• 90 ANOS
• VIÚVO, DOIS FILHOS, TRÊS NETOS E QUATRO BISNETOS
A minha vida foi dedicada à cerâmica. De tal maneira que os saudosos Herculano Elias e Ferreira da Silva me tratavam por Mestre Chico. E eu respondia-lhes: “não me chamem mestre porque eu sou só um cerâmico com muita prática e muitos anos, mas só isso”. A verdade é que entre o tempo que trabalhei nas fábricas do Belo, na Bordalo Pinheiro e agora na oficina da olaria do Lar do Montepio, já são 56 anos dedicados à cerâmica. Mas 42 foram passados aqui nas Faianças Bordalo Pinheiro, neste edifício onde funcionou a fábrica antes de passarem para a Zona Industrial.
Nasci no Bairro da Ponte, que na altura se chamava Bairro das Águas Santas. Vim ao mundo no dia 26 de Março de 1926 e sou filho de gente humilde, que trabalhava no campo. Quando fui para a escola primária, lá em baixo onde era a polícia de trânsito, só lá andei um ou dois anos. O professor uma vez abusou das reguadas, eu fugi e nunca mais lá pus os pés. Só viria a tirar a 4ª classe já em adulto. Eu era pinto do campo, só queria era andar lá por fora. E como era normal naquela época, acabei por ir ajudar os meus pais a trabalhar nas fazendas.
Aos 11 anos fui para aprendiz de latoeiro na oficina do João Machado, que ficava ali ao pé da Casa Caldeano (Rua Heróis da Grande Guerra). Ganhava 3 escudos (1,5 cêntimos) por semana. Fiquei lá até aos 14 anos, mas depois fui trabalhar para os areeiros que existiam ali no Monte Olivett. Foi aí que, durante algum tempo, fiquei conhecido por Chico da Areia.
Mais tarde fui trabalhar para umas minas de lenhite que haviam ali para os lados de Trás do Outeiro (Óbidos). Foi em 1940, no tempo da guerra e era preciso muito carvão. Só lá estive sete ou oito meses porque um dia um colega meu mandou com uma vagonete para um poço e eu, sem ter tido culpa, acabei castigado. Vim-me embora.
Voltei para os areeiros, mas depois iniciei uma vida de funileiro ambulante. Comprava folha de flandres no Thomaz dos Santos e andava aí pelas terras para arranjar e fazer tachos, púcaros e panelas. Ia de comboio para a Dagorda, para S. Mamede, Paul e corria as aldeias das redondezas.
Um dia, um senhor da Nazaré convidou-me para ir trabalhar para lá como latoeiro. E fui. O patrão era boa pessoa, mas só lá fiquei seis meses porque adoeci num pé e tive de vir para as Caldas.
Foi por esta altura que o mestre Belo, da Fábrica Belo, me disse: ‘dou-te 10 escudos [5 cêntimos] por dia se vieres trabalhar para cá’. Aquilo para mim era uma fortuna e lá aceitei. Mas um bocadinho contrariado porque eu não gostava muito de ir trabalhar para uma fábrica e porque na altura chamavam bonecreiros aos cerâmicos porque eles faziam bonecos.
“Aprendi com um discípulo de Bordalo Pinheiro”
Comecei por amassar o barro e pintar escorridos. Também trabalhei nos fornos, que eram a lenha. Passei noites a cozer. Um cerâmico naquela altura fazia de tudo. Depois passei a fazer moldes. Aprendi muito com o senhor Arcelino Carvalho, que tinha sido discípulo do Bordalo Pinheiro. É verdade. Bordalo chegou até mim através do senhor Arcelino e tenho a certeza que muito do que eu sei o devo também ao mestre Rafael Bordalo Pinheiro.
Nessa altura mal sabia eu que iria acabar por trabalhar na fábrica que ele fundou. Ao fim de 13 anos na Fábrica Belo, eu pedi ao senhor Belo um aumento de ordenado. Estávamos em 1954, eu já tinha 28 anos e tinha-me acabado de casar com a Aurília Rodrigues. Estávamos a viver numa casinha arrendada no Bairro da Ponte e eu queria subir um bocadinho na vida. Ganhava 28 escudos (14 cêntimos) por dia.
O senhor Belo pensava que me tinha agarrado e recusou o aumento. Avisei-o três vezes. Disse-lhe que me ia embora, mas ele não fez caso. Até que das Faianças Rafael Bordalo Pinheiro souberam disto e convidaram-me. Foram o senhor Armelim Simões (que era o gerente) e o Dr. Júlio Lopes (que era o administrador) que vieram falar comigo. Aceitei. Mas por causa disso o senhor Belo ficou tão chateado que deixou de me falar. E a mim proibiu-me de voltar à fábrica. Tinha medo que eu levasse de lá alguns segredos.
Nas Faianças Bordalo Pinheiro acabei por ir ganhar os mesmos 28 escudos por dia. Mas tinha a possibilidade de trabalhar três horas extras diariamente, que eram pagas a dobrar e no fim do ano havia sempre uma gratificação para os empregados.
Foi aqui que me tornei um verdadeiro ceramista. Corri as secções todas. Estive no barro, na pintura, no enchimento, nos acabamentos, nos moldes. Naquele tempo trabalhava-se tudo à mão, eu era bom a desenhar e também modelava muito bem. Fazia muitas peças.
Estive 42 anos nas Faianças Bordalo Pinheiro. Em princípios dos anos 70 passei a encarregado da secção de pintura. Era o mais novo encarregado da fábrica. E foi como encarregado que me reformei em 1992.
Eu gostava da minha profissão, mas isto de ser encarregado não era fácil. Havia muitos problemas e era complicado conseguir orientar o pessoal. Na secção de pintura havia 28 homens e mulheres e aquilo era o Diabo! Às vezes havia chatices a sério.
Trabalhei sempre nas instalações da velha fábrica e a dada altura naquilo que alguns chamavam a secção VIP, que era a parte mais criativa da fábrica pois era lá que se reproduziam as peças mais antigas do Bordalo, como os bonecos em movimento, as jarras com frutas, as terrinas. Foi nessa época que também aprendi alguma coisa de Química porque era necessária para as pinturas e era eu que preparava as tintas.
Nestes anos todos conheci vários administradores. O Dr. Júlio Lopes, a D. Fernanda Jardim, o general Damião e a irmã Maria da Graça, o Vasco Simões, o Eng. Jorge Serrano. Mas olho para trás e posso dizer que me dei sempre bem com todos.
Quando eu me reformei, tinha 66 anos, mas não me vim logo embora. O Eng. Serrano (que morreu em Março do ano passado) convidou-me para eu continuar a trabalhar na fábrica, a ensinar os mais novos. Fiquei mais dois anos, mas às tantas estava tão farto que ele próprio me disse para eu ir de férias dois ou três meses e voltar depois. Eu assim fiz, mas andei a enganá-lo, a adiar, até que um dia fui sincero e lhe disse: “ó senhor engenheiro, eu já não volto mais, já chega, foram muitos anos disto”.
Na olaria do Lar do Montepio
Em 2000, quando fiquei viúvo, fui-me um bocado abaixo e então convidaram-me para ir ao Lar do Montepio ensinar alguma coisa na olaria que eles lá têm. Aquilo era um bocado para eu me entreter e ajudar os utentes a pôr as mãos no barro. Eu fui lá um dia e gostei. Fui no dia seguinte e no outro e no outro. Fiz uma semana, um mês e quando dei por mim, já lá ando há 16 anos. Aquilo é para os utentes do lar e para pessoas que vêm de fora. Até professores lá andam. Eu faço e ensino a fazer. Tenho feito muitas peças. E até me chamam Mestre Chico, como me chamavam o Herculano Elias e o Ferreira da Silva. Aliás, o Herculano chegou a fazer-me um busto.
O meu filho José Fernando diz-me que eu me valorizei mais nestes últimos 16 anos na olaria do Lar do Montepio do que em toda a minha vida na Fábrica Bordalo Pinheiro. E não deixa de ter razão. Na fábrica eu não podia dar muitas largas à minha imaginação para fazer peças minhas porque estava sempre um bocadinho condicionado pelo que me deixavam fazer. Por isso, quando vim “trabalhar” para o Lar do Montepio, pude aplicar toda a minha criatividade para fazer peças da minha autoria. Mas, é claro, toda a gente diz que são inspiradas no Bordalo Pinheiro.






























