A alemã Helga Liné chegou a Portugal com 9 anos, fugindo a uma morte quase certa num campo de concentração nazi. Viveu nas Caldas e em Lisboa, onde iniciou uma carreira de atriz que haveria de a tornar famosa. Há três anos, deu uma entrevista para um documentário sobre os refugiados judeus da II Grande Guerra. E disse que só foi feliz em criança quando viveu nas Caldas
Fez 136 filmes em Portugal, Espanha, França, Itália e… Hollywood. É uma atriz consagrada, mas retirou-se da ribalta e vive discretamente em Buenos Aires, na Argentina, com a neta (a única familiar que tem). Helga Liné foi uma artista profícua, mas antes de chegar ao estrelato começou, ainda criança, como contorcionista e artista de circo, fazendo atuações nas Caldas e em Lisboa, no Coliseu dos Recreios. O seu primeiro filme foi “A Mantilha de Beatriz”, que rodou quando tinha 14 anos.
Nascida em Berlim em 1931, Helga era uma criança assustada quando chegou a Portugal em 1940. Uma refugiada entre os milhares que aportaram a Lisboa fugidos da barbárie nazi. As autoridades portuguesas enviam-na, com a mãe e o seu meio-irmão, para as Caldas, onde fica em regime de residência fixa. Mãe e filhos instalam-se na Rua Maria Ernestina Pereira. E foi mesmo nas Caldas da Rainha que tudo começou.
“Sou berlinense. Mas não gosto dos alemães. Por isso, prefiro dizer que sou espanhola, porque sou viúva de um espanhol…”
Helga Liné
A 6 de março de 2015, em Buenos Aires, a equipa de produção da AZ Filmes & Ukbar, dirigida por Nicholas Oulman, prepara-se para entrevistar Helga Liné, que, durante uma hora, para um documentário, contará a história da sua vida. A atriz está sentada num sofá, devidamente arranjada tal e qual diva do cinema, perfeitamente maquilhada, numa pose muito digna. Nota-se que está habituada a enfrentar as câmaras e durante toda a entrevista mantém uma postura distinta e elegante.
“Sou berlinense. Mas não gosto dos alemães. Por isso prefiro dizer que sou espanhola porque sou viúva de um espanhol. E até pelas minhas origens… a minha mãe era meio russa e o meu pai meio polaco”, adverte.
Aos 4 anos, frequentava uma “escola de baile” em Berlim. Aprendeu a dançar e a fazer contorcionismo. Por isso, tem hoje problemas nas costas, apesar de, na entrevista, aparecer sempre muito direita.
Não se recorda de Berlim. E não se recorda da imagem do pai. Os pais separaram-se quando era muita nova e Helga ficou com a mãe, o padrasto e o meio-irmão. Nunca gostou de nenhum dos três. E tinha razões para isso. Recorda-se de conversas em surdina, “ouvir dizer” que tinham “de sair da Alemanha porque o homem [Hitler] era louco”. Mas de pouco mais. Já a viagem para Portugal, com o objetivo de ir para os Estados Unidos, recorda-se perfeitamente. Foram de Berlim para Itália de comboio e em Roma apanharam um avião para Sevilha e, depois, outro voo para Lisboa.
Durante a entrevista, perpassa algum rancor em relação ao meio-irmão. “Eu a trabalhar no circo em Portugal e o meu irmão a estudar!”, nota. Queixa-se das decisões da mãe, que pôs a filha, muito nova, a fazer contorcionismo, enquanto o irmão seguia estudos e acabaria por tirar um curso superior em Filologia Germânica. “A minha vida mudou completamente. Nunca pensei trabalhar num circo. Aos 14 anos, a minha mãe mandava-me pôr meias e pintava-me. Hoje em dia as raparigas com 14 anos já são mulheres, mas eu era uma miúda. Com 14 anos! Mas como era tão alta como agora, passava modelos na passarelle. Eu era manequim”, evoca.
A Helga Liné roubaram-lhe a infância. Primeiro, na Alemanha com a perseguição aos judeus. E, depois, em Portugal quando a mãe, ela própria uma modelo falhada, se projeta na filha e a obriga a seguir a carreira de artista que tinha ambicionado para si própria. Por isso, se infância teve, foram os curtos anos em que viveu nas Caldas, onde foi à escola e fez amigas, com quem passeava nas ruas e no Parque D. Carlos I.
A chegada a Portugal
Em Portugal, a primeira sensação “foi a de respirar fundo”. “Já não vou ouvir mais que estamos em perigo, de que há guerra, de que estão a matar judeus. É como tirar um peso de cima. Em Lisboa estivemos um ano ou dois, mas depois mandaram-nos para Caldas da Rainha”, recorda a alemã, admitindo que na cidade “tinha amigas, não trabalhava, ia à escola”. Quando ia às compras, davam-lhe dez tostões. Helga Liné pronuncia “tostões”, mas rapidamente corrige para “centavos”. A dado momento diz algumas frases em português, numa pronúncia irrepreensível, mas a entrevista decorre toda num castelhano claríssimo.
Não começou a carreira artística de forma feliz. “As minhas fotos de pequenina no circo são impressionantes. Quando as vejo… Mas pu-las aí de propósito, para castigar-me. Não tive infância nem juventude. Trabalhava. Também fiz revista em Portugal, no Teatro Maria Vitória, no Parque Mayer. Mas tiveram que falsificar a identidade porque eu tinha 16 anos, mas puseram 18”, revela.
Com 10 anos, Helga Liné entra no seu primeiro filme, fazendo um curto papel em “Porto de Abrigo” (1941), mas a estreia a sério no cinema dá-se aos 15 anos em “A Mantilha de Beatriz”, uma co-produção luso-espanhola rodada em Lisboa. Em Portugal participará ainda em “Ladrão Precisa-se” (1946), “Saltimbancos” (1952), “Nazaré” (1952), “Madragoa” (1952), “Duas Causas” (1953) e “O Cerro dos Enforcados” (1954). A maioria dos seus filmes, porém, foram rodados em Espanha, onde “havia mais possibilidades” e ficava “mais longe” da mãe, “uma sanguessuga”. Helga não perdoa à progenitora e do padastro nem quer falar. O marido da mãe, como não era judeu, não precisou de fugir da Alemanha e só vinha a Portugal de vez em quando para ver o filho e a mulher. Não chegou a vir às Caldas e encontrava-se com a família em Lisboa. Helga era uma jovem lindíssima e o padastro, por mais de uma vez tentou abusar da enteada.
“Não quero recordar-me. É uma história feia. A minha relação com o meu padastro era má. Ele quis violar-me. Eu tinha 13 anos. Tudo o que então passei foi muito mau. O único bonito foi a minha carreira. Se tivesse ficado na Alemanha, não teria trabalhado no cinema e no teatro. Mas era judia… tive de fugir”, explica.
Assim, odeia o trio que a rodeia: a mãe, o meio-irmão e o padrasto. Só encontra redenção na carreira artística. Mas quando fala do pai, de quem diz não recordar o rosto, emociona-se. O pai poderia ter sido a sua paixão, mas morreu quase no fim da guerra, num campo de concentração. “Como os campos de concentração estavam apinhados, os alemães não esperaram pela chegada e meteram gás nos próprios vagões dos comboios. E assim morreu o meu pai”, recorda. Por isso, diz que ainda hoje não vê filmes de guerra.
A carreira internacional
Nos anos 1950, Helga Liné vive em Espanha e soma êxitos no cinema. Casa-se com um espanhol em 1970 e enviúva tempo depois. Tem uma filha, que casaria mais tarde com um diplomata espanhol. O casal vai viver para a Argentina. Helga muda-se também para Buenos Aires. Diz que se apaixonou pela Argentina. A felicidade dura pouco. A filha é assassinada no Peru. Helga fica sozinha em Buenos Aires com a neta.
Enquanto filmava em Espanha e Itália, mandava dinheiro para a mãe que se manteve em Portugal e só depois da morte do filho foi para a Alemanha, onde acabaria por se separar do marido, voltando a usar o apelido do primeiro marido (pai de Helga), assassinado pelos nazis.
Nos anos 1980, rodou a “A Lei do Desejo”, de Pedro Almodóvar e entrou também na famosa série espanhola “Verão Azul”, onde fazia o papel de mãe de Javi. “Fazia todo o tipo de filmes, menos pornográficos. Tudo o que me ofereciam, fazia. Porque gosto da rodagem, é algo que me encanta”. Mas sublinha: “Gostava de fazer filmes, não de os ver”.
Reconhece que está zangada com o mundo. E que não consegue perdoar. Não perdoa à Alemanha, nem aos nazis, o que fizeram durante a guerra. Não perdoa à mãe nem ao padrasto o terem-lhe roubado a infância. “Fiz um filme na Áustria. À Alemanha não vou. A minha mãe, quando foi viver para a Alemanha, fui visitá-la o menos possível e depois trouxe-a para cá para a Argentina. Portugal e Itália são os dois países que mais gosto”, assegura a mais conhecida refugiada que passou pelas Caldas. ■
“A minha melhor memória de Portugal é Caldas da Rainha”
Memórias de um filme de vida que foi, em boa parte, “rodado” na cidade das Caldas
No grande filme que foi a vida de Helga Liné as cenas mais felizes foram rodadas na cidade das Caldas da Rainha, que a acolheu em pleno conflito no Velho Continente.
“Estudava nas Caldas da Rainha. Ia ao cinema todos os dias ver dois filmes. Adorava. Um centavo era quanto custava ir ao cinema”, relembra a atriz, salientando que os portugueses tratavam-na “muito bem”. “Estive recentemente em Portugal e adorei. Portugal tem uma coisa especial”, sublinha.
Apesar de não ter recebido amor da mãe, continuou a apoiá-la e levou-a para a Argentina
Quando Helga chegou a Portugal com a família, foi possível “respirar”. “Senti um alívio. Parece que tiras uma mochila de cima de ti. Já não se fala da guerra. Já não te sentes com culpa por ser judia. Na Alemanha era como se tivéssemos culpa de ser judeus”, refere.
Apesar de ser uma mulher amargurada, o percurso que acabou por seguir deixa-a confortável com as decisões que viria a tomar e que a levariam a uma carreira repleta na Sétima Arte.
“Não estou arrependida de ter ficado em Portugal e não ter ido para os Estados Unidos, embora todos os judeus quisessem ir para a América. Adorei Portugal. Ainda tenho gente amiga. Tenho um amigo que foi jornalista e me mandou as reportagens que escreveu e os filmes que fiz. Encontrei-me com ele. Foi uma alegria”, justifica a germânica, que, apesar de ser muito jovem, percebia que, do ponto de vista político, se passava algo no país de acolhimento.
“Notava-se que em Portugal havia uma ditadura. As pessoas tinham medo de falar. E em Espanha era igual, com o Franco. Uma vez a minha mãe saiu das Caldas da Rainha para Lisboa para fazer de modelo e detiveram-na por um dia. Porque ela tinha ido para Lisboa sem autorização”, relembra a atriz, que, enquanto fazia filmes em Espanha e Itália, mandava dinheiro para a mãe. “E eu, depois de amá-la tanto – ao contrário! – trouxe-a para cá [Buenos Aires] e aqui morreu com 94 anos. Não teve uma vida fácil. Teve uma vida sem amor. Se na vida não dás amor, também não recebes. A minha mãe não foi uma boa mãe. Não foi a mãe que eu fui para a minha filha”, reconhece, amargurada, Helga Liné, não escondendo que, do nosso país, o que mais lhe deixou recordações positivas foi a passagem pelo Oeste.
“A minha melhor memória de Portugal é Caldas da Rainha, porque aí fazem cerâmica e perto de onde eu vivia, havia oficinas de cerâmica onde eu ia e aprendia e encantava-me. Isso ficou-me muito gravado na minha memória. Tinha muitas amigas judias e portuguesas. Dávamo-nos todos bem. Não te perguntavam se és judia ou católica”, explicou a Nicholas Oulman, durante a entrevista para o documentário que aqui reproduzimos.
A atriz destacou-se, também, na participação em filmes de terror e suspense e tem uma aparição em “Open Season” (1974), de Peter Fonda.
Contudo, para os portugueses tornou-se conhecida, sobretudo, com a personagem em “Verão Azul”, uma série espanhola que marcou muitas gerações e que, de quando em vez, ainda é possível seguir na RTP Memória. ■