Ferreira Fernandes (Jornalista)
É obra, um jornal não só faz 95 anos como chega a eles completamente moderno! O aniversário, é só fazer as contas: nascida em 1925, a Gazeta das Caldas está à beira de ser centenária. Quanto à modernidade, é ver a capa de há dias, 11 de setembro de 2020, e a foto que rasga a página: na abertura de uma feira agrícola, um presidente de Câmara (Fernando Tinta Ferreira, das Caldas da Rainha) com máscara e desfocado faz contraponto a um focadíssimo molho de cebolas, pujante, com os bolbos cobertos pela sua primeira folha fina e dourada. Pela foto ficamos a saber mais sobre as pequenas raízes das cebolas ainda há pouco arrancadas da terra do que da gravata do poderoso.
Que jornal prefere a cebola ao político, exibe mais a modesta Allium cepa do que o autarca? Eu digo: um jornal local. Um jornal que relata as feiras e visita as freguesias. É isso, um jornal onde o leitor é freguês. O pano de fundo da Imprensa é terrível, queixume geral, nacional e por todo o mundo: os jornais estão pelas ruas da amargura. Mas esconde-se aí uma porta de saída, justamente aquela que tem sido a unânime esperança nos congressos internacionais de jornalismo: o jornal local. E a Gazeta das Caldas é exemplo.
Um jornal local que não dá um passo mais largo que a perna, que por estar perto vai mais longe no interesse dos seus leitores, que se faz ouvir porque ouve, perto dele, o que se quer dele. O jornalismo precisa urgentemente de desfazer a contradição de viver os tempos da Internet – o melhor instrumento que lhe foi oferecido desde a invenção da tipografia – e, apesar dessa modernidade, não conseguir conjugá-la como negócio viável. Nessa transição inevitável que se vai adiando, os jornais locais têm mostrado a vantagem de não terem despesas desnecessárias que os jornais nacionais arrastam consigo. As redações dos jornais locais são mais maneirinhas, complementam-se melhor com serviços de apoio, também eles bem menores, e o todo tira maior partido da agilidade que o online trouxe.
Há meio século, o economista britânico Ernst Friedrich Schumacher publicou o conjunto de ensaios Small Is Beautiful: A Study Of Economics As If People Mattered. Small Is Beautiful tornou-se um lema tão famoso que não precisa de tradução, mas o resto do título também merece ser relembrado: Schumacher escreveu sobre uma sociedade à medida do homem. E é essa exatamente a grandeza do jornal local. Tem condições de escrever à medida de quem o compra. Por isso é que o seu ser pequeno é bonito. Útil e com futuro.
À Gazeta das Caldas começo por lhe agradecer guardar gazeta no seu nome. Pelo título logo se vê que reconhece ser um posto ser antigo. Tem raízes como as cebolas que ela respeita. Entre os primeiros jornais, os da Veneza medieval tratavam de coisas da cidade e custavam uma moeda veneziana, a gazetta. Logo depois, pela Alemanha, Suíça, França e Inglaterra apareceram folhas de notícias a que se chamava Gazeta…
O episódio da moeda lembra outro. O diário nacional hoje mais antigo, o Diário de Notícias, fundado em 1864, escrevia na sua primeira edição um desejo, tornar-se “um jornal para todas as bolsas e todas as inteligências”. E ao lado do título mostrava como pretendia cumprir o desejo: custava “dez réis”. A mais pequenina das moedas portuguesas que, aliás, foi quanto custou o DN durante mais de meio século. Small is beautiful…
Um jornal local que não dá um passo mais largo que a perna, que por estar perto vai mais longe no interesse dos seus leitores, que se faz ouvir porque ouve, perto dele, o que se quer dele.
Essa história da moedinha foi relatada por um caldense, não nado mas de quadro de honra, Rafael Bordalo Pinheiro, logo num dos do primeiros aniversários do DN. Contada como ele sabia: com um desenho de página inteira. E isso leva-nos a outro mérito extraordinário da homenageada Gazeta das Caldas: ter nascido num viveiro de cultura. Que benesse para os seus jornalistas, nascer nesta cidade tão culta. Que bom para um jornal local: poder cultivar conhecimentos, cultuar a cidade, honrar os seus artistas.
O ceramista (e mais e mais) Rafael Bordalo Pinheiro, o escultor António Duarte, que esculpiu o Camilo do jardinzinho nas traseiras do DN, onde trabalhei um quarto de século, o Raúl Proença, o criador dos volumes Guia de Portugal que levou os portugueses mais sabedores a fazer-nos saber do melhor de Portugal, o escultor Salvador Barata Feyo, meu conterrâneo, de Moçâmedes (Angola), o mestre escultor João Fragoso… Tantos nomes de museus locais que encheram de saber e estátuas por Portugal fora.
E já que me pedem, jornalista de passagem, este texto, pede aquilo que eu ainda sou mais, leitor dos jornais, que um jornalista da Gazeta da Caldas juntasse, depois deste aniversário, datas tão próximas como 1925, em que este jornal nasceu, e 1933, em que morreu José Malhoa, o mais famoso pintor caldense. Entre essas datas, 1926, quando José Malhoa pintou Dona Leonor de Lencastre, rainha de Portugal, fundadora da Santa Casa da Misericórdia e patrocinadora da tipografia (como tudo está ligado…) Esse quadro viria a ser arquivado como o primeiro do Museu José Malhoa, fundado nesta cidade, no mesmo ano da morte do pintor.
Aquela que se dedicou aos pobres, foi a viúva triste de João II, viu o seu único filho, o príncipe Afonso, morrer de acidente sem ser rei e se recolheu e foi sepultada no Convento da Madre de Deus, essa, Malhoa imaginou-a magnífica. De corpo inteiro, coroada, no trono. O vestido amarelo dourado modela-lhe os seios e as coxas e ela encara-nos, de olhos azuis claros e cabelos louros, com uma sensualidade inesperada.
O modelo que inspirou o pintor, dizem os arquivos, chamava-se Deborath. Foi há menos de 100 anos – não quer a Gazeta das Caldas perseguir e encontrar essa memória? E, de caminho, confirmar que o futuro está nos jornais locais?