Editorial 95 anos

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Carlos Querido
Director-Convidado

Fala-se hoje de “fadiga de informação”, traduzida na paralisia da capacidade crítica e analítica, na atrofia do pensamento, na destruição do silêncio da leitura de jornais pelo ruído das redes sociais, mas ninguém sabe para onde corre o mundo.
Anuncia-se o fim da imprensa como um dos preços da globalização, mas esquece-se que as pessoas comuns não se bastam com as notícias do mundo distante. Querem saber o que se passa na sua rua, no seu bairro, na sua aldeia, na sua cidade.
O jornalismo de proximidade da imprensa local e regional constitui a expressão de um profundo compromisso agregador e a afirmação da identidade das comunidades, pelas raízes comuns, pela ligação territorial, pela afinidade cultural, pela comunhão de interesses.
Num juízo de prognose do futuro haverá que ter em conta a força dos fatores de identificação comunitária, potenciada, segundo alguns autores, pela glocalização digital que, paradoxalmente “fertiliza e reconstrói o conceito de proximidade” bem como o jornalismo a ele associado.
No seu livro Jornalismo de Proximidade, Carlos Camponez, um dos autores de referência nesta área, sintetiza assim a força do jornalismo regional e local nos tempos adversos que vivemos: “O papel estratégico da proximidade leva a que alguns considerem a Imprensa Regional como a Imprensa do século XXI. A ideia é sustentada na tese de estarmos hoje perante um campo da comunicação virado do avesso: quanto mais fácil é tomarmos conhecimento dos acontecimentos longínquos, mais nos distanciamos da realidade mais próxima” [in Colecção Comunicação, Minerva, 2002, contracapa].
Já Eça, com a sua refinada ironia, descrevia nas Cartas Familiares e Bilhetes de Paris a apatia perante o mundo distante (hoje reforçada pela avalanche da informação planetária ao minuto), no confronto com o entusiasmo com as notícias da rua, na célebre cena da leitura em voz alta do jornal do dia, em que os atentos ouvintes ignoravam o terramoto de java, com a destruição de aldeias e a morte de mil pessoas, as informações na Hungria e o descarrilamento dum comboio em França, para manifestarem depois, ruidosamente, a maior desolação pela notícia de que a Luísa Carneiro da Bela Vista tinha desmanchado um pé.
O compromisso da imprensa local e regional não se resume às pessoas que habitam a cidade e a região. Vocaciona-se também para a preservação dos laços de identidade entre famílias e comunidades geograficamente dispersas pela emigração, alicerçados na história em comum e na partilha dos costumes e das condições de existência, numa relação de proximidade que transcende fatores geográficos e que implica a rejeição da uniformização redutora.
Caldas tem milhares de emigrantes espalhados pelo mundo, e muitos recebem semanalmente a Gazeta, revendo-se nas suas páginas, acompanhando com interesse tudo o que diz respeito à sua terra e comunidades de origem.
Num mundo em permanente incerteza, com crises económicas e políticas que provocam o naufrágio de projetos jornalísticos de âmbito nacional, sustentados por elevados recursos financeiros, a Gazeta das Caldas prossegue incólume, apesar dos sobressaltos, numa viagem de quase um século, sem fim à vista, porque a missão de um jornal renova-se em cada edição, incessantemente, construindo a sua história à medida que vai registando a história das comunidades que serve.
De onde vem esta força, que faz dum pequeno jornal, numa pequena cidade, um exemplo de longevidade e de resiliência?
Só poderá resultar do cumprimento do compromisso assumido na sua fundação e reiterado nas décadas da sua existência.
Recordo-a aqui, transcrevendo-a parcialmente, uma crónica que publiquei nestas páginas na edição de 13 de agosto de 2010. Não era fácil a vida dos jornais na época. Os títulos com maior longevidade que se haviam publicado na vila tinham sido O Caldense, durante 10 anos (1884-1894), e O Círculo das Caldas, durante 25 anos (1893-1918)
Uma das razões da efemeridade dos jornais tinha a ver com a sua proximidade com interesses e forças políticas, e não será alheia à longevidade da Gazeta a enérgica proclamação de liberdade feita no seu primeiro editorial: «[…] livre em absoluto, de toda a política de partidarismos, procurará servir os interesses da região, chamando a si todas as ideias, venham de onde vierem […] torna-se necessário que se abatam bandeiras, que se esqueçam agravos, que se compartilhe do mesmo afecto […]».
No segundo número, edição de 11 de Outubro de 1925, mantinha-se o tom: «[…] É preciso rasgar ou suprimir vaidades […] conjugando todos os esforços no sentido da elevação local. Vamos pois a isto. Caminhemos juntos e cumpriremos a nossa missão […]».
Pela primeira vez, o jornal local elege como razão única da sua existência os interesses da vila e da região, afirma-se “porta voz de todos os que amam esta região”, recusa qualquer identificação com qualquer projeto ou partido político, eleva-se a um estatuto que congrega sem excluir.
Foi este o caminho traçado. É este o segredo da sua invulgar longevidade.
Parabéns, Gazeta das Caldas.