Rancho Folclórico e Etnográfico “Os Azeitoneiros” de Alvorninha

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Gazeta das Caldas
O Rancho de Alvorninha nas tasquinhas da expoeste |Flávio Leandro

“Antigamente só dançávamos. Hoje em dia também representamos, como se fossemos actores”

Há 34 anos que o Rancho Folclórico e Etnográfico “Os Azeitoneiros” de Alvorninha levanta os braços e bate o pé em representação do folclore. Desde 1989 que tem o “selo de qualidade” da Federação de Folclore Português e distingue-se por todas as vezes em que já levou o nome de Alvorninha além fronteiras. Espanha, Inglaterra, Estados Unidos, Suíça, Turquia, Polónia, Suécia, Grécia, Canadá, França e Irlanda foram os países em que actuaram até 2006, ano em que interromperam as internacionalizações devido à crise.
Actualmente os Azeitoneiros são cerca de 40 elementos, dos quatro aos 70 anos e ensaiam todas as sextas-feiras na antiga escola primária de Alvorninha.

Os trabalhadores do campo passavam o dia a cantar. Principalmente as mulheres. Era a distração que encontravam para os dias parecerem mais curtos e o trabalho menos duro. Em Alvorninha – a maior freguesia do concelho em termos territoriais – existiam, entre os finais do século XIX e a década de 30 do século XX – para cima de 12 quintas onde se trabalhava na apanha da azeitona. Da recolha do fruto à sua transformação em azeite, os trabalhos duravam de Novembro a Janeiro.
“Vinha muita mão de obra de outras regiões do país, por isso é que encontramos em Alvorninha danças que não são estritamente típicas da Alta Estremadura mas também de outras regiões”, conta o acordeonista Nelson Pinheiro, acrescentando que esta mistura de tradições era transmitida de geração em geração através do passa a palavra.

Até havia quem cantasse de um olival para outro. As quadras circulavam conforme a força do vento e muitas vezes escondiam mensagens provocatórias que, entre os versos, passavam despercebidas aos menos atentos. “Era o humor que se fazia na altura, às vezes uma forma de desafio entre as quintas, e um exemplo de como o canto também podia funcionar como arma dos poetas populares”, diz Nelson Pinheiro, que pertence aos Azeitoneiros há 22 anos.
Actualmente, o rancho de Alvorninha não interpreta apenas os cantares e dançares típicos daquela época, mas recria todo o ambiente que era vivido nas quintas. O soar do búzio indicava que o dia de trabalho chegara ao fim e seguia-se o percurso do olival até à quinta, onde normalmente os trabalhadores eram acolhidos durante a campanha da azeitona.
“Juntavam-se ao final do dia e geralmente existia algum tipo de animação musical. Até se davam casos em que os trabalhadores reuniam dinheiro entre todos para pagar a um tocador que se dirigisse à quinta, em dias de baile”, realça o acordeonista, acrescentando que quando não existiam instrumentos, o som produzido pelos utensílios de trabalho servia o efeito. Era o desenrasca da altura: importava apenas que se criasse uma melodia, pois o vinho, o bagaço, as vozes e a boa disposição faziam o resto.
O objectivo dos Azeitoneiros é que o público perceba que os momentos de dança eram antecedidos de um dia passado no campo e que se de um lado se posicionam os trabalhadores, do outro estão os patrões. Os trajes ajudam a separar as classes, mas a postura também conta. É que naquela época não existiam misturas: os burgueses tinham as suas próprias festas, onde não participavam os camponeses, e vice-versa.
Também os objectos contribuem para a recriação etnográfica, desde os cestos e panos que eram utilizados na apanha da azeitona, aos barris de água, ao alqueiro (unidade de medida do fruto) e às varas.
O cenário é montado ao pormenor, tal como no teatro, e há mesmo um elemento que assume o papel de apresentador e vai contando ao público a história que se esconde por detrás de cada cantiga.

“SOMOS ACTORES”

Na opinião de Nelson Carpinteiro “cada elemento do grupo deve perceber em primeiro lugar aquilo que traz vestido e os utensílios que o acompanham, para melhor representar a sua personagem”. Isto porque, cada vez mais, “a actuação é uma espécie de teatro, uma recriação etnográfica, em que nós somos actores e representamos os costumes dos nossos antepassados”, diz o acordeonista.
Enquanto nos primeiros tempos bastava saber-se dançar, mexer os pés em movimentos rápidos e ter os braços bem levantados, hoje exige-se a cada elemento que encarne o papel do personagem-tipo que representa.
Para se aproximarem o mais possível das roupas usadas naquela época, o grupo tentou perceber, junto das pessoas mais velhas da freguesia e através de fotografias, como é que burgueses e camponeses se vestiam. São poucas as peças originais que conseguiram recolher, mas mandaram fazer de raiz os trajes com os tecidos e padrões que na altura eram moda.  À medida que o estrato social avança, mais complexo é o traje e de melhor qualidade são os tecidos.
Mas nos primeiros anos do rancho de Alvorninha, as vestes eram muito diferentes. “Inicialmente éramos apenas um grupo folclórico de dança, não incluíamos a componente etnográfica e vestíamo-nos todos de igual, como era comum à maioria dos ranchos no pós-25 de Abril: o homem dançava de calça preta, camisa branca e colete preto, a mulher exibia uma saia vermelha”, recorda Nelson Carpinteiro.
Estará o folclore a reinventar-se? Paulo Clemente, presidente do Rancho “Os Azeitoneiros”, diz que sim e compara-o ao fado. “Antes ninguém ligava ao fado, mas houve um conjunto de artistas que souberam trazê-lo à tona, reinventá-lo. Talvez aconteça o mesmo com o folclore, graças ao crescimento da etnografia, e assim mais facilmente cheguemos às pessoas”, refere, frisando que actualmente esta é uma arte muito mais valorizada que no passado.

GRUPO INTERNACIONALIZADO

Criado em 1983 por um grupo de jovens, este rancho designava-se inicialmente “Juventude em Flor” e actuou pela primeira vez na inauguração das obras da Igreja de Nossa Senhora da Visitação, em Alvorninha. Passados três anos adoptaram o nome actual e desde então têm actuado não só de norte a sul do país, como além-fronteiras, sem nunca interromper a sua actividade. Em Espanha deu-se a primeira internacionalização, seguindo-se Inglaterra, Estados Unidos, Turquia (com escala na Suíça), Polónia, Suécia, Grécia, Canadá, França e Irlanda. Isto de 1986 a 2006.
“Normalmente as internacionalizações eram feitas de dois em dois anos e em 2008 veio a crise… como as deslocações sempre foram pagas pelo grupo e tanto os subsídios como as nossas fontes de rendimento diminuíram, fomos obrigados a parar”, conta Paulo Clemente.
Interromperam-se as viagens, mas não se interromperam os espectáculos. Nem os projectos. Em 2009 Os Azeitoneiros estrearam-se no lançamento de um DVD. “Época de um povo” retrata as vivências das gentes da freguesia de Alvorninha através de imagens e vídeos, inclui os dançares e os cantares do grupo, mas também testemunhos reais de quem viveu esses tempos.
Embora a agenda esteja menos preenchida que há uns anos, o grupo tem serviços com muita regularidade e, nos meses de Verão, quase todos os fins-de-semana. Basicamente actua por parceria com outros ranchos (isto é, vai dançar às localidades dos grupos que convida para o seu festival), a convite de unidades hoteleiras da região (tem inclusive um protocolo com o Inatel, actuando maioritariamente para franceses), em festas populares, eventos como as Tasquinhas ou o Caldas Anima, programas de televisão e, há bem pouco tempo, foi convidado a apresentar-se no casamento da fadista Cuca Roseta, que se realizou em Óbidos.
Desde 2007 que o rancho também dedica o primeiro mês do ano ao cantar das Janeiras nas várias localidades da freguesia de Alvorninha. Fá-lo principalmente às sextas-feiras e sábados à noite, batendo à porta das casas das pessoas. De ano para ano tem sido melhor recebido, às vezes com mesas fartas à espera do grupo.

“AS PRINCIPAIS DIFICULDADES SÃO HUMANAS”

Dina Carlos e Manuela Bernardo estão há mais de 25 anos no rancho. É muito tempo e alguma coisa mudou. “Hoje há menos predisposição para o voluntariado e há menos sentido de compromisso, um mal que é transversal às associações em geral e não apenas ao nosso rancho”, diz Dina Carlos, realçando que quando entrou no grupo, aos 16 anos, “a vontade e disponibilidade das pessoas eram maiores”.
Claro está que naqueles tempos não havia tanta gente a trabalhar por turnos ou aos fins-de-semana, os jovens não tinham tantos entreténs nem existia telemóvel. Não há dúvida que a organização da sociedade mudou, mas será isso desculpa para tudo?
“Não podemos abandonar o barco porque achamos que não temos tempo… quando há vontade encontra-se sempre disponibilidade”, acrescenta, realçando que recentemente tem desenvolvido no rancho dinâmicas de grupo, precisamente para “quebrar o gelo” no final dos ensaios, de forma a fortalecer as relações humanas entre os vários elementos.
Manuela Bernardo concorda e lembra-se que entrou para o rancho pelo convívio. Não sabia dançar, nem sequer ligava ao folclore. Mas as raízes que aqui criou ficarão para sempre: foi neste grupo que conheceu o marido e para onde também levou a filha. “Hoje as pessoas já não integram o grupo tanto pelo convívio ou pelas amizades, mas mais pelo gosto pela dança e pelo folclore…”, afirma, realçando que outra diferença é que antigamente existiam poucas actividades além das actuações, mas actualmente há eventos em que o rancho participa e nem sequer dança (como as Tasquinhas). Além disso, nos dias de hoje, os ensaios rigorosos são a prova de que existe cada vez mais preocupação com a qualidade da performance do rancho. Há uns anos não era bem assim.
Embora o rancho seja uma viagem ao passado, há valores que este representa que deveriam ser recuperados para o dia-a-dia presente, defende Dina Carlos. A humildade e a simplicidade são dois exemplos. É que “hoje as pessoas preocupam-se demasiado com a aparência exterior ou a forma de estar… naquele tempo as mulheres nem se arranjavam, vestiam-se com roupas velhas, mas apesar de terem pouco eram felizes”.

34 anos de história…

1983: Fundação do rancho, inicialmente designado “Juventude em Flor”
1986: Adopção da actual designação; Constituição da associação com o mesmo nome; Participação no Piquenicão em Ferreira do Alentejo com transmissão em directo na Rádio Comercial
1986-2006: Actuações em 10 países diferentes (Espanha, Inglaterra, Estados Unidos, Turquia, Polónia, Suécia, Grécia, Canadá, França e Irlanda)
1989: Torna-se membro da Federação de Folclore Português
1999: Organização do primeiro festival internacional de folclore nas Caldas da Rainha (evento interrompido desde 2007)
2009: Lançamento do CD e DVD “Época de um Povo”
2017: Actuação no casamento da fadista Cuca Roseta