UM SARAU DE RECORDAÇÕES
Junho de 1903
“Passei a note em casa do Columbano, com o Rafael Bordalo Pinheiro. Durante o jantar falou sempre. Todo ele mexe é caricatura e imprevisto: os olhos, o nariz, as mãos, e até o bigode, que se encrespa, desenham e imitam. – Era um homem com um olho assim… – E logo o olho se enviesa. Em rapaz o seu sonho era o teatro. Chegou a ter lições de Rosa pai. Está um pouco cansado Queixa-se muito, amua.
– Ninguém faz caso de mim… Estranha quando o não o vão buscar à estação – e está sempre a chegar das Caldas e a partir para as Caldas. Depois esquece-se e põe-se a rir. Depois torna: – eu não jogo, mas lá em casa todas as noites jogam e pedem-me dinheiro emprestado. – Agora arremeda este e aquele de quem fala. Conta que em Paris ouviu ao rei dizer: – Isto aqui é uma terra, lá é uma piolheira. – E o infante, quando lhe perguntaram: – Então, em Londres, que tal, com aqueles príncipes todos? – Mal, mal… eu sou um príncipe asa de mosca…
E acaba – é nas vésperas do jantar que lhe vão oferecer no Teatro de D. Maria – por dizer. Veja o senhor que desgraça a minha! Daqui a pouco não posso fazer a caricatura de ninguém!
Efetivamente lá estavam no banquete todos os homens importantes, os conselheiros, os políticos decorativos, a série completa das figuras do António Maria. Não faltou ninguém à chamada. E nos camarotes aplaudiram-no com delírio as lisboetas pálidas de que troçou em tantas páginas de génio. Confundiram-no e arrasaram-no. Creio que foi a primeira vez que perdeu a linha.
Gostou sempre de fazer partidas. É o Schwalbach quem conta:
– O Imperador do Brasil, logo que chegava ao teatro, metia-se no camarote, descalçava as botas e calçava com regalo uns chinelos. Uma noite o Rafael, que estava no Rio, foi pé ante pé, meteu a mão pela cortina e roubou-lhe as botas. O pobre homem não se desconcertou: saiu de chinelos, atravessou de chinelos a multidão, saudado para a direita e para a esquerda, desceu até ao pátio, e meteu-se de chinelos na carruagem.”
É assim relatado por Raul Brandão (1867/1930) um serão na companhia dos irmãos Bordalo; sinto-me triste por não ter sido convidada…