“O rancho ajuda-nos a compreender o nosso passado. Quais são as nossas origens e como é que se vivia antigamente”
Registos fotográficos dizem-nos que já em 1934 existia na Fanadia um rancho folclórico organizado. Na altura as pessoas juntavam-se com o objectivo de se apresentarem nas festas anuais da localidade ou no Carnaval. Mais fotografias revelam que também nos anos 1939, 1941, 1945 e 1953 foram criados outros grupos de folclore na Fanadia, onde também chegaram a coexistir dois ranchos “rivais”.
Só em 1984 surgem “As Ceifeiras da Fanadia”, grupo que se mantém activo há 33 anos e é composto por 40 elementos, dos nove aos 88 anos. Com actuações por todo o país, este rancho junta ao seu currículo espectáculos noutros 10 países.
O antigo lagar de azeite da Fanadia que, em tempos, empregou dezenas de pessoas serve agora para acolher todo o património etnográfico do rancho desta localidade. A colecção é de Sérgio Pereira, presidente do rancho, que aqui tem expostos utensílios antigos do trabalho agrícola e objectos de artesanato que faziam parte do dia-a-dia das pessoas da aldeia no início do século passado. É precisamente neste pequeno museu que Sérgio Pereira nos recebe para contar a história das Ceifeiras da Fanadia. Para isso, é preciso recuar mais de 80 anos.
É que embora o grupo tenha surgido em 1984, fotografias antigas que estão expostas no museu revelam que os grupos de folclore são uma tradição anterior na Fanadia. O primeiro registo é de 1934, mas também há imagens a preto e branco de 1939, 1941 e 1945. Todas estas fotografias foram tiradas em frente ao lagar, pois era precisamente neste local que os dançarinos se juntavam para ensaiar.
Há também uma fotografia de 1953 em que o rancho surge atrás da Igreja das Caldas, no ano em que ganhou o primeiro lugar na categoria Singeleza, num festival organizado pela Câmara em que estiveram representadas várias aldeias do concelho.
“As pessoas juntavam-se para se apresentarem nas festas da aldeia ou no Carnaval, mas não eram grupos organizados”, conta Sérgio Pereira, revelando que chegaram a existir na Fanadia dois ranchos rivais. “Dizia-se que os trabalhadores do lagar eram do rancho da ‘Sardinha Gorda’, enquanto o pessoal que frequentava as tabernas era conhecido como os ‘Petinga Magra’. E a rivalidade era tanta que, na hora dos ensaios, o rancho do lagar ligava as máquinas para que o outro grupo não ouvisse as músicas que iam dançar”, acrescenta o responsável.
Foi após o 25 de Abril que se deu o “boom” dos ranchos folclóricos e a Fanadia não foi excepção. A ideia de fazer ressurgir um grupo deste género na localidade veio agregada ao facto de, na altura, outro dos objectivos ser a construção de um salão de festas onde também estivesse incluída a sede do Grupo Desportivo da Fanadia. “Queríamos concentrar as pessoas à volta da construção do pavilhão e o rancho servia esse propósito”, afirma Sérgio Pereira, realçando que em Agosto de 1983 um grupo de miúdos da escola primária actuou pela primeira vez. “E se já lá estavam as crianças, por que não chamar os pais? Foi assim que, no ano seguinte, surgiram as Ceifeiras da Fanadia”, conta o presidente.
O nome escolhido para o rancho deve-se ao facto do trigo e do milho serem dois recursos importantíssimos na economia da Fanadia no século passado. Além do vinho. Mas a designação Ceifeiras da Fanadia é também uma homenagem à Tia Deolinda, que era (re)conhecida na aldeia pela forma como ceifava. “Fazia-o sem medo nenhum e não ficava atrás dos homens”, reconhece Sérgio Pereira.
TRAJE MUITO COLORIDO AO INÍCIO
Os ranchos da região da Estremadura, que surgiram nos anos 80, trajavam na sua maioria de forma muito semelhante. Saia vermelha, avental e meia branca para as senhoras, calça e colete preto e camisa branca para os homens. Mas curiosamente as Ceifeiras da Fanadia nunca adoptaram estas vestes tradicionais.
“Cada saia tinha uma cor diferente, por isso éramos um rancho colorido e muito bonito de se ver ao vivo”, salienta Sérgio Pereira, revelando que em 2007 o grupo decidiu adoptar trajes etnográficos.
Hoje representam desde o homem que trabalhava no campo, à senhora que passava o dia em casa a bordar, aos domingueiros que vestiam o seu melhor conjunto no último dia da semana para irem à missa. A qualidade dos tecidos aumenta à medida que se sobe no estrato social e também é regra que as raparigas novas usem cores mais garridas, ao passo que os elementos de mais idade vestem trajes mais sóbrios.
Mas, no que respeita aos fatos de trabalho, é nos detalhes que se encontram diferentes profissões. “Por exemplo, o homem do lagar tem sempre as calças arregaçadas para que se vejam as ceroulas, o chapéu de palha identifica o homem que andava na eira, o barrete representa o típico camponês e o avental e lenço brancos são símbolos da leiteira”, explica Sérgio Pereira.
Cada vez mais, as actuações do rancho da Fanadia procuram juntar à dança um conjunto de recriações etnográficas. “Tentamos recriar essa espontaneidade com que se organizavam antigamente as pessoas quando iam dançar”, diz o ensaiador, revelando que as enxadas, as vassouras, as cestas, a bilha do leite e o barril de vinho são alguns dos utensílios que fazem parte do espectáculo.
Antes de cada dança cria-se uma cena. A “Laurita”, por exemplo, é antecedida de uma pequena representação teatral em que conversam um rapaz e uma rapariga, de classes sociais distintas, e que são imediatamente interrompidos pelo pai da moça, que vê com maus olhos aquela situação. A própria letra da música aborda esse passo hesitado com que os homens se dirigiam às mulheres por saberem que pertenciam a mundos e ambientes diferentes.
FOLCLORE TEM CADA VEZ MAIS QUALIDADE
Entre os viras e os verdes gaios, os corridinhos e as valsas, há espectáculos de folclore com cada vez mais qualidade. Afirma-lo Sérgio Pereira, que realça que ao longo dos anos as apresentações têm ficado mais elaboradas e exigentes no que respeita à sua componente etnográfica. “Um grupo que se forme hoje deve preocupar-se não só com o folclore, mas também com a etnografia. Afinal não é só a dança que identifica uma sociedade antiga: é também a sua forma de vestir, estar, os seus utensílios e a sua gastronomia”, defende o responsável, acrescentando que “só assim é que esta arte pode evoluir no sentido de ser mais reconhecida”.
É pois esta representação detalhada que permite ao ranchos assumirem uma identidade. E essa diferenciação sente-se quando actuam lá fora. “É quando nos cruzamos com grupos de outros países tão diferentes do nosso que nos apercebemos que o folclore e a etnografia são um espelho da nossa cultura”, realça Sérgio Pereira. A forma alegre, efusiva e despreocupada como dançam os ranchos nacionais reflectem o espírito de vida e o modo como os portugueses se relacionam uns com os outros. E é este o sentimento que os 40 elementos das Ceifeiras da Fanadia têm partilhado desde que actuam além fronteiras.
Em 2001 estrearam-se em Espanha no Encontro Europeu de Cultura Popular EUROPEADE. Seguiram-se países como Bélgica (2002), Letónia (2004) França (2005), Dinamarca (2007), Itália (2010), Estónia (2011). Polónia (2014) e Finlândia (2017). Em 2006 saíram da Europa com uma actuação no Canadá.
Todas estas saídas ao estrangeiro são suportadas pelo grupo – só para a Finlândia cada passagem de avião custou 400 euros – embora lá fora o rancho não pague estadia nem alimentação e ainda receba pelas actuações. Para suportar estes gastos são essenciais as receitas obtidas nos dias das Tasquinhas da Expoeste, a participação no Carnaval (que implica um subsídio) e os espectáculos contratados pelo Inatel. Além dos 2000 euros dados pela Câmara todos os anos.
“Mas todos nos queixamos que continuam a faltar apoios… é um mal geral porque o folclore não é devidamente valorizado pelos políticos. Aliás, se for preciso até é tratado de forma depreciativa”, refere Sérgio Pereira.
AS MELHORES HISTÓRIAS SÃO AS PARTIDAS
Este ano o rancho da Fanadia já actuou 20 vezes, mas prevê-se que cheguem pelo menos às 30 apresentações até ao final de 2017. É precisamente das saídas ao exterior que ficam as melhores histórias para mais tarde recordar. Principalmente se forem pregadas partidas nessas viagens.
“São partidas elaboradas em que as ‘vítimas’ são os nossos caloiros”, diz Sérgio Pereira, dando como exemplo a partida pregada ao dançarino João Pedro na ida à Finlândia. “Um mês antes pedi que lhe tirassem uma fotografia em que estava com a barba grande e o cabelo despenteado. Depois fiz com essa imagem um documento que o identificava como indivíduo suspeito, escrito em inglês e finlandês e até com carimbos da polícia da Finlândia, de Portugal e do SEF”, conta Sérgio. Já na Finlândia o jovem foi surpreendido quando um homem (membro de outro rancho) se fez passar por um agente que estava à sua procura e queria revistá-lo. Um valente susto que acabou depois em muitas gargalhadas quando João Pedro viu o cartaz que dizia “Apanhado”.
É neste ambiente de brincadeira que Laura Ornelas e Vera Paulo, ambas com 13 anos, encontram uma segunda família. E que outros elementos – incluindo pessoas com necessidades especiais – foram sempre recebidos num verdadeiro espírito de integração.
Na opinião de Laura Ornelas, o rancho funciona em equipa. “Não somos 40 pessoas, somos um só… e é esse apoio constante que nunca nos faz desistir”, diz a jovem que nunca ouviu dos seus colegas de escola qualquer comentário preconceituoso. “A maioria dos meus colegas é da aldeia, então também gostam deste tipo de actividades e se for preciso até me pedem para pôr um corridinho na festa de final de ano”, brinca.
Da mesma forma Vera Paulo nunca se sentiu discriminada, mas também não pensa muito nisso. “Eu gosto mesmo disto e não é a opinião das outras pessoas que me vai fazer mudar de ideias”, afirma, realçando que os ranchos permitem aos seus elementos compreenderem como é que se vivia antigamente. “Acabamos por ser pessoas mais ricas porque aprendemos muito sobre o passado e entendemos as nossas origens”, acrescenta.
33 anos de história…
1983-1989: Existe o rancho infantil As Trigueirinhas
1984: Constitui-se o Rancho Folclórico e Etnográfico “As Ceifeiras” da Fanadia; Organiza-se o primeiro festival de folclore.
Desde 2001: Participações internacionais no Encontro Europeu de Cultura Popular EUROPEADE – Espanha (2001), Bélgica (2002), Letónia (2004), França (2005), Dinamarca (2007), Itália (2010), Estónia (2014) e Finlândia (2017).
2006: Actuação no Canadá.
2007: Alteração dos trajes, com a adopção de trajes etnográficos típicos da região da Estremadura.