81 ANOS
VIÚVO

Chamam-me Zé Pinheiro, mas o nome verdadeiro é José Rodrigues Campos. Nasci nos Vidais em 27 de Abril de 1935. Fui o nono dos 14 filhos que os meus pais, Jacinto e Deolinda, deram ao mundo. Hoje as pessoas não sonham como se vivia naquele tempo nesta terra. Não vou dizer que vivia na miséria absoluta porque havia quem vivesse muito pior. O meu pai e a minha mãe trabalhavam para o Dr. Botelho Moniz que chegou a ser presidente da Câmara das Caldas e director da Gazeta das Caldas. Eles tinham aqui a Quinta de Calazans e o meu pai era o caseiro.
Vivíamos numa casinha dentro da quinta. Um quarto para os seis rapazes e outro para as raparigas, que eram oito. Tudo muito apertado, mas cada um tinha a sua cama, em colchões de palha, que era o que se usava na época.
Eu era malandro como um raio. Só me lembro que andava para aí a correr e a saltar. Com 14 filhos a minha mãe não podia tomar conta de todos ao mesmo tempo. Eu andava por aí, descalço (andávamos todos descalços) aos ninhos, roubava laranjas, maçãs, pêssegos e, claro, de vez em quando levava umas valentes chapadas no focinho.
Na escola, maroto como eu era, não passei da 2ª classe. O melhor da escola era que a professora, a D. Ana Benécio, me pagava 5 tostões (1/4 de cêntimo) para eu levar todos os dias o jornal à Quinta de Valverde. Ela lia o jornal antes e depois mandava-me entregá-lo lá. E eu chegava à quinta com o jornal e a D. Conceição, que era a patroa, dizia à Júlia, que era a empregada: “dá qualquer coisa ao rapazito”. E aquilo era o melhor da escola: 5 tostões por dia e alguma coisa para comer.
O Dr. Botelho um dia ofereceu-me três pares de botas, mas nenhuma me servia. Então ele mandou fazer umas no Tóino Brás, um sapateiro aqui dos Vidais, mas eu estava tão habituado a andar descalço que escondia-as numa valeta e ia de pés ao léu, a correr por aí fora.
Devia ter dez anos quando comecei a trabalhar. Tratava dos coelhos da quinta, apanhava a erva, fazia recados. E também ajudava o meu irmão Jaime a tratar das vacas.
Mas depois tive uma chatice com a D. Celeste que era a mulher do Dr. Botelho Moniz, e pus-me a andar. Comprei uma enxada na taberna do Zé Lourenço que me custou 22$50 (0,11 euros) e fui trabalhar a cortar saibro para o António Saibo. Eu devia ter uns 14 anos e ganhava 20 escudos por dia (0,10 euros).
O António Bento, que era cá da terra, viu que eu era bom e robusto e contratou-me para ir trabalhar para ele à jorna. Fui cavar vinha, alqueivar, plantar bacelos, podar, empar, dar serventia ao pulverizador, sulfatar, enxofrar e vindimar. Enfim, fiz todo o trabalho do campo. Dias inteiros, de sol a sol [Escreve-se «trabalhar de sol a sol»; a expressão «de sol a sol» quer dizer «desde que o sol nasce até se pôr; do nascer ao pôr do sol» [in Dicionário Prático de Locuções e Expressões Correntes, de Emanuel de Moura Correia e Persília de Melim Teixeira, edição da Papiro Editora], passados nas fazendas.
Eu era forte, tinha um bom corpanzil e patrões não me faltavam. A seguir fui trabalhar para o Alfredo Esteves, também à jorna, de sol a sol.
COZINHEIRO NA TROPA
Em 1956, tinha eu 21 anos, fui chamado para a tropa. Assentei praça em Queluz e depois fui para Murfacém, ali perto da Trafaria. Quando passei a pronto, com a recruta feita, mandaram-me para Porto Brandão. Eu era da especialidade de Artilharia, mas não passei a tropa aos tiros. Fui lavar pratos para a messe de sargentos e foi lá que eu servi a Pátria, na cozinha. Pelo menos não passei fome.
Uma vez o cozinheiro, que era um rapaz de Fafe, foi de licença e disseram-me para ser eu a fazer o almoço para os sargentos. Ora eu nunca tinha cozido uma batata na minha vida. Mas mandaram-me e eu obedeci. Quando a sopa estava a ferver naqueles panelões muito grandes, eu tinha que despejar o azeite, mas como era Inverno, este estava coalhado. Então eu resolvi pôr a garrafa inteira lá dentro e… Caraças! Aquilo rebentou logo. “Agora é que eu estou tramado…!”, pensei eu.
Com jeitinho, fui mudando a sopa, passei-a por um passador, tentei disfarçar a coisa e quando a levei à mesa, no fim disseram-me: “fizeste uma sopa especial! Mas não lavaste bem as couves”. Eram os restos dos vidros…
Foi na tropa que continuei a aprender a ler e a escrever, mas lá só fiz a 3ª classe. Quando acabei o serviço militar, voltei aos Vidais e à agricultura. Com 29 anos casei-me com a Gabriela, que era uma rapariga cá da terra que tinha andado a servir em Lisboa e enviuvou ainda muito nova, ficando com uma filha já crescida.
Mas para me casar tive de ir à confissão às Caldas. Eu nunca fui homem dessas coisas, mas não é que o padre começa-me com uma conversa, a perguntar se eu já me tinha servido de outros homens ou se alguns homens se tinham servido de mim… É pá, eu levantei-me, agarrei no boné, bati com ele no banco, pus-me a andar dali para fora e disse à Gabriela: “raio do padre! Eu nunca mais me confesso!”.
Casámos nos Vidais e fomos morar para uma casinha pequena aqui à beira da estrada das Caldas para Rio Maior. Não houve lua de mel nem nada disso. Andei foi três dias a dar de comer e beber aos convidados todos porque naquele tempo a boda durava três dias.
“Era uma vida dura, mas nunca conheci outra”
E continuei na vida do campo. Eu tinha muita força e apesar de ser maroto, os patrões gostavam de mim porque eu era um homem de trabalho.
Era uma vida dura, mas nunca conheci outra. Estava no campo logo de madrugada e só me vinha embora com o Sol posto. Para o almoço levava-se um bocadinho de toucinho cru e um bocado de pão de milho (porque o pão de trigo quase não havia e era só para os dias de festa). Às vezes levava uns carapaus ou um bocado de chouriço.
E para beber era água pé porque o patrão dizia que o vinho era para estar dentro dos depósitos para fazer dinheiro para pagar ao pessoal. Bebíamos água pé pelo mesmo garrafão e só ao sábado, que era dia de pagamento, é que tínhamos direito a vinho.
Ou não!… É que às vezes, às escondidas da patrão, a malta ia à adega e bebíamos vinho ao despique. Dois litros de vinho seguidos, sem tirar o barrilito da boca. Depois o trabalho até rendia mais porque a gente sentia-se mais forte.
Fui trabalhar para a Quinta Valverde e às tantas passei eu a orientar aquilo. Era o capataz e cheguei a tomar conta de 50 homens a cavar e a estarroar (quebrar as leivas).
Mas também soube orientar a minha vida. Poupei, poupei e em 1982, quando tinha 47 anos, comprei três fazendas. Custaram-me 200 contos (mil euros) cada uma e finalmente comecei a amanhar por minha conta. Mas não deixei de trabalhar na quinta. Só que eu nunca fui homem de descansar e então arranjava maneira de trabalhar também naquilo que era meu.
Cultivei trigo, batatas, cebolas e sobretudo vinha. Cheguei a produzir 30 pipas de vinho, que são 15 mil litros. E tinha comprador para tudo. Vinham cá comprar-me as batatas, o trigo, as cebolas e para o vinho até era um camião que estacionava ao pé da adega e dávamos à bomba para o encher.
Às vezes o que me pagavam não dava para as despesas, mas pelo menos sempre tinha fartura de comida. Podia não haver dinheiro para a mercearia, mas em casa tínhamos tudo, até porque também criava galinhas e coelhos e às vezes tínhamos um porco na pocilga a engordar. Até cheguei a ter três vacas e a minha mulher fazia queijo para vender.
Nunca comprei um tractor, nunca tive uma carroça. Eu levava tudo às costas. Já disse que eu era um homem forte. A única coisa que tive foi um motocultivador, daqueles que se seguravam com as duas mãos para andar a lavrar.
Eu já devia ter perto de 40 anos quando fiz a 4ª classe. Foi a seguir ao 25 de Abril nas campanhas de alfabetização. Houve umas aulas ali no salão paroquial dos Vidais para a malta do campo aprender a ler e eu depois fui fazer exame às Caldas e passei. Mas nunca fui homem de leituras. Nem jornais nem nada. Fui sempre um homem de trabalho no campo.
Dos trabalhos na agricultura não sei dizer o que é que gostava mais e gostava menos. O trabalho tinha de ser feito e pronto. A gente estava tão habituada a trabalhar que não havia nada que gostasse ou deixasse de gostar. Era tudo igual. No Inverno, a podar e a empar, ou a semear naqueles dias de geada, no Verão a alqueivar à torreira do sol, de manhã à noite.
Às vezes, ao Domingo, eu e a minha mulher apanhávamos a carreira e íamos às Caldas ver a filha dela que foi para lá viver. Dávamos uma volta e vínhamos para casa à noite porque era preciso tratar dos coelhos, das galinhas e das vacas.
Férias nunca tive, mas algumas vezes fui com a malta aqui da terra em algumas excursões de camioneta até ao Norte.
E assim cheguei ao ano 2000. Fiz 65 anos e reformei-me. O patrão da Quinta Valverde tinha os descontos em dia e tive direito à reforma. A pensão não era muita, por isso continuei a trabalhar. Não sei se já disse, mas sempre fui um homem forte e era danado para trabalhar.
Foi também em 2000 que morreu a minha mulher. Fiz partilhas com a filha dela, deixei a casa onde vivíamos e comprei uma adega aqui nos Vidais. Tem duas prensas e uns depósitos de vinho. Fiz lá um quartinho e uma casa de banho e agora é aquela a minha casa.
Não está mal viver na adega. Afinal eu não nego que gosto de beber uma pinga. Sempre gostei.
Quando tinha 77 anos dei uma queda, fui parar ao hospital e disse cá para mim que não voltava a trabalhar. Deixei a Quinta Valverde e agora é que me reformei a sério. Agora, depois de uma vida de trabalho é que não faço mesmo nada. É comer e beber e já não é mau.
O Manuel Jesus vem ter comigo à adega, faz-me companhia, bebemos uns copos e depois aparece aqui a malta amiga, o Amabílio, o Armando, o Tóino, o Norberto, o Zé João, o meu sobrinho Zé e fazemos uns petiscos e bebemos uma pinga.
Não sou homem de ir a cafés. Às vezes o meu sobrinho é que me arrasta para a associação (Desportiva e Cultural dos Vidais), mas raramente saio de casa. Vejo um bocado de televisão, durmo e vivo um dia de cada vez.
Testemunho recolhido por:
Carlos Cipriano
