Sapateiros e Benedita: uma história cruzada

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1965

Vamos falar de sapatos. O calçado consta de inúmeras histórias, como por exemplo na Cinderela ou no Gato das Botas. É um bem elementar que nem sempre é muito falado. Por isso vale a pena fazer uma incursão pela “terra dos sapateiros” – a Benedita – e de como esta foi influenciada por este ofício. Abordamos a evolução nesta “arte”, que foi criada com um propósito tão simples quanto importante: proteger os pés. Venha daí, numa viagem pelo conhecimento de João Maurício imortalizado no livro “Sapateiros da Benedita”.

“A actividade de sapateiro na Benedita vem de tempos imemoriais e confunde-se com a própria terra”, afirma no seu livro João Maurício. A sul do Mondego é um “caso único, pela sua dimensão”, acrescenta. Mas “as mãos enegrecidas e calejadas há muito que deixaram de laborar”.
Conta uma história muito antiga que um dia, um rei, caminhando descalço no seu jardim, pisou um espinho. Enfurecido, terá ordenado que todo o reino fosse coberto de couro. Apavorado pela extensão do projecto, o ministro ter-lhe-á dito para cobrir antes os pés. E assim, conta-se, nasceu o calçado.
Lendas à parte, sabe-se que na Pré-História o homem protegia os pés com peles de animais, folhas e cascas de árvores. Há pinturas, datadas de entre 15.000 e 12.000 a.C., em Espanha e Sul de França, que mostram humanos com calças e botas de pele. Na caverna do Guerreiro, em Jericó (Israel), foram encontrados restos mortais datados de 4000 a.C. com um par de sandálias em couro e uma sola em forma de pé.
Há historiadores que associam a invenção do calçado à Mesopotâmia, há mais de 3200 anos. No Egipto os sapatos eram um símbolo de liberdade, uma vez que apenas os homens livres andavam calçados e nunca os escravos.
Há um grande vazio em certos períodos da História, mas é comummente aceite que a influência do calçado nesta região provém do Mosteiro de Alcobaça. João Maurício recorre a um estudo de Iria Gonçalves para notar que esta era uma das profissões mais representadas nos Coutos de Alcobaça nos séculos XIV e XV (nos finais do século XV haveriam 26 sapateiros nos Coutos, sendo que nunca mais de dois por povoação, excepto em Alcobaça).
Por outro lado, afirma o investigador, esta actividade seria um complemento aos parcos rendimentos que provinham da agricultura (devido à fraca aptidão agrícola dos solos beneditenses).
Salientou a existência da primeira fábrica de solas em Alcanena (1792) e retratou a evolução dos meios de transporte e a sua influência na própria profissão. Desde as deslocações a pé, de burro, bicicleta ou em carroças puxadas por animais por carreiros de terra – retratadas nas palavras de António Henriques, vendedor na Praça da Fruta, à Gazeta das Caldas (04/08/2000), – até ao aparecimento das estradas e dos primeiros “transportes colectivos”.

A terra dos sapateiros

E conta-nos João Maurício que “a freguesia da Benedita ganhou ao longo do século XX, o epíteto de ‘terra de sapateiros”, num tempo em que “alguns iam até às quintas da região Oeste ou até, ao Ribatejo onde ficavam, às vezes, semanas a fio, a reparar os sapatos e botas dos trabalhadores rurais, durante as vindimas ou na apanha da azeitona”. E que outros se deslocavam com a caixa das ferramentas às costas, a fazer serviço ao domicílio, anotando o arranjo pretendido – a lápis – nas solas do calçado.
Recorda como era o dia-a-dia nas oficinas e o processo de fabrico, definindo os traços gerais por trás do ofício: “o sapateiro era, por norma, brincalhão e ‘bisbilhoteiro’. Não trabalhava às segundas-feiras. Tinha algum vocabulário próprio, a gíria específica da profissão, sendo que as oficinas foram sempre locais de encontro para pôr a conversa em dia”.

Os sapateiros num país de pés descalços

Até meados do século passado as oficinas na freguesia eram individuais, isto é tinham um único proprietário (que passava o saber aos filhos) e eram locais de instabilidade profissional. Estávamos “perante um sector pouco dinâmico, com muitas oficinas de pequena dimensão, sem registo oficial”.
“Estas seriam, hoje, verdadeiros museus  vivos”: ao lado do sapateiro “um velho alguidar de barro era o recipiente para pôr a sola de molho, para a amaciar e poder bater, tornando-a mais concisa e durável”.
“Nas oficinas havia uma espécie de “caos organizado”. Do candeeiro a petróleo vinha um cheiro pestilento e desagradável. Labutavam dias a fio, muitas vezes com luz deficiente. Era um trabalho penoso”, conta o autor no seu livro.
Para além do trabalho ser duro, a recompensa não era consentânea: “do parco salário, pagas as despesas obrigatórias, pouco sobrava e dele tinham de tirar, ainda, o possível para a velhice e para os períodos de doença. Por isso muitas vezes iam-se engrossando as “contas” no merceeiro. Estava bem viva a expressão popular “ganhar o pão de cada dia””, acrescenta.
Por outro lado, explica, “Portugal pautou-se, durante muito tempo por um fenómeno, símbolo do atraso económico, o pé-descalço, que levou anos a ser combatido”. Para além das proibições e multas, houve campanhas para que a população fosse convencida e passasse a andar calçada.
Nos tempos da Segunda Grande Guerra “havia falta de solas e cabedais e, por isso, falta de trabalho”, fez notar, esclarecendo que havia material para trabalhar uma semana por mês. Carradas e carradas clandestinas de material eram transportadas no dorso de mulas, vindas de Alcanena. “Desciam a Serra dos Candeeiros. Chegava a candonga”, conta, salientando “que conseguiu minimizar o problema”.
Em 1945 é definida a idade mínima de 14 anos para trabalhar neste ofício, por exigir “esforço físico violento”. Até lá, estava instituído que os mais novos ajudavam nas oficinas e iam aprendendo o ofício desde tenra idade.
O padre Inácio Antunes deixou escrito que quando chegou, em 1951, a esta freguesia encontrou uma realidade dura, “sem estradas, sem luz, sem água”. Afirmou ainda que, “em 1955, a Benedita fornece calçado para todo o país”.
Na década de 60 a freguesia foi alvo de um projecto de Desenvolvimento Comunitário que tinha por base o associativismo dos sapateiros e se estendia à melhoria das condições de vida de toda a população. O negócio saiu da clandestinidade. Duas grandes fábricas foram criadas no âmbito do projecto. Água, luz e alcatrão passaram a chegar a mais sítios e, paralelamente, começaram a aparecer aviários e pecuárias. O ofício já era, nesta década, regularmente inspeccionado.
A partir daí, explica João Maurício, “o progresso foi de tal modo galopante, num espaço temporal tão curto, que os mais novos quase não acreditam que tenha existido aquela actividade”.

João Maurício: o calçado está no sangue
João Luís Pereira Maurício é beneditense. Professor aposentado é um apaixonado por esta temática. Está-lhe no sangue – não é incorrecto dizer. Os avós, o pai, entre outros familiares, tiveram no calçado o seu ganha-pão e em criança, João Maurício acompanhava o pai na distribuição das mercadorias.
“Sempre tive apetência para trabalhos de investigação”, contou à Gazeta das Caldas este também ex-correspondente de jornais locais (entre os quais a Gazeta).
Por outro lado, “havia um défice de informação sobre este assunto”. Razões que o levaram a escrever.
Neste trabalho, que levou cerca de seis anos a ser compilado, há também uma lista dos tipos de calçado fabricados na Benedita e um registo de oficinas da região. João Maurício traçou a rota das feiras que os sapateiros percorriam e os perfis de algumas personalidades ligadas ao ofício. Fez uma contextualização temporal, dando a conhecer a realidade local à época, numa obra com uma série de páginas dedicada aos curtumes, que também estão intimamente ligados com a região. A maior dificuldade foi a falta de documentação.
A capa, ilustrada por José Estrela, reproduz uma antiga oficina de sapateiro e na contra-capa, para além de umas típicas botas de elástico há palavras soltas relacionadas com a profissão.
Foram impressos 125 exemplares, sendo esta uma edição de autor que “tem como principal objectivo que a memória não se perca”.
Notando a existência de vários objectos relacionados com o tema distribuídos por casas particulares, defendeu que “é uma pena que não exista um espaço onde se pudesse reunir todo o espólio existente”.

[caption id="attachment_61410" align="aligncenter" width="850"]IMG_2734 António Silva na sua oficina nas Caldas da Rainha | Isaque Vicente[/caption]

Uma oficina nas Caldas com mais de meio século
Entre martelos, facas, limas e lixas, entre a máquina de cozer e a prensa das colagens, logo por trás de um balcão numa pequena oficina, com uma janela para a rua, para a travessa da Cova da Onça. É assim o dia-a-dia de António Silva, que há 31 anos tomou conta do nº13 daquela travessa: uma oficina de sapateiro.
“A casa tem entre 60 e 70 anos de actividade”, contou António Silva, lembrando-se da época em que ali se fixou. “Sou do tempo em que havia a cocheira ali do outro lado da rua”, recordou.
“Hoje está tudo diferente”, exclama, explicando: “antigamente não se trabalhava de pé, era sentado a trabalhar nos joelhos. E não havia tantas borrachas, era tudo à base de sola e coiros”.
“Antigamente havia muito mais actividade, porque havia calçado grosso para quem trabalhava no campo”, contou. “Hoje já não é assim, vai-se ganhando para a volta”. Hoje as oficinas também já não são o local de encontro e convívio que foram outrora. “Havia muita gente que se sentava ao pé dos mestres para saber as novidades… Era nos sapateiros e nos barbeiros”, lembrou
Aprendeu o ofício com um vizinho, no Valado de Santa Quitéria. Tinha na altura 13 anos e fez do calçado vida até aos 21. “Era um trabalho muito duro, era tudo manual”, fez notar.
Assim, durante 17 anos, embarcou na aventura de trabalhar em cruzeiros, “mas veio a crise de 1985 e a empresa faliu”, obrigando António Silva a voltar a fazer aquilo que sabia: sapatos. E, “até ver, aqui estou”.
A mulher, Diamantina Silva, atende as pessoas ao balcão, enquanto o marido, António Silva, conserta o calçado no interior.