Gazeta das Caldas foi às escolas perceber melhor o trabalho desta nova figura do sistema educativo português
Isaque Vicente
As escolas em Portugal têm recebido milhares de alunos de diversas nacionalidades, com diferentes graus de proficiência na língua portuguesa, o que acarreta grandes desafios, para os quais foi criada a figura do mediador linguístico e cultural. Nas Caldas existem já três a trabalhar nos Agrupamentos de Escolas Raul Proença e D. João II. Gazeta das Caldas foi às escolas perceber como estão a ser os primeiros meses desta nova figura do sistema educativo português.
O Ministério da Educação, Ciência e Inovação realçava numa nota informativa sobre este tema, que “nos últimos anos, o aumento do número de alunos estrangeiros no sistema educativo português tornou mais exigente o trabalho das escolas no acompanhamento e na inclusão dos seus alunos, face aos diferentes contextos educativos destas crianças e jovens” e que, “em muitos casos, acresce também a barreira linguística, visto que uma parte significativa dos alunos estrangeiros recém-chegados nasceu num país onde não se fala português ou onde não se utiliza o mesmo alfabeto”. E daí que tenha criado esta figura e autorizado a contratação de quase 300 mediadores linguísticos e culturais para todo o país (num investimento a rondar os 10 milhões de euros), com o objetivo de que, pelo menos, 75% dos alunos imigrantes recém-chegados a Portugal sejam acompanhados.
A mesma nota recorda que entre os anos letivos 2018/19 e 2023/24, “o número de alunos estrangeiros evoluiu de 53 mil para 140 mil, aumentando a sua representatividade no total de alunos de 5,3% para 13,9%” e “esta evolução foi particularmente rápida nos últimos anos: em dois anos letivos, o número de alunos estrangeiros duplicou, de 70 mil para 140 mil”. Em média os agrupamentos têm hoje alunos de 19 nacionalidades, quase o dobro do que tinham em 2018/19 (11). O agrupamento que a nível nacional tem mais nacionalidades entre os seus estudantes conta com 46 países de origem diferentes. “Com base nos dados de 2023/2024, cerca de metade (52%) dos alunos com nacionalidade estrangeira é brasileira e cerca de 7 em cada 10 alunos (72%) são oriundos de um país da Comunidade de Países de Língua Portuguesa”, ou seja, “isto significa que 28% dos alunos de nacionalidade estrangeira terá tido pouco ou nenhum contacto com a língua e a cultura portuguesas antes da sua chegada a Portugal”. A mesma nota esclarece que, “olhando para a evolução desde 2018/2019 e excluindo os países de língua oficial portuguesa, as nacionalidades com maior aumento em número e percentagem do total são as da Índia, Venezuela, Paquistão, Bangladesh, Colômbia, Argentina e Rússia”.
Na prática o que fazem?
Mas afinal, o que é que faz o mediador? Procura “acelerar a aquisição da língua portuguesa com vista ao sucesso escolar dos alunos, e promover a integração dos alunos estrangeiros na cultura portuguesa e o contacto de todos os alunos com as culturas de origem dos seus colegas estrangeiros”. Assim, “trabalham com os alunos, com os professores e, sempre que necessário, com outros profissionais da Educação e com as famílias”, explicam, notando que “não são animadores de atividades no período do recreio ou meros tradutores, mas sim profissionais que trabalham ao lado dos professores, em prol de todos os alunos”.
João Silva, diretor do Agrupamento de Escolas Raul Proença, disse à Gazeta das Caldas que o agrupamento conta mais de 20% de alunos estrangeiros, ou seja, mais de 600 alunos de mais de 40 nacionalidades. Neste caso, explica, mais do que ensinar a língua, procuram dar-lhes a conhecer “os nossos traços culturais principais, como é que nós funcionamos e como é que nos integramos”.
O diretor não tem dúvidas em afirmar que a criação desta figura é algo de “altamente positivo” e gostaria que se pudesse manter.
Os primeiros meses
Ana Batista é a mediadora da EB Santo Onofre. Caldense, é psicóloga clínica, exerce no Estabelecimento Prisional de Caldas e, um dia por semana, dá consultas na União de Freguesia de Santo Onofre e Serra do Bouro. Como mediadora começou por fazer contactos individuais e questionários para perceber a realidade cultural, como é o seio familiar dos alunos e a ligação destes com a escola, assim como as capacidades linguísticas. Trabalha com 36 alunos de oito nacionalidades e lamenta o facto de terem iniciado apenas no terceiro período, que não permite um trabalho prático muito extenso. Se tivessem começado no início do ano “seria muito mais otimizado, por um lado, com alguns professores de disciplinas práticas, porque apesar de os alunos não dominarem a língua, há disciplinas que promovem muita cooperação em grupo, por exemplo, a educação física e as artes”. Mas também “temos datas comemorativas que podem ser aproveitadas” para a integração e, no futuro, criar um clube da interculturalidade.
Por sua vez, Ana Janeiro, também ela caldense, trabalhou no Cencal e é a mediadora das escolas Raul Proença, Bairro dos Arneiros, Bairro da Ponte e Centro Escolar. Em termos de ferramentas de trabalho, explica, por exemplo, que já sentiu necessidade de recorrer a um tradutor, “mas a maior ferramenta é a relação humana, a capacidade de escuta, de perceber como é que está aquela criança, é a capacidade de empatia e é isso que se tenta construir”. Defende que o trabalho individualizado tem vantagens quando falamos de estabelecer confiança, “até porque há questões, muitas das vezes, também para lá da língua, de natureza emocional”. Na sua atividade “já aconteceu ser um apoio para os professores em sala de aula” e fora dela, em que trabalha também os conteúdos que os professores sugerem. “Tenho desenvolvido dinâmicas com turmas, com todos, independentemente de terem um, dois ou dez alunos estrangeiros, em que se apresentam, dizem em que país nasceram e depois colocar uma série de questões e fazer um pequeno debate promovendo a empatia, que se consigam colocar no lugar do outro, que pensem como seria se chegassem a casa e os pais dissessem que no final da semana iam ter que se mudar para outro país, que receios teriam, como é que reagiriam, o que é que ajudaria?”. Outra atividade passa por coloca-los a perceberem as diferenças e as semelhanças, acabando por perceber que há muito mais do que os une”. Paralelamente, procura celebrar a diversidade cultural, com eventos ou criação de playlists musicais. Trabalha com 37 alunos do 1º ao 12º ano, de 11 nacionalidades
Outra das medidas do Aprender Mais Agora foi a criação de um nível zero de proficiência em Português Língua Não Materna, que pretende ser um ponto de partida para quem não tem qualquer conhecimento nesta língua. Nesse sentido, no agrupamento Raul Proença foi desenvolvido pela professora Anabela Silva um curso intensivo de Português Língua Não Materna para estes alunos, mas também para os dos níveis A1 e A2, que procurou desenvolver a oralidade e terminou com uma visita de estudo na cidade das Caldas, onde ficaram a conhecer melhor a localidade e a sua história, antes de um almoço convívio com gastronomia dos vários países. Anabela Silva considera que as mediadoras serão “uma mais-valia”, principalmente ao nível da integração e inclusão.
No agrupamento de escolas D. João II trabalha Inês Geraldes, que é do Bombarral e cuja formação é na área das línguas, com licenciatura em Línguas Modernas – Alemão e Inglês – e mestrado em Tradução. Também ela lamenta o facto de terem começado a trabalhar tão tarde no ano letivo, realçando o trabalho feito pelos vários professores e em particular pelos de Português Língua Não Materna ao longo do ano. Tem a seu cargo mais de 30 alunos da escola sede e das cinco primárias.
Também ela começou por conhecer os alunos para depois se adaptar às necessidades de cada um, trabalhando individualmente e em grupo com os estudantes.
Para o próximo ano pretende articular o seu trabalho com os professores e apoiar, numa primeira fase, na aquisição de competências linguísticas e, depois, na divulgação da cultura portuguesa, mas também das suas culturas junto dos colegas.