“O teatro continua a ser presencial e a ter por base a palavra”, defendeu Fernando Mora Ramos

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Fernando Mora Ramos
O actor e encenador propôs uma viagem pela sua vida
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Uma viagem pela sua vida e pelo teatro em Portugal, antes e depois de Abril, foi a proposta do actor e encenador Fernando Mora Ramos, o convidado para a quarta conferência do ciclo “O Tempo Mudou”, organizada pelo PH e que teve lugar a 15 Dezembro, nos Capristanos.

A primeira peça que assistiu foi “A Última Bobina”, de Samuel Beckett com o actor Amílcar Botica, no Gil Vicente. “Saí de lá angustiado, sem rumo com uma dor sem ferida palpável, indefinível”, afirmou Fernando Mora Ramos, que descreveu outras sensações que teve à medida que assistia a peças de outros autores.

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O seu irmão mais velho levou-o para o Teatro dos estudantes universitários de Moçambique e aos 16 anos representou o Senhor Stone – na peça de Priestley. Também nessa idade conheceu a censura, pois ensaiou “Quanto custa o ferro?” de Brecht, que agora está de volta ao Teatro da Rainha numa encenação de Luís Varela. Esta peça didática sobre a ascensão do nazismo subirá ao palco no próximo mês de Fevereiro. Participou também na Noite da Guerra no Museu e esta, dirigida por Mário Barradas, chegou ao Teatro Nacional de Estrasburgo. Vivia-se em 1971-72 e o teatro “nunca mais me saiu do corpo”.
Na primeira parte da conferência, Mora Ramos entregou um texto pelos presentes que ia lendo em alternância com o jovem actor Tiago Moreira. Foi desta forma original que deu a conhecer as mudanças das diferentes fases da sua vida, dedicada ao teatro.

As liberdades possíveis no Conservatório antes do 25 de Abril

Em 1973 ingressou no Conservatório Nacional no curso de Dramaturgia, numa altura em que se vivia a reforma pedagógica de Madalena Azeredo Perdigão. Dentro do Conservatório “tínhamos as liberdades que cá fora não eram permitidas – éramos protegidos – se alguma coisa o marcelismo foi, ali percebia-se”, disse Mora Ramos.
Depois veio o 25 de Abril de 1974, o Conservatório foi tomado pelo MRPP e o orador convidado a dar aulas. Em Março de 1975 começou a sua profissão no Centro Cultural de Évora (CCE). Mais tarde estagiou, como bolseiro da Fundação, no Piccolo Teatro em Milão e na Sorbonne Nouvelle .
No CCE eram uma equipa a viver fora de Lisboa e Porto, “seguindo a lição da descentralização francesa e dando o primeiro passo para a criação de uma democracia cultural”, disse Mora Ramos, explicando que esta seria uma democracia constituída por polos de criação, radicados nas cidades interiores, como instrumentos de criação/formação.
O orador, que começou a fazer teatro profissional em plena reforma agrária, corria as aldeias, os celeiros, as garagens e os bairros para o levar às populações. “A palavra de ordem era fazer de um modo regular e sistemático os clássicos e os contemporâneos”, contou o convidado, descrevendo como eram intensas as reacções do público às representações. Não eram raras as vezes que lhes pediam para repetir as representações.
E havia outro género de intervenções do público. Em Santiago do Alandroal estavam a representar num primeiro andar e a entrada de um bêbado na sala “pôs os espectadores em fúria, tendo ele sido corrido pela escada abaixo”. Em Benavila, nas Histórias do Ruzante, as mulheres “quiseram fazer uma espera à actriz que em cena metia os cornos ao Ruzante trocando-o pelo mercenário Tonin”. Em Alcáçovas, a GNR “mandava calar os espectadores que se riam pois era preciso ter respeito”, disse Mora Ramos, explicando que era assim que o país real que se ia soltando.
“Uma tradição como o teatro, mesmo plantada de estaca, leva décadas a incorporar-se na comunidade que dela se deve apropriar”, referiu.
Nos finais de setenta, o CCE tinha protocolos de digressão com 11 autarquias do distrito de Évora. Passavam a vida na estrada, a montar e a desmontar e em cada terra aconteciam duas a três criações por ano.

O pequeno teatro de criação impõe-se

As digressões foram diminuindo, outras coisas foram aparecendo e o país foi mudando. “Tivemos de repensar tudo do zero de novo, deitar abaixo este tudo, todo cheio e compacto de vida virtualizada que nos esmaga – sabotar a constante ocupação do tempo de um modo dependente em formas de inter-passividade animada. É preciso inventar um novo real”, referiu Mora Ramos. Para o orador é necessário um teatro “que nos liberte dos extremismos, do não há alternativa e das visões pré-fabricadas que as cartilhas encerram”.
Acha então que era preciso “libertarmo-nos da omnipotência do consumo numa sociedade refém do mercado e dos seus cenários peculiares da omnipresença dos ecrãs e narrativas publicitárias”.
Mora Ramos considera que o pequeno teatro de criação mudou tanto que “mudará por certo para a frente, mesmo que tudo pareça parado neste festa contínua de consumo no espectáculo”.
A entrada em concurso do edifício teatral para o Teatro da Rainha nas Caldas da Rainha é “o sinal mais claro da mudança por vir”. Este novo edifício apresentará várias possibilidades cénicas e “será um microcosmo global que é um laboratório do mundo”. No novo espaço será possível receber 98 pessoas por razões de segurança. “Recusamos a dimensão massiva, queremos um teatro de todos mas de câmara também”, informou o actor e encenador.
E como hoje se vive num mundo onde as relações são virtuais pois as pessoas relacionam–se cada vez mais através do computador (ficando cada vez mais solitárias), “o teatro ganha uma nova força, continuando a apostar na palavra e na presença”, rematou Mora Ramos.

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