Paulo Girão, de 36 anos, trabalha directamente com May-Britt Moser e Edvard Moser, o casal norueguês de investigadores que recebeu o Prémio Nobel de Medicina, juntamente com o neurocientista americano John O’Keefe.
Este caldense foi em 2001 para a Dinamarca através do programa Erasmus. No ano seguinte, então com 24 anos, mudou-se para Trondheim (Noruega) onde foi aceite como estudante de doutoramento sob a co-supervisão do casal Moser e do professor Carlos Duarte, também ele caldense.
“Nunca conheci ninguém com uma paixão tão grande pelo seu trabalho como este casal, e esta vontade de compreender melhor o cérebro humano é contagiante”, disse o investigador que trabalha com os agora laureados há mais de uma década.
Paulo Girão considera que a atribuição do prémio Nobel aos directores do Instituto Kavli constitui uma garantia de que o governo norueguês e a Universidade de Trondheim continuarão a apoiá-los economicamente e também uma ajuda para se divulgarem no mercado internacional de trabalho. E é igualmente uma mais valia para os investigadores envolvidos, como é o caso de Paulo Girão. “O que é melhor para um estudante do nosso instituto que ter uma carta de recomendação assinada por um prémio Nobel?”, questiona o caldense.
Apaixonado pela Noruega, onde diz que quer continuar a viver, foi de lá, via correio electrónico, que respondeu às perguntas da Gazeta das Caldas.
GAZETA DAS CALDAS – Qual a sensação de trabalhar na equipa do casal que recebeu o prémio Nobel?
PAULO GIRÃO – Todos no instituto sentem-se muito orgulhosos pelo prémio e muitos sentem que uma parte do mérito cai um pouco sobre os ombros de uma grande equipa de trabalho. Mas todos concordam que as grandes ideias e acima de tudo, a visão e a capacidade de coordenar e liderar um grupo com tantas nacionalidades, capacidades técnicas e diferenças de opinião, é inteiramente mérito absoluto do casal Edvard e May-Britt Moser. Nunca conheci ninguém com uma paixão tão grande pelo seu trabalho como este casal, e esta vontade de compreender melhor o cérebro humano é contagiante. Muitas vezes sentimos que o casal nos empurrou para a frente durante todo este percurso. Para mim e para muitos, é um privilégio diário trabalhar num grupo que descobre tanto sobre o funcionamento do cérebro humano.
G.C. – Que projectos tem desenvolvido no Instituto Kavli de Sistemas Neuronais na Universidade de Trondheim?
P.G. – Nos primeiros anos (2002-06) trabalhei projectos relacionados com a codificação e consolidação de novas memórias no hipocampo (uma estrutura cerebral localizada no lobo temporal do cérebro), e outro com o objectivo de descobrir o papel do córtex entorhinal (uma estrutura vizinha ao hipocampo) em processos de navegação e na consolidação de memórias. Entre 2007 e 2008 saí do instituto e trabalhei como docente da cadeira de Psicologia Biológica no Instituto de Psicologia da Universidade de Trondheim. Voltei ao instituto Kavli de Sistemas Neuronais em 2009, como técnico especializado em microscopia óptica e electrofisiologia da secção de Anatomia-Fisiologia.
Neste momento, o foco de investigação da secção onde trabalho é o mapeamento detalhado das conexões sinápticas entre diversas estruturas do lobo temporal do cortex cerebral, caracterização dos tipos celulares nestas mesmas estruturas e a sua caracterização funcional.
Compreender de que forma o cérebro utiliza informação espacial
G.C. – Como explicaria a um leigo, de forma muito simples, em que consiste o seu trabalho de investigação científica?
P.G. – Talvez seja melhor explicar primeiro qual é o objectivo global de investigação do meu instituto e de seguida quais são as tarefas específicas do meu trabalho em particular.
O objectivo inicial era o de descobrir de que forma o cérebro de mamíferos codifica, processa e forma uma memória de tipo episódica (isto é, uma memória de um evento único pessoal). Com base em dados clínicos, já se sabe desde a década de 1950 que existe uma estrutura específica no cérebro chamada hipocampo, localizada no lobo temporal médio (parte lateral da cabeça, directamente debaixo das orelhas), que é responsável por essa tarefa. Isto é, pessoas com lesões nessa área do cérebro viam-se impossibilitadas de “gravar” novas memórias pessoais. Com o desenvolvimento técnico na década de 1970, descobriu-se (o outro laureado com o Nobel deste ano, John O’Keefe, foi responsável por este trabalho) que a mesma estrutura é também responsável pelo processo de mapeamento e navegação espacial num ambiente (isto é, pela capacidade de uma pessoa se lembrar do caminho do trabalho para casa e vice-versa).
Por volta de 2004 o par Moser decidiu investigar a função de uma estrutura vizinha e antecedente ao hipocampo, chamada córtex entorhinal. Esta estrutura fornece informação directamente ao hipocampo, e por essa razão o meu grupo achou pertinente que se dedicasse algum tempo e atenção a função desta parte do cérebro. Para grande surpresa, descobriu-se então que dentro desta estrutura encontram-se neurónios com funções específicas no processamento de informação espacial: uns neurónios são responsáveis por medir distâncias (grid cells), outros por medir direcções, como um compasso (head-direction cells), outros por assinalar proximidade a objectos e obstáculos (border cells), etc.
Estas descobertas são extremamente importantes para explicar de que forma o cérebro de mamíferos utiliza informação espacial para navegar de um local para outro (isto é, de que forma nos lembramos e/ou planificamos na nossa cabeça uma ida ao supermercado noutra rua, por exemplo). Foi uma verdadeira revolução no campo das neurociências.
Hoje em dia, o objectivo primário do meu instituto é o de compreender de que forma o cérebro de mamíferos utiliza informação espacial (informação sobre onde nos encontramos agora e onde nos encontrávamos antes) para planificar trajectos para outros locais. E também de que forma é que este tipo de informação é processada para formar uma memória de uma acontecimento. Também é importante destacar que estas estruturas (córtex entorhinal e hipocampo) são as primeiras estruturas no cérebro humano a degenerar durante os primeiros estádios da doença de Alzheimer. Temos também uma equipa a trabalhar nessa área.
Cada seccão tem uma parte específica deste objectivo a seu cargo. A minha secção, liderada pelo professor Menno Witter, concentra-se no estudo da anatomia cerebral, nomeadamente nas ligações neuronais entre as regiões do cérebro. A minha área de responsabilidade é o de auxiliar outros investigadores no planeamento, execução e optimizacão de técnicas experimentais, mais especificamente as relacionadas com o uso de microscopia óptica e electrofisiologia.
G.C. – Que mais valias traz esta distinção para o instituto em que trabalha?
P.G. – A atribuição do prémio Nobel aos líderes do nosso instituto é uma forte garantia de que o governo norueguês e a Universidade de Trondheim continuarão a apoiar-nos economicamente. Também ajuda a publicitar o nosso instituto no mercado internacional de trabalho, e assim atrair as melhores cabeças na nossa área de investigação a um país com um clima aparentemente tão inóspito (polar!) como a Noruega. A nível pessoal, o prémio beneficia indirectamente o currículo de todos os que presentemente aqui trabalham e abre oportunidades para o seu futuro. Que melhor para um estudante do nosso instituto que ter uma carta de recomendação assinada por um prémio Nobel?
GC – Como foi parar à Noruega?
PG – De 1996 a 2001 tirei o curso de Bioquímica no Departamento de Bioquímica da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. No terceiro ano do curso comecei a interessar-me mais particularmente pela área de Neurobiologia, e o responsável pela cadeira era o professor Carlos Bandeira Duarte, também ele um caldense. Em 2000/01 realizei a minha tese de final de curso na Danmarks Farmaceutiske Højskole em Copenhaga como parte do programa Erasmus. Fiquei com uma impressão muito positiva, tanto da filosofia de trabalho na Dinamarca, mas também do estilo e filosofia de vida dos povos escandinavos.
O papel do professor Carlos Duarte foi vital para estabelecer o contacto inicial com esta instituição, e também como co-supervisor do meu trabalho de investigação. No outono de 2001 estabeleci contacto com os professores Edvard e May-Britt Moser [agora prémios Nobel], líderes de um laboratório na Universidade de Trondheim, e viajei para uma entrevista em Abril de 2002. Fui aceite então como estudante de doutoramento sob a co-supervisão do par Moser e do professor Carlos Duarte.
Mudei-me para Trondheim em julho de 2002 e comecei a minha tese sobre padrões de actividade neuronal durante eventos episódicos de memória. Tinha na altura 24 anos de idade. Na altura, o grupo de trabalho era pequeno, com à volta de 15 pessoas, a maior parte estudantes de doutoramento ou de mestrado, quase todos noruegueses. Hoje em dia o grupo cresceu e somos mais de 80 investigadores e técnicos no instituto a trabalhar em conjunto, divididos por 5 secções. O instituto tem investigadores de muitas nacionalidades. Só na secção em que trabalho encontram-se investigadores da Noruega, Dinamarca, Holanda, Itália, Estados Unidos, Polónia, Portugal e Franca, por exemplo.
A minha motivação para me mudar para a Noruega deveu-se 50% a interesse profissional, 50% por causa da cultura e estilo de vida escandinavo. Durante o meu ano de Erasmus na Dinamarca fiquei com boa impressão dos países nórdicos e depois de uma visita curta à Noruega, apaixonei-me imediatamente pelo país.
“A Noruega foi a melhor decisão da minha vida”
G.C – Qual o balanço que faz o seu percurso?
P.G. – Eu ainda sou relativamente jovem (tenho 36 anos) e acredito que ainda há muito pela frente. Considero-me, no entanto, extremamente feliz pelas decisões que tomei nos pontos cruciais da minha carreira até este ponto, e, acima de tudo, reconheço também uma grande dose de sorte neste percurso.
Quando me mudei para Trondheim, o grupo era relativamente desconhecido a nível internacional. Lembro-me de um colega da universidade me ter perguntado uma vez porque é que eu me queria enterrar “numa aldeia no fim do mundo” numa altura tão crucial da minha vida. Anos mais tarde, este “fim do mundo” é dos países mais ricos do mundo e Trondheim é, hoje em dia, um dos grandes centros de investigação mundiais no campo das Neurociências. Emigrar para a Noruega em 2002 foi talvez a melhor decisão da minha vida, embora não o soubesse na altura.
G.C. – Quais os pontos fortes e fracos de viver na Noruega?
P.G. – Eu adoro viver na Noruega e, pessoalmente, é-me difícil encontrar pontos fracos. De pontos fortes posso falar de um estado social fantástico que permite um elevado grau de segurança material a todos os seus cidadãos, de uma forma de estar no trabalho muito relaxada, de um povo e uma cultura únicas, e acima de tudo, da natureza incomparável.
De possíveis pontos fracos, compreendo que muitos latinos se possam queixar da simplicidade excessiva da gastronomia, do clima extremo (no inverno não é invulgar o termómetro descer aos 20 graus negativos), da personalidade muito tímida dos noruegueses e dos preços (muito) elevados dos produtos (um jantar num restaurante médio custa à volta de 30 a 80 euros por pessoa, por exemplo).
G.C. – O seu futuro passa por continuar nesse país?
P.G. – Não tenho intenção de voltar a Portugal, embora imagine que venha a passar períodos mais prolongados no país depois de me reformar. O meu primeiro filho acabou de nascer no ano passado e por isso planeio passar algumas semanas por ano para férias, de forma a que ele aprenda a língua e a cultura portuguesa e manter um contacto frequente com a família.
Tenciono continuar a viver na Escandinávia, mais provavelmente na Noruega, mas estou aberto à possibilidade de me mudar para outra cidade, dependendo da minha carreira profissional. O sistema social norueguês é dos melhores do mundo. Por isso desejo que o meu filho cresça na Noruega.
G.C. – Como vê actualmente Portugal?
P.G. – Portugal é um país fantástico… para passar férias! Tem um clima muito bom, um povo simpático e acolhedor, uma cultura interessante (a literatura, a música portuguesa e certas formas de expressão tradicionais, como o fado e o folclore locais são únicos e muito ricos), mas sofre ainda duma atitude muito conservadora em relação a diversos temas.
Portugal tem grande potencial humano, mas a atitude ideológica corrente em Portugal de “cada um que cuide de si próprio” e a falta de apoios a nível estatal leva a que muito desse potencial se encontre além-fronteiras. A corrupção política de forma completamente aberta e impune impossibilita qualquer tentativa de melhorar a situação social de uma grande fracção da população portuguesa, infelizmente. E assim cria-se um ciclo vicioso, em que a população não confia nos seus políticos e nas suas instituições. A burocracia é um monstro, ninguém quer pagar impostos, e mesmo que os pague, metade destes desaparece nos bolsos de alguém. Assim é impossível fazer qualquer coisa em Portugal neste momento. No norte da Europa, uma reunião em que não se tomem decisões e em que estas não sejam executadas rapidamente é uma má reunião de trabalho. Em Portugal, é quase a regra geral. Esta atitude tem de mudar.
G.C. – Com que frequência vem às Caldas?
P.G. – Costumo vir às Caldas uma ou duas vezes por ano, durante um par de semanas, geralmente por altura das férias do verão ou do Natal. As Caldas cresceu muito nos últimos anos antes da crise económica, mas infelizmente estagnou após a crise. Tenho, no entanto, a esperança que melhores dias virão. Gosto muito da tranquilidade das Caldas, de passear pela Rua das Montras e pelo Parque da cidade enredado nos meus pensamentos, de cumprimentar ocasionalmente amigos e familiares de sorrisos abertos pelas ruas, e de me sentar nos cafés e ouvir os anciãos a discutir política, futebol, filosofia, ou os boatos do bairro. São estes pequenos pormenores que dão alma à minha cidade natal.
Fátima Ferreira
fferreira@gazetadascaldas.pt