Entre a Mata e o Parque – percursos e memórias

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José Carlos S. de Almeida | DR

Cresci entre a Mata e o Parque. Nos primeiros anos brincava, sobretudo, na Mata; com o passar do tempo, o meu foco deslocou-se da Mata para o Parque, porque era aqui o liceu, a biblioteca, o parque das bicicletas, o Salão Ibéria, a Casa da Cultura, o melhor que havia na cidade e que foi acabando. E onde a triste história recente da Esplanada do Parque é o seu exemplo mais paradigmático. O Parque desde há muito que conta a história duma desgraça anunciada. Mas essa ficará mais tarde. A história, que a desgraça já cá anda.
A Mata, essa, nunca me defraudou. Talvez por isso, regresse sempre a ela com uma comoção renovada. Sempre que passeio pela Mata sinto um enorme fascínio e prazer, o que me obriga a prolongar a minha deambulação por entre os seus caminhos sombrios e as suas veredas irregulares. No Parque não deambulo, os seus caminhos e a sua preocupação geométrica condicionam o meu percurso. A liberdade está do lado da Mata. Claro que o fascínio que em mim a Mata exerce tem também a ver com as minhas mais longínquas memórias. Pouco depois de entrar na escola primária (na chamada “escola da polícia de trânsito”) viria a alterar os meus percursos. Então, atravessava o parque, algo impensável em relação à Mata: ninguém atravessa a Mata! Só comecei na altura a parar no Parque para me demorar na biblioteca e mergulhar na sua atmosfera mágica, de cheiros, livros enormes e raparigas bonitas, tão inalcançáveis como os livros das últimas prateleiras. Mais tarde, também parava no Parque devido a umas cadeiras individuais, de diversas cores, disputadíssimas no verão. O Parque era um espaço de lazer, mas já não valia por si. Aos poucos, viria a ser instrumentalizado, posto ao serviço de eventos festivaleiros e bimbos, que o maltratam.
Mas voltemos à Mata. Curiosamente, apesar desse passado longínquo, a Mata é mais um local de descoberta, ou constante redescoberta e não tanto um lugar de nostalgia. A Mata, através daquilo que nela é espontâneo, desalinhado, apresenta espaços únicos, irrepetíveis, surpreendentes. A Mata oculta e revela, nesse sentido grego da verdade como aletheia, enquanto desvelamento. Acaba por estimular os nossos sentidos e apela à nossa imaginação permanente. Num jardim geométrico, politicamente absolutista, tal relação não existe, porque cada pequeno espaço, cada pequeno recanto repete na sua escala uma ordem absoluta, como o Jardim de Versalhes refletia exemplarmente, espaço de rigor geométrico, a meio caminho entre uma natureza primária e uma realidade artificializada por uma engenharia e arquitetura nascentes, subordinadas ao poder real absoluto que o jardim pretendia simbolizar e consagrar.
Neste sentido, a Mata, na sua ingenuidade, é um espaço que se auto-produz. Um espaço próprio da poiésis grega, que permanentemente se renova. E nos renova ao espantar o nosso olhar. A Mata é um permanente apelo à nossa reflexão. Alguém medita no Parque?…
O Parque, seguindo o modelo do jardim, reflete a busca da ligação do homem à natureza, de recuperação dessa moradia mais original e de que o Jardim do Éden é paradigma. Mas por aí também se vê a nossa perdição. Pobre Parque, que conta a história da vã cobiça dos homens, que lhe vão impondo a sua vaidade. A Mata, descuidada, mas ao abrigo da imprudência humana, já há muito lhe sobreviveu.

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