O regresso de Bordalo II

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bordaloSobre a figura do Zé Povinho escreveram-se teses, tratados, páginas infindáveis, resumidas, afinal, numa frase breve e feliz de Raquel Henriques da Silva: «é no diminutivo inho, com que a língua portuguesa exprime o afecto e o desdém, que a figura se define e se torna Ninguém, sendo toda a gente».
Zé Povinho é “ninguém”, porque não nos reconhecemos individualmente naquela figura tosca, grosseira, rude, atarracada, sem pescoço, mas tão familiar. É “toda a gente”, porque nele nos sentimos retratados como nação, espoliada, enganada, vítima da sua bonomia, convertida em desistência como modo pragmático de sobreviver.
Acolhemo-lo como um dos nossos, em todas as gerações. Rimo-nos com ele, mais do que dele. Rimo-nos de nós: poderosa forma de resistência.
Da inércia da criatura lamentava-se carinhosamente o criador: «nunca se levanta que não se deite». A enervante passividade é a função que lhe reserva o poder que o albarda, como explica Ramalho Ortigão no “Álbum das Glórias”: «cumprindo com brio a missão que lhe cabe, ele paga e sua satisfatoriamente. De resto, dorme, reza e dá os vivas que são precisos».
Zé Povinho nasceu n’A Lanterna Mágica, numa primeira imagem elucidativa do seu destino: o pobre Zé caminha na rua incauto quando lhe sai ao caminho o ministro da Fazenda, Serpa Pimentel, com uma bandeja na mão esquerda, enquanto a direita aponta para o Santo António, o chefe do governo Fontes Pereira de Melo, que com ar seráfico segura carinhosamente ao colo um “menino Jesus” com a figura do rei D. Luís; o pobre Zé levanta um pouco o chapéu, coça a cabeça hesitante, olha para o comandante da Guarda Municipal, barão do Rio Zêzere, ali sentado, vigilante, com um chicote ameaçador, e lá acaba por depositar na bandeja as duas únicas moedas que descobre nas algibeiras viradas do avesso.
Zé Povinho acompanhará para sempre Bordalo Pinheiro, e no jornal A Paródia, na edição 107, que anuncia o falecimento do seu fundador, ei-lo como figura de destaque ao lado da inevitável albarda.
Também na Loja 107 a sua presença era constante, a espreitar por todos os lados: logo à entrada, à esquerda, na belíssima serigrafia de Xohan Viqueira (imagem que acompanha esta crónica); um pouco mais adiante, numa vitrina, multiplicado em vários formatos, à mistura com gatos bordalianos; ao fundo, sobre uma estante, enorme, em cerâmica, em pose de monumental manguito.
Logo nas primeiras páginas de “As Caldas de Bordalo”, surge mais um cúmplice desta aventura pelas ruas da nossa cidade, um suspeito habitual nas lides bordalianas. Trata-se do editor, João Paulo Cotrim, autor de vasta obra sobre Bordalo Pinheiro.
Íntima da cidade e de Bordalo, com quem segue de braço dado, a Isabel Castanheira convoca mais dois amigos inseparáveis do homenageado: Júlio César Machado e o gato Pires, que se esgueira pelo gradeamento do Parque à procura de festas. Seguem em amena cavaqueira, quando aparece mais alguém. Diz-nos a Isabel: «De repente, logo ao virar da primeira esquina, surgem-nos o Zé-povinho e a Maria da Paciência, pedindo para nos fazerem companhia; era impossível dizer que não a tão ilustres personagens, pelo que a alegria tomou conta do grupo, transformado em estranha comitiva em busca das boas lembranças e de remédio para as saudades…».
Na Avenida 1.º de Maio, o grupo detém-se junto à porta do n.º 9, e sobe ao primeiro andar, onde está instalada a sede da Associação Comercial dos Concelhos das Caldas da Rainha e Óbidos, uma instituição que foi casa da Isabel Castanheira nos tempos da Loja 107. Ali se revêem, num belíssimo quadro, Rafael e o seu personagem Zé Povinho.
Ouçamos a narradora: «À entrada, em lugar de destaque, deparamos com um Rafael Bordalo Pinheiro sentado, e a olhar-nos de forma perscrutante, como era seu hábito. Por cenário podemos observar vistas e figuras emblemáticas das Caldas e de Óbidos. Por companhia, alguns dos figurantes com quem gostava de confraternizar, a Ama das Caldas, em atitude maternal de despudorada amamentação pública, e o Zé-povinho de ancas balanceadas. Lagartos e rãs de esplendorosa cor verde-caldas trepam, brincalhões, por Rafael, o qual, de semblante carregado, nos provoca com o seu olhar algo melancólico… Trata-se de um belíssimo quadro do pintor caldense Taraio, a recordar-nos que Rafael Bordalo Pinheiro foi um dos fundadores da Associação Comercial, nos idos de 1902, com a designação de Associação Comercial e Industrial das Caldas da Rainha. Este quadro foi concebido em resultado da homenagem que a Associação Comercial prestou ao mais insigne dos seus fundadores na data da comemoração do seu centenário».
De regresso à rua, Zé Povinho mantém a boca escancarada pela surpresa do reencontro com a sua figura. Tirou o chapéu e com a mão direita vai coçando a cabeleira desalinhada. Eis senão quando surge nova surpresa: alguém aponta para um telhado e o grupo pára e interroga-se «É um Zé-povinho! Mas como é que este Zé-povinho foi parar acima do telhado das instalações do Centro de Educação Especial Rainha D. Leonor?».
Isabel Castanheira conta-nos. Vale a pena ouvi-la, ou lê-la, nas páginas de “As Caldas de Bordalo”.

Carlos Querido

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