no comércio porque antes disso estávamos abertos ao sábado durante todo o dia. E como os supermercados começavam a fazer-nos cada vez mais concorrência, os homens das mercearia juntaram-se e criaram a Coopercaldas, que era uma cooperativa grossista, que tinha sede no Alto das Gaeiras e comprava mercadoria em grandes quantidades para vender aos retalhistas. Eu fiz parte da direcção.
E também fiz parte do antigo Grémio do Comércio, que ficava na Rua de Camões, no primeiro andar do prédio onde é hoje o Museu do Ciclismo.
Em 1991 voltei a fazer nova remodelação e a loja passou a chamar-se Auto Serviço Xavier. Mas não consegui evitar o inevitável. Cada vez mais eu via passar à minha frente os meus clientes com sacos das compras vindos do supermercado. Só cá vinham quando se esqueciam de comprar um pacote de sal ou um pacote de manteiga. O negócio murchou e não havia volta a dar-lhe. Os tempos eram outros.
Pus a casa a trespasse e a UPACAL, que na altura estava em expansão, ficou-me com isto para aqui fazer uma pastelaria. Reformei-me em Junho de 1999. Sem mágoas nem tristezas. Durante os últimos dias em que estivemos abertos, eu e a minha mulher até oferecíamos os últimos produtos das prateleiras aos fregueses mais dedicados.
Com a reforma fiz o que fazem todos os avós: ajudei a criar os meus netos. Mas eles cresceram e agora entretenho-me aqui pelo jardim. Às vezes vou com a minha mulher a Coja, perto de Arganil, onde tenho lá uma casa. Gosto daquilo. Mas o meu lugar é aqui nas Caldas, na Encosta do Sol, onde vivo, com vista para a Escola Bordalo Pinheiro e para a cidade.
Quando passo aqui em frente à minha antiga mercearia, olho para trás e sinto orgulho em ter sido comerciante toda a vida. Mas se me perguntarem o que é ser comerciante eu respondo: ‘é ter tido uma vida de trabalho’.

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