O caldense Francisco Antunes (ou Frank Antunes nos Estados Unidos) tinha 21 anos quando fugiu de um navio para entrar em terras americanas como ilegal. Aí, anos mais tarde, viria a fundar uma construtora de sucesso. Antes de emigrar para a América, havia estado embarcado, a viajar pela Europa e África, já depois de ter sido mobilizado para a tropa na Índia.
Francisco Antunes nasceu na Serra do Bouro, no lugar do Zambujeiro, a zona que une a serra com a estrada nova para a Foz do Arelho. Nasceu a 14 de Abril de 1932 e estudou na Espinheira (Serra do Bouro). “Tinha que andar mais de um quilómetro a pé, no tempo em que ali só haviam estradas de barro, onde era muito difícil caminhar, especialmente no Inverno”. Foi nessa escola que fez a quarta classe, a formação académica que tem até hoje.
Era o mais novo de cinco irmãos, quatro rapazes e uma rapariga. Quando terminou a escola, com 15 anos, começou a trabalhar com os seus pais no campo. Semeavam milho e trigo, faziam vinho e tinham um forno de cal.
Para fazer a cal era necessário ir buscar as pedras às pedreiras que ali existiam e que, com o passar dos anos, se expandiram. “Eram pedreiras pequenas, não era como agora! A pedra era arrancada à mão, furava-se com uma broca de mão, metia-se a pólvora e rebentava-se, depois acartava-se a pedra para os carros de bois e levava-se para os fornos. Nos carros de bois carregava-se também a lenha para arder durante uma semana, de dia e de noite, para transformar a pedra em cal.
“Aquela área chamava-se Corujeira e havia mais de uma dúzia de fornos de cal, que era a grande indústria ali naquele tempo. O único que está preservado é o do meu pai”, faz notar.
“Aos 18 anos já tomava conta de dois bois e assim andei até ir para a tropa, com 20 anos”. Começou em Artilharia 3, em Campolide e “ao fim dos 16 meses estava preparado para sair e vir para casa, mas fui mobilizado para ir para a Índia, para Goa. Nunca se esquece o dia em que se recebe essa notícia, foi um golpe muito grande”.
Saiu de Portugal a 10 de Agosto de 1954, num barco de carga em que os porões foram transformados em camaratas, com centenas de beliches feitos em madeira com dois e três andares. “A viagem foi muito dura”, recorda. Além do aspecto psicológico motivado pela expectativa de ir para a guerra, as condições eram muito precárias: “comíamos numa marmita de folha de alumínio e como a lavávamos com água salgada, quando íamos voltar a comer já estava toda enferrujada”.
Quando chegaram ao Canal do Suez estiveram um dia parados à espera de saber se Goa já tinha sido tomada pela União Indiana, mas esses rumores não se verificaram (só viria a acontecer em 1961). “Então nós seguimos, passámos o canal, entrámos no mar Índico e depois fomos escoltados por um navio português de guerra, o Afonso Albuquerque, até ao porto de Mormugão, em Goa”. Daí seguiu para Velha Goa, onde cumpriu 16 meses de tropa na Bateria de Artilharia D. João de Castro, até Dezembro de 1955.
“Os primeiros tempos foram complicados. Dormíamos em montes de palha até chegarem as camas e colchões e só ao fim de três meses é que estávamos bem estabelecidos e instalados”, conta.
“Pensava que ia para a linha de combate e isso não se deu”
Ainda assim, a sua companhia, composta por mais de 100 homens, não encontrou guerra em solo indiano. “Durante o tempo que lá estive não houve guerra nenhuma, houve algumas escaramuças junto à fronteira, mas nós estávamos mais para o interior. Chegámos a estar preparados para prestar auxílio, mas nunca se deu nada”.
Os primeiros meses foram muito duros e difíceis. A questão da alimentação e da água, que tinha que ser fervida, bem como, por exemplo, a falta de frigorífico, foram algumas das dificuldades. “Mas não foi metade do que julgava que ia encontrar, porque pensava que ia para a linha de combate e isso não se deu”. Assim, os dias na guerra foram passados entre trabalhos e lazer. “Até lá passei bom tempo, jogávamos e chegámos a ir à praia”.
Ao fim dos 16 meses voltou a Portugal. Chegou a Lisboa a 5 de Dezembro de 1955 e no dia seguinte entregou o fardamento e veio de noite para a terra. “Vim de comboio com dois colegas de Alvorninha e alguns do Cadaval e quando cheguei à estação estava lá uma camioneta carregada de gente para me receber e levar para a Serra, foi uma festa! Era véspera do dia da Sra. Conceição e naquele tempo fazia-se o baile, onde eu fui como um herói que lá apareceu”, lembra.
Com 22 anos feitos e passada a euforia da chegada e do reencontro, Francisco sabia que não queria voltar à vida antiga de trabalho no campo. Como tinha tirado a carta de condução em Goa, começou a trabalhar para Mário Marques numa empresa de vinhos em A-dos-Negros.
Surgiu então a ideia de, com um dos irmãos, fazer uma sociedade e comprar um camião para começarem a vender madeira, que Francisco transportava, por exemplo, para Cacia, para a fábrica de celulose, ou para Lisboa para ser exportada.
“Em 1957, com 25 anos, eu estava empenhado em 100 contos, que era a minha parte do camião. O meu pai era o meu fiador, porque eu não tinha nada, e até 1960 assim andei, mas via que trabalhava tanto e não saía da cepa torta, ouvia falar da emigração, de gente que ia para os Estados Unidos da América e que lá se ganhava muito dinheiro e eu sempre quis experimentar, mas naquele tempo era muito difícil, não se conseguia um visto de maneira nenhuma”.
Mas Francisco já tinha ouvido contar histórias de quem usasse a Holanda como trampolim para entrar em solo americano. “Era muito fácil embarcar nos portos holandeses e depois fugir para a América e ganhar muito dinheiro e eu pensei em fazer o mesmo”. Corria Agosto de 1960 quando saiu de comboio direito a Madrid, porque “não se podia comprar bilhete directo para a Holanda que era-se logo preso na fronteira”. Levava uma carta a dizer que ia à capital espanhola consultar um médico, mas mal chegou a Madrid, comprou novo bilhete para seguir até Paris e daí para Roterdão. Não ia sozinho. Tinha colegas que até já conheciam o funcionamento deste processo e que o ajudaram. Instalaram-se em Roterdão e pouco tempo depois já Francisco estava embarcado a bordo de um cargueiro que fazia a costa norte da Europa, passando na Alemanha, Finlândia e Rússia. “Até ao fim do ano estive nesse barco e depois fui para um misto, de cargas e passageiros, a fazer viagens para África”. Ia, por exemplo, a Moçambique e ao Paquistão, onde se recorda de ver o navio Afonso Albuquerque em reparações. “Poucos dias depois, em alto mar, passou por nós, tinha rebentado a guerra em Goa”.
Seguiu-se nova mudança de barco e promoção para um posto onde ganhava melhor. Em viagens de dois meses, que começavam na Alemanha e paravam na Bélgica antes de seguir para a África do Sul e Moçambique e de voltar pelo canal do Suez. “Nessa altura comecei a fazer os exames à minha vida, estava com 30 anos e pensava: o que é que eu faço? Vou a Portugal, arranjo uma mulher e caso? E depois deixo-a lá? Eu não tenho vida para voltar para a terra”. Nesse momento ocorreu-lhe um pensamento: “eu vim para aqui para ir para América”. Foi para terra e enquanto não encontrou um barco que o levasse ao Novo Mundo não descansou. Durante quase um mês procurou todos os dias até que embarcou num cargueiro que de Roterdão ia a Londres, atravessava o oceano Atlântico, entrava no Canadá pelos grandes lagos e parava nos Estados Unidos da América.
Fugir de um barco para entrar na América
Na paragem em terras canadianas ainda esteve com alguns amigos que o convidaram a ficar, mas ele estava decidido a ir para terra do Tio Sam. No dia seguinte, a 1 de Junho de 1963, o barco parou em Cleveland, já em solo americano. “Eu até ia de serviço. Às 8h00 fiz a manobra, atracámos e fui ao meu quarto, tomei banho, vesti-me e fui à procura de alguns amigos que tinham vindo de Nova Iorque porque lhes tinha dito para estarem à minha espera”.
Tal como previsto, os amigos foram buscá-lo e levaram-no para a almejada cidade americana.
Nos primeiros tempos vivia no Bronx e em solo americano, ainda que ilegal, não havia problema em arranjar trabalho. Um mês depois do desembarque começou a trabalhar como servente de pedreiros e carpinteiros em Long Island. “Foi muito duro porque foram os meses mais quentes do ano e eu ia muito mimoso da vida no barco, onde só tirava apontamentos e mexia nalgumas válvulas”.
Veio o Inverno, que impedia os trabalhos, e no princípio do ano começou a trabalhar noutra empresa no mesmo local, essa do caldense Manuel Alves, conhecido como Manuel Sapateiro, do Imaginário. Aí entrou já com experiência e, portanto, como carpinteiro. Ao fim do ano já tinha sido promovido a encarregado.
Pouco tempo depois de chegar à América, o caldense conheceu a sua esposa, Carmina, que vivia em Mount Vernon. Conheceram-se por amigos comuns. Francisco até andava em namoriscos com uma jovem brasileira que lá vivia, mas mal conheceu Carmina ficou rendido. Casaram logo em Outubro. Ela não era cidadã americana, portanto nenhum dos dois ficaria legalizado, mas pouco tempo depois surgiu uma lei que permitia a legalização desde que casados. Nos documentos americanos de Francisco Antunes, o caldense foi registado como Frank Antunes. Em 1964 nasceu o primeiro filho, que baptizou com esse mesmo nome e quatro anos depois, a filha Lisa. Ambos vivem na América e têm dois filhos cada um.
Francisco Antunes ainda trabalhou para uma outra construtora, que pertencia a dois portugueses (um de Alfeizerão e outro da Murtosa), antes de ingressar na D&W Construction, em Westchester, naquele que viria a ser o seu último patrão, um cadavalense que foi proprietário de uma pensão nas Caldas e de um hotel em São Martinho do Porto. “Já não pegava nas ferramentas – só dirigia 10 homens e ganhava bom dinheiro”, contou.
E pouco tempo passou até Francisco Antunes decidir lançar-se por conta própria. Corria o ano de 1969 quando fundou a Caldas Concrete Corporation, uma empresa de construção civil em solo americano. Um dos primeiros trabalhos foi em Boston, a fazer fundações para apartamentos de um bairro com uma extensa área. Nesta altura Francisco Antunes voltou a pôr as mãos à obra às e dirigia uma equipa de três homens. Mas isso durou pouco tempo porque o volume de trabalho foi aumentando, chegou à dezena de funcionários e largou as ferramentas para poder angariar novos clientes e tratar de papeladas.
“Apanhei três a quatro anos muito bons, a apanhar obras grandes e a companhia começou a ganhar nome”. Em solo americano já muita gente conhecia o Frank Caldas.
“Em 1970 mudei-me para Pine Bush, onde comprei uma casa que ainda hoje é o meu posto”. A empresa continuava de vento em popa. Trabalhava para privados, mas também para o Estado americano, a fazer arruamentos e outras obras. Todos os anos vinha a Portugal e em 1973 comprou uma casa com terreno na Foz do Arelho onde fez dois prédios e uma vivenda.
No ano seguinte deu-se o 25 de Abril. “Soubemos logo pelas notícias! Reagimos bem, com agrado, porque era preciso uma vida mais livre, mas ao mesmo tempo com receio porque não sabíamos o que ia acontecer, se Portugal ia virar à esquerda, e porque esperava-se que Marcello Caetano trouxesse maior abertura e até creio que podia ter acontecido, mas aconteceu assim e foi o melhor que é a liberdade”.
O Caldas Internacional Hotel
Durante quatro anos Frank Antunes foi o presidente da Associação Regional Caldense, uma experiência que não esquece. “Peguei na associação numa altura em que esta estava em baixo e ajudei a erguê-la, fizemos coisas bonitas durante o tempo que lá estive. Uma vez levamos à América 16 presidentes de Junta, o presidente da Câmara e alguns empresários”.
O primeiro presidente da Câmara das Caldas a ir em visita a terras americanas foi ainda Luís de Paiva e Sousa, que foi a convite de um grupo informal de amigos da Foz do Arelho, ao qual Francisco também pertencia.
Os anos foram passando e no início dos anos 90 comprou um terreno nas Caldas. Pouco depois, em visita à América, o então presidente da Câmara, Fernando Costa, sugeriu-lhe que construísse um hotel. “Eu já tinha construído vários hotéis, mas hoteleiro nunca tinha sido, decidi construir o Caldas Internacional Hotel. Nunca pensei em abrir, era para construir e vender, mas acabei por arranjar uma equipa jovem, mas com experiência no ramo e em 1992 abri as portas e graças a essa equipa aquilo foi correndo bem”.
Já com o hotel a trabalhar comprou, em parceria, os terrenos da Unical na estrada de Tornada. Depois vendeu parte aos Supermercados Casaleiro, que foram adquiridos a meio do negócio pelo Pingo Doce, que foi quem lhe pagou. O resto do terreno foi vendido para vivendas.
Cinco anos depois de abrir as portas do Internacional, decidiu vender o hotel e, a partir daí, dedicar-se única e exclusivamente à compra e venda de propriedades. Investiu na compra de 13 apartamentos num piso de um condomínio no Algarve, que foi vendendo.
Hoje em dia ainda é a essa actividade que se dedica, a partir do seu escritório, bem por baixo da sua casa, perto da Avenida 1º de Maio. Vai aos EUA duas a três vezes por ano e é lá que celebra sempre o seu aniversário. “Ir para a América foi um dos bons passos que eu dei, foi lá que fiz a minha vida, foi lá que nasceu tudo, embora depois cá também tenha ganho muito dinheiro. Mas tudo veio de lá porque antes trabalhei muito, tive negócios e não conseguia ver os resultados”.



