A Fábrica Bordallo Pinheiro está a celebrar o seu 135º aniversário e quis assinalar a iniciativa com a edição de uma peça de Vhils, o artista urbano conhecido internacionalmente por esculpir rostos de famosos e de anónimos nas paredes de cidades de todo o mundo. Quimera assim se designa a sua obra na Bordallo Pinheiro, apresentada, a 29 de Outubro, nas próprias instalações fabris. Assim pretende homenagear os trabalhadores da empresa que ao longo dos anos têm sabido honrar o legado de Bordallo. Custa 3900 euros e só foram feitos 135 exemplares, o mesmo número que os anos de vida da fábrica.
“Se Bordallo Pinheiro fosse vivo temos a certeza que trabalharia em parceira com artistas contemporâneos”.
Palavras de Nuno Barra, administrador da Bordallo Pinheiro e que decidiu abrir as portas da agora nova fábrica na Zona Industrial, para celebrar o seu 135º aniversário.
De Lisboa veio um mini-bus com alguns convidados que tiveram a oportunidade de conhecer o museu e a nova fábrica, ampliada e com uma nova área destinada à exposição das suas colecções. Mas a iniciativa destinava-se sobretudo a conhecer Quimera, o prato criado por Vhils para assinalar a efeméride. O artista urbano usou um dos grandes pratos bordalianos, que foi decorado com a técnica dos escorridos, e serviu de base a um desenho, realizado a jacto de areia, na Atlantis (fábrica que também pertence ao universo Visabeira), e que permitiu “escavar” várias camadas de faiança desta peça comemorativa, tal como Vhils costuma fazer nas paredes das cidades (ver caixa).
Assim como as peças de Bordallo, não há duas Quimeras iguais, dado o trabalho manual necessário para a sua execução.
A peça, que só pode ser adquirida por subscrição, custa 3900 euros. Só há 135 exemplares e que no dia do seu lançamento já havia 20 exemplares reservados.
Duas equipas para criar Quimera
Nestas novas criações “tentamos ao máximo manter o tipo de trabalho de cada artista”, referiu o administrador que ainda acrescentou que a realização de Quimera obrigou Vhils a diminuir radicalmente a escala dos seus projectos. Habitualmente o artista o trabalha em paredes de oito e nove andares e teve agora, em parceria com a Bordallo, propor um desenho para um prato de 61 centímetros de diâmetro.
“Este foi um trabalho muito complexo que só foi possível com a colaboração e as equipas das duas fábricas: Bordallo e Atlantis”, disse o responsável acrescentando que esta é uma peça que “que vai marcar a história da empresa”.
Nuno Barra deu a conhecer que a Bordallo Pinheiro continua a crescer anualmente, não só em funcionários (tem perto de 290 trabalhadores) como nas parcerias com autores nacionais e estrangeiros, estratégias que são “para manter”.
A marca quer agora apostar na sua internacionalização: “a Bordallo na sua génese é das Caldas mas nós pretendemos que seja uma marca do mundo”, referiu o responsável. Já na primeira semana de Dezembro, a Bordallo vai arrancar com uma grande campanha de publicidade à marca caldense em Paris. “É preciso alavancar as nossas lojas”, disse o responsável referindo-se aos espaços abertos nas capitais francesa e espanhola.
Segundo o administrador os melhores mercados da fábrica caldense são a Suécia, o Reino Unido, França, Espanha e Itália. “Estamos também a crescer nos EUA e no Brasil”, acrescentou.
Entre os convidados esteve a vereadora Maria da Conceição Pereira que afirmou que a Bordallo é uma fábrica “que diz muito à cidade e ao país”. A autarca recordou que em boa hora a Visabeira “pegou” na fábrica, numa época em que esta atravessou grandes dificuldades e teve a capacidade de a renovar e de perceber que esta “precisava de ser bem promovida”. A autarca salientou o facto a Bordallo pensar “a contemporaneidade sem deixar para trás a tradição da própria marca”.
Vhils: De Cabo Verde para a fábrica caldense”
O artista Vhils respondeu às perguntas da Gazeta das Caldas enviadas após o evento. O autor de arte urbana com carreira nacional e internacional, esteve recentemente a trabalhar em Cabo Verde e gostaria e continuar ligado à fábrica caldense para desenvolver mais projectos.
Alexandre Farto (a.k.a. Vhils) nasceu em Lisboa em 1987 e conta que o graffiti definiu o seu futuro profissional. Desde os 19 anos que vive em Londres, onde tirou um curso de Belas Artes na St. Martin’s School. Foi na ilha britânica que começou a fazer os seus retratos anónimos – que esculpia em paredes de casa devolutas – e que acabaram por lhe valer o reconhecimento internacional. Depois de ter sido convidado a expor em festivais como o Cans Festival (que é organizado por Banksy), quer em Inglaterra ou em Itália, Vhils é convidado a trabalhar em todo o planeta. Tem trabalhos em Londres, Moscovo, Nova Iorque, Los Angeles, Grottaglie, Bogotá, Medellín e Cali. Por cá podem ser apreciadas intervenções suas em Torres Vedras, Porto e em Lisboa.
GAZETA DAS CALDAS (GC): Quanto tempo foi necessário para realizar a obra Quimera?
Vhils: O convite surgiu há cerca de dois anos e fomos apurando o processo ao longo do tempo, nas suas várias fases. Até porque queríamos fazer uma obra verdadeiramente especial para celebrar esta data histórica, que permitisse fazer a ponte entre o meu trabalho e o do Bordallo.
GC: O que mais apreciou no trabalho com a fábrica?
Vhils: Para mim foi um privilégio trabalhar com os artesãos da fábrica, pessoas que dominam um saber fazer há décadas. Foi importante conhecer as diferentes zonas de especialização, a perícia com que cada um trabalha e perceber como todas contribuem para o resultado final. O Bordallo deixou este legado incrível nas Caldas da Rainha, para além da democratização da arte que ele estabeleceu a partir daqui, também criou um projecto de empregabilidade e sociabilidade com grande impacto na comunidade local. O seu legado não é só artístico, também é de responsabilidade cívica, e isso só reforça a sua genialidade.
GC: Gostou de trabalhar com a cerâmica?
Vhils: Eu gosto muito de experimentar suportes novos, até pelos desafios que eles colocam e que é preciso superar. Neste caso, com o prato de grandes dimensões em cerâmica, decidimos recorrer a técnicas diferentes para um resultado final mais surpreendente. Para retirar a camada superficial – à semelhança do que eu faço no projecto Scratching the Surface – usámos um jacto de areia, e para finalizar a peça recorremos a pintura com vidrados cerâmicos aplicados a pincel, uma técnica trabalhada pelo próprio Bordallo e que permite que cada uma das 135 peças seja única e irrepetível.
GC: Viu-se durante a sessão que manteve uma relação próxima com os funcionários. A sua ligação com a Bordallo é para continuar? Se sim, com que projectos?
Vhils: Eu espero que sim, gostava que esta fosse a primeira de várias colaborações, porque saio sempre da fábrica com ideias novas… Até porque sou sempre muito bem recebido por todos, com grande espírito de abertura. Mas os projectos terão que ser definidos a seu tempo e em conjunto, claro.
GC: Em que projectos está actualmente envolvido em Portugal e no estrangeiro?
Vhils: Acabei de voltar de Cabo Verde, onde passei 10 dias, fiz duas paredes, dois workshops e tive uma experiência muito enriquecedora com as comunidades locais. Foi uma deslocação muito especial que me permitiu por um lado homenagear Amílcar Cabral, um poeta, pensador e revolucionário, por quem sempre tive uma grande admiração. Conheci a fundação com o seu nome e deixei o seu retrato numa escola, na esperança de ajudar a mudar a narrativa do bairro de Achada Grande Frente, na ilha de Santiago. E depois fui até São Vicente, deixar o meu tributo à grande cantora Cesária Évora numa praça da zona histórica do Mindelo. Dois projectos incríveis que eu espero que possam ter um impacto positivo na dinâmica das comunidades locais.