Nas comemorações do 43º aniversário da luta contra a construção de uma central nuclear em Ferrel, defendeu-se a ideia de que esta localidade deveria ser uma eco-vila, apostando nas renováveis, na reciclagem e na diminuição dos resíduos.
A efeméride foi também assinalada com uma congresso sobre energia e ambiente e uma recolha de lixo na praia do Baleal.
No I Congresso Internacional Energia e Ambiente que se realizou em Ferrel no dia 17 de Março, organizado pela Patrimonium e Junta de Ferrel, todos os oradores concordaram que o nuclear não é opção. É que esta não é uma energia renovável nem barata e funciona com uma carga nominal, ou seja, é fixa, enquanto o consumo é variável, o que leva a que durante a noite seja produzida energia que é desperdiçada. Mas o argumento decisivo é que, ainda por cima, é uma energia perigosa.
Na ordem do dia estiveram ainda as alterações climáticas.
No dia anterior (sábado), Jacinto Rodrigues (que era o professor dos aluinos que pintaram o mural em 1978) sugeriu que Ferrel deveria ser uma eco-vila, com o desenvolvimento das energias renováveis e com um processo de reciclagem total, “caminhando para uma sociedade que não produza lixos, mas sim nutrientes que possam entrar novamente no metabolismo circular”.
Mas esta mudança tem que ser mais profunda, defendeu o orador, que acha que é preciso abandonar o Capitalismo (que vem dos séculos passados e se centra no crescimento) para se passar para uma ideia de eco-sistema.
Na tarde de domingo o congresso – subordinado ao tema “O nuclear e transição energética” – juntou cerca de uma centena de pessoas no jardim infantil de Ferrel.
Pedro Barata, presidente da Junta de Freguesia de Ferrel, concordou com o conceito de eco-vila e explicou que estão no ano zero da estratégia de promoção da vila através da História e do episódio que inscreveu o nome da vila na mesma.
O autarca quer fazer obras na Junta subindo o resto do edifício para alargar o primeiro andar e aí criar um anfiteatro e um espaço museológico dedicado à luta contra o nuclear. Actualmente o primeiro andar tem apenas uma pequena sala, onde já chove. A obra tem uma estimativa de custos entre os 100 e os 120 mil euros.
Nos planos de promoção da vila está ainda uma candidatura para tornar Ferrel na capital comunitária desta luta. Este ano foi assinado um protocolo com a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto – que tem uma ligação ao episódio de Ferrel pelo mural pintado por estudantes dessa escola – para que os alunos construam em mosaico e pintura outros símbolos históricos para colocar na vila.
No âmbito desta estratégia, António Eloy sugeriu a celebração de geminações com os 12 locais onde estiveram previstas 23 centrais nucleares, a criação de um roteiro da manifestação e outros roteiros históricos.
Em relação à possibilidade de Ferrel ser a sede europeia do Uranium Film Festival, Pedro Barata esclareceu que a Junta não tem capacidade financeira para suportar o evento.
O ESTADO NA TRANSIÇÃO ENERGÉTICA
No primeiro painel, em que se deu voz aos políticos, Pedro Soares, deputado do BE e presidente da Comissão Parlamentar do Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação, disse que “as alterações climáticas são a questão mais importante do mundo” e que, graças ao movimento popular, Portugal chegou à segunda década do século XXI sem centrais nucleares numa altura em que na Europa se fala da desactivação das mesmas.
Pedro Soares sugeriu que, pela História, Ferrel fosse um pólo na transição energética para as renováveis e que esteja na liderança do combate às alterações climáticas.
O deputado disse que o grande desafio que se coloca ao governo é esse processo de transição e lembrou que como a EDP foi privatizada, o processo de transição energética está dependente de privados. “Eu sou da opinião de que deveria haver um sector público que puxasse por essa transição”, defendeu.
Já Hugo Costa (PS) alertou que não existem centrais nucleares seguras e que o lóbi do nuclear anda aí, muitas vezes com ataques às renováveis e que as centrais se mantém abertas porque ninguém sabe como as encerrar. “Portugal continua a consumir energia nuclear, cerca de 2% do total, que provém de Espanha, mas o problema está do outro lado da fronteira”, afirmou, apontando ao mercado francês como abertura das portas da energia renovável portuguesa para a Europa.
Apesar de compreender a questão de Pedro Soares sobre a participação do Estado na transição energética, disse-se mais preocupado que a central de despacho, que decide que energia se usa em Portugal, seja privada.
Apontou ainda o dedo à administração pública que “em 20 ou 30 anos não conseguiu evoluir nada em termos de eficiência energética”, afirmando que é necessário mudar de paradigma nos transportes.
Por sua vez, José Matos (PSD) realçou que cada português produz em média quase sete toneladas de dióxido de carbono por ano para a atmosfera. Em relação à mobilidade eléctrica, salientou que “não faz sentido substituir seis milhões de carros a gasóleo e gasolina por seis milhões de carros eléctricos”.
UM FILME SOBRE FERREL
No segundo painel, partilhado por investigadores, activistas e físicos, a investigadora Inês Grandela Lourenço destacou que um dos símbolos da luta era o Sol Sorridente, pelo que Ferrel foi uma luta pelas energias renováveis. O ambientalista António Eloy revelou que existem mais de quatro horas de gravações sobre Ferrel que aguardam financiamento para a montagem de um filme-documentário.
Carla Graça, da Associação Zero, sugeriu a criação de um crowdfunding para financiar este projecto e defendeu a ideia da geração de energia para consumo. “A democracia energética é importante até para o equilíbrio social”, referiu. Yolanda Picazo, do Movimento Ibérico Antinuclear, fez notar que o estado espanhol propôs o alargamento do prazo de vida das centrais nucleares. No caso de Almaraz seria de 2020 para 2027.
As comemorações começaram no dia 15 de Março, exactamente 43 anos depois da luta popular e no dia em que se realizou a greve estudantil contra as alterações climáticas. A primeira acção foi levar os alunos do primeiro ciclo a limpar a praia do Baleal, sendo sensibilizados para o tema. Posteriormente, no jardim da junta foi colocada uma mostra com objectos artísticos feitos através do lixo recolhido nas praias. Esse evento foi dinamizado pela associação MARMEU, Arméria e Surfrider Foundation for Europe Peniche.
De físico nuclear a especialista em energia solar
Manuel Collares Pereira, que começou a sua carreira como físico nuclear e que hoje é um especialista em energia solar, contou que quando terminou a sua formação “estava convencido de que o nuclear era a solução”. Vivia-se uma altura em que o slogan a favor do nuclear era que esta energia era tão barata que não valia a pena ter um contador.
Mas o físico foi-se decepcionando. “A energia não era tão barata quanto se dizia”, até porque os reactores foram altamente subsidiados, pelo que o contribuinte já estava a pagar.
Outro motivo de desilusão com o nuclear foi o facto de nunca terem sido encontradas soluções para os resíduos. “O nuclear é uma ilusão”, afirmou Collares Pereira, notando que “é hoje, de longe, a forma mais cara de produzir electricidade”.
Acresce que a energia nuclear comercial é baseada no urânio 235, que é o menos abundante na natureza e que não chega para mais de 10 ou 20 anos se todos optarem por este tipo de energia. As tecnologias que recorrem a outros tipos de urânio “não estão desenvolvidas comercialmente e não são menos perigosas nem mais baratas que a actual que já é a mais cara e a mais perigosa”.
Mas as centrais têm outro grande problema: quando chega o seu fim de vida têm de ser desmanteladas e “custa tanto desmantelar como construir”.
Em relação às alterações climáticas, o físico frisou que depende de cada um adoptar um comportamento responsável e fez questão de lembrar que, com o aumento do nível médio da água do mar, a praia do Baleal desaparece.