A nouvelle cuisine já era. O que está a dar é a cozinha tecno-emocional. Esta é a tese dos grandes entendidos em gastronomia, partilhada por José Elói que realizou pela segunda vez no seu Maratona um jantar fundado neste moderno conceito – uma cozinha que se baseia, não só nos sabores, mas também nos outros quatro sentidos e nas emoções.
O repasto, ou melhor, o evento, porque se tratou de muito mais do que uma refeição, teve lugar no passado dia 16 de Julho naquele emblemático café-restaurante caldense e contou com cerca de 25 pessoas. Um número inferior ao da experiência realizada em Março que teve sala cheia. Desta vez, o preço da participação (50 euros) terá desencorajado uma maior procura.
José Elói explica que, por exemplo, em Lisboa estes jantares não são inferiores a 100 euros. São chiques, estão na moda em alguns círculos e têm fiéis seguidores. E o preço explica-se também pelos custos de produção – há pratos que demoram quase um dia a ser preparados pois implicam muitas horas de cozinha (como veremos a seguir), além de que se prima sempre por produtos de primeira qualidade.
Mas vamos aos factos, isto é, à crónica deste serão que começou às nove da noite e terminou já depois das 2h00 da manhã.
O aperitivo foi servido no “arranque dos trabalhos” – um Shot de Sangria de Vinho Branco com fruta em suspensão e que foi o preâmbulo das delícias que se seguiriam. Depois um couvert de Esferas de Azeitona em azeite aromatizado. E aqui a coisa merece explicação. O cronista teve o privilégio de ficar sentado ao lado do organizador que, sem disfarçar o entusiasmo, lhe foi explicando cada um dos pratos.
Este das esferas de azeitona é feito com uma técnica muito utilizada na cozinha tecno-emocional, que é esferificação ou gelidificação dos ingredientes. A pasta de azeitona é congelada em cuvettes, com o formato de pequenas bolas. Estas são presas num alfinete e passadas por gelatina vegetal que só as “agarra” se elas estiverem a uma determinada temperatura. Quando o interior descongela, a pasta regressa de novo ao estado quase líquido, mas devidamente guardado dentro da esfera gelatinosa. É por isso que se aconselha a só trincar este acepipe quando ele estiver integralmente dentro da boca para melhor se sentir o seu sabor.
E o resultado é verdadeiramente transcendente, para tal contribuindo o pão fresco que acompanhas as esferas e o azeite de cinco estrelas nas quais vêm embebidas.
Segue-se um Amuse-Bouche, também designado Limpa Palato Nitro e que é, igualmente, uma coisa vanguardista – trata-se de uma espuma de lima e vodka que é “cozida” em azoto líquido a uma temperatura de 80 graus negativos. A sua confecção é um dos momentos de maior glamour do jantar porque é feita à frente de todos, por entre as nuvens de vapor provocados pelo azoto.
Com o palato limpo, e arrumado o couvert, seguem-se, então as entradas. É claro que já passou uma hora e ainda a procissão vai no adro. O Ninfa Thai é um verdadeiro hino aos sentidos. Trata-se de um embrulho de camarão tigre em massa filo com crumble de caranguejo thai. Excelente!
O próximo prato chama-se Há Sardinha e consiste numa sandwiche de broa e pedaços de sardinha intercalados em camada. A sardinha – atenção! – é cozinhada sous vide, isto é, em vácuo, mantendo uma temperatura baixa que não lhe altera o sabor. O prato, que na verdade é uma pedra de xisto, é ladeado por dois cubos de gelatina de pimentos vermelhos. Acompanha-se com um Herdade da Comporta branco.
E aí vem a terceira entrada, o Dan ki Duck, um caldo de pato em infusão de flores. O caldinho não estava mau, mas o que verdadeiramente ali interessava era o apelo a outros sentidos porque a tigela vinha quase incrustada num prato rodeado de flores coloridas, frescas, de grandes pétalas abertas. Cheire-se, pois. Há que aspirar estas fragrâncias antes de atacar o consommé, mas como se isto não bastasse, os empregados passam ainda com um bule de água quente para regar as flores e libertar-lhes anda mais os aromas. Agora sim, pegue-se na colher e coma-se a sopa, juntando o sabor a este festival de sentidos que foi o visual e o olfacto.
E ESTÁ NA HORA DO PRIMEIRO PRATO
Bom, e agora que é quase meia-noite, está na hora de começar a jantar. O primeiro prato é o Passeio Pelo Bosque e consiste num copito de creme de alcachofras acompanhado de um guisado de cogumelos silvestres. É, até ao momento, o prato mais agressivo e até ligeiramente enjoativo, com um sabor muito forte. Foi o único que o autor deste texto não comeu até ao fim, tendo-se socorrido do Herdade da Comporta (agora tinto) para um mais pacífico acompanhamento.
Espera-se agora pelo Carpaccio de Bacalhau. O cronista mediu o tempo: entre as 0h20 e as 0h55. Não há protestos, até porque o jantar é animado por um casal de jovens actores – João Sá e Inês Fouto. Há lugar para piadas, sketchs e até para recitar Torga. Bem escolhido.
José Elói conta que em Chicago, a capital deste tipo de cozinha, no restaurante Alínea os clientes têm duas opções de menu: ou passar quatro ou seis horas a comer. A cozinha tecno-emocional é inimiga do fast food.
A espera é compensada. As fatias fininhas de bacalhau vêm acompanhadas de migas de broa e esferas de coentros. “Um espectáculo!” ouve-se dizer. O autor desta crónica anui.
A verdade é que o jantar vai num crescendo. O Trés Chic é talvez o melhor prato da noite – bochechas de porco preto confit em vinho do Porto, papilote de tomates doces com mangericão e gelado de queijo da serra. Um apoteose. O papilote é um bolsinha transparente onde se avistam os coloridos condimentos. A empregada corta a parte superior com uma tesoura e o convite é para aspirar estes aromas. As bochechas de porco foram cozidas a baixas temperaturas em vinho do Porto, o que garante que estas fiquem tenras e se desfaçam na boca. Mas a surpresa é que o gelado de queijo da serra [da Estrela] sabe mesmo… a queijo da serra.
Os pratos foram alternados com o branco e o tinto da Herdade da Comporta. A esta hora já há gargalhadas mais sonoras no meio de conversas animadas. A cereja em cima do bolo (esta é metafórica) vem sob a forma de Snack e é um mix de shot em cana de açúcar que é também uma delícia – basta mascar os pedaços da cana dos quais jorra um abundante e suculento mojito, ou uma caipirinha, ou ainda um caipirão. Uma receita, explica Elói, inspirada no El Búlli e que constitui um excelente intermezzo antes da sobremesa.
Esta chama-se Chocolate a 94 graus e consta de uma infusão de baunilha com chá preto, figos caramelizados e gelado de manjericão. Sim, gelado de manjericão. Quem disse que os sorvetes só podem ser de doces?
Quanto ao chocolate que deveria acompanhar a sobremesa, virá a seguir.
E já passa das 2h00 quando os cafés são servidos, acompanhados com licor de avelã. Mais do que um jantar, foi um ritual.
Ite, missa est.
O cozinheiro Manuel Dias
De vez em quando o cozinheiro Manuel Dias vem visitar os clientes e amigos. Está cansado, mas visivelmente feliz. Gosta do que faz, coisa rara hoje em dia, num tempo em que muita gente não está contente com a sua actividade. Em breve vai despedir-se do Maratona para passar uns meses no Tavares Rico, em Lisboa, onde estagiará com o chef José Avilez que, por sua vez, já trabalhou com o grande guru mundial deste tipo de cozinha, Ferran Adrià, proprietário do El Búlli (considerado o melhor restaurante do mundo) e iniciador deste tipo de cozinha.
Durante este tempo, este caldense irá trabalhar à borla, mas sentir-se-á um privilegiado por poder aprofundar os seus conhecimentos neste mundo que explora as reacções moleculares dos ingredientes – a base da cozinha tecno-emocional.
A nouvelle cuisine já tinha sido uma revolução porque os pratos eram levados à mesa em porções individuais, valorizando-se a estética, em detrimento da quantidade. Mas agora quer-se ir mais longe, explorando novas técnicas culinárias que criem emoção no comensal através dos cinco sentidos.
Para Manuel Dias, que continuará ligado ao Maratona prestando consultoria, será uma imersão total numa actividade que considera fascinante.