No passado domingo, o historiador caldense João Bonifácio Serra falou na primeira sessão das comemorações do cinquentenário da criação da Casa dos Patudos, em Almeirim, sobre uma das obras mais controversas e azaradas de Rafael Bordalo Pinheiro: a Jarra Beethoven.
A Casa dos Patudos foi mandada construir no início do século XX pelo republicano José Relvas, amigo de Bordalo, segundo projecto encomendado a um dos mais importantes arquitectos portugueses da primeira metade daquele século – Raul Lino.
Foi naquele local que activista republicano José Relvas acolheu toda a sua colecção de arte, e recebeu as principais figuras da política e da cultura da sua época, reunindo ali uma colecção inexcedível de pintura, escultura e de artes decorativas, como cerâmica, azulejos, vidros, metais, tapeçarias, do seu tempo e dos séculos anteriores.
Grande amigo do ceramista Rafael Bordalo Pinheiro, manteve com ele uma história quase passional sobre a produção da Jarra Beethoven, motivo da intervenção de João B. Serra, que contou aos presentes a trajectória daquele projecto iniciado ainda na última década do século XIX.
Uma história recambolesca
O historiador caldense recordou que foi em 1895 que Bordalo Pinheiro “iniciou a concepção de uma peça de cerâmica dedicada a Beethoven” num processo “complexo e demorado, absorvendo a sua atenção e o empenho” e mobilizando “as capacidades dos melhores ceramistas que ainda o acompanhavam no seu atelier da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha.”
Segundo João Serra, a referida jarra pode ser “encarada como uma extravagância bordaliana, uma provocação de génio aos condicionamentos do processo cerâmico ou talvez ser tomada como uma tentativa de esconjurar a maldição duma empresa que falhara sucessivamente os projectos industriais que presidiram à sua criação.”
Contudo, para o historiador “certo é que a maldição se abateu cedo sobre a própria jarra. Das peripécias que rodearam a sua abertura na roda de oleiro, secagem e cozedura, até à constatação de que era inadequada para o local a que o cliente de Bordalo a destinava, tudo se conjugou para trocar as voltas ao destino desta peça singular.”
João Serra explicou depois que a jarra inicial, com cerca de 2,8 metros de altura, viria a ser rejeitada por José Relvas, levando a que fosse sucessivamente transportada para outros locais, acabando no sorteio de quermesse no Rio de Janeiro, calhando numa rifa que foi rejeitada. Acabaria de ficar no Brasil, onde ainda hoje está também, depois de passar por vários locais até permanecer no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.
Numa reflexão sobre esta rocambolesca história, o estudioso caldense defende: “Na mescla de sentimentos contraditórios que a jarra inspirou – espanto e admiração perante a ousadia do artista mas recusa geral em trazer a obra para um convívio partilhado – adivinha-se uma alegoria do destino da unidade cerâmica onde fora produzida. Bordalo quis que assim fosse – uma obra extraordinária que ninguém adquirisse – e provavelmente concebeu-a como uma “peça final”. Com intuito semelhante, anos antes, cometera um projecto equiparável: a Talha Manuelina, ou Talha dos Operários, cuja venda estava indexada ao pagamento de salários em falta.”
João Serra associa a história da jarra e de Bordalo à própria odisseia de Beethoven para se fazer aceitar na elite artística de Viena de Áustria para onde tinha demandado à procura de reconhecimento e fama. Apresentou, perante o agrado e satisfação da assistência, algum material inédito, nomeadamente a correspondência entre Bordalo e Relvas, que mostra os meandros do sucedido na época, mesmo entre amigos e sobre o papel de Relvas como uma espécie de mecenas de um industrial criador pouco feliz nos negócios.
A Casa dos Patudos em Alpiarça
Antes da comunicação foi proporcionada uma interessantíssima visita guiada à Casa dos Patudos, um excelente exemplar da arquitectura do início do século XX e uma rica colecção de arte e de um recheio curiosíssimo do coleccionador emérito. Ali se encontra exposta a Jarra Beethovem definitivamente aceite por Relvas, com apenas 50 centímetros de altura e onde se podem ver a filigrana de pormenores que Bordalo quis emprestar à sua obra sobre a vida de Beethovem.
A Casa dos Patudos fica situada à entrada de Alpiarça, a cerca de 70 quilómetros das Caldas da Rainha, sendo dois terços da viagem feita na Auto-estrada A15 entre Caldas e Santarém. A restante parte, e depois de passada a ponte Salgueiro Maia, é feita até Alpiarça por uma estrada nacional sem grandes dificuldades e em poucos minutos. Uma boa hipótese de um fim de semana bem passado, completando a jornada com uma sopa de pedra em Almeirim e uma visita em Santarém às Portas do Sol.
O texto da comunicação do historiador João Serra pode ser consultado no site: www.cidadeimagi naria.org
JLAS