João Diniz foi buscar uma fragata à Alemanha e pensou logo em emigrar

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O ex-emigrante vive nas Cruzes e possui algumas vinhas com as quais se entretém

Aos 21 anos João Diniz pouco mais conhecia que as Cruzes, as Caldas da Rainha e Lisboa. Mas puseram-no num avião para a Alemanha para ir buscar uma fragata para a Armada Portuguesa. Regressou por mar e ainda andou quase 5 anos a navegar pelas rotas do Império Colonial, mas terminada a tropa haveria de regressar à Alemanha, agora não como marinheiro, mas como operário. Ali esteve 22 anos até construir uma casa nas Cruzes (Salir de Matos) e finalmente regressar para gozar a reforma e dedicar-se à agricultura.

Quando fiz a 4ª classe, em 1958, aqui na escola primária das Cruzes, o meu padrasto (perdi o meu pai aos quatro anos) não me deixou continuar a estudar. Eu até queria. Tinha sido bom aluno na escola, mas o meu destino era andar a trabalhar com a enxada no campo. Às vezes ainda apanhava com ela nos quadris quando cortava alguma erva mal cortada, que o meu padrasto não perdoava nenhum erro. Ainda assim, foi ele que me emprestou dinheiro para eu tirar a carta de maquinista de barcos.
Foi na Nazaré e em S. Martinho que tirei a cédula para poder embarcar e não perdi muito tempo. Eu queria era sair daqui para fora. Em Agosto de 1964, tinha eu 16 anos, fui para Lisboa e embarquei no Ilha do Faial, um barco de pesca que lançava redes ali ao largo da costa da Guiné. Eu trabalhava na casa das máquinas, um sítio barulhento e sujo, mas sempre era melhor do que a vida no campo. Andávamos 30 dias no mar e vínhamos a Lisboa descarregar, mas só ficávamos em terra três ou quatro dias, que o navio tinha partir outra vez.
Nessas alturas metíamo-nos num carro de praça, eu e mais três ou quatro rapazes aqui da zona, e vínhamos à terra. Eu trazia a roupa para a minha mãe lavar, bebia uns copos com uns amigos, dormia no meu quarto de infância sem sentir os baloiços do navio e lá voltávamos para Pedrouços para embarcar outra vez.
Diga-se de passagem que naquele tempo eu não era o único. A maneira que a malta mais nova arranjava para sair daqui era poder embarcar. Havia dias em que do largo aqui das Cruzes saíam três ou quatro táxis com rapaziada que andava embarcada.
Eu andei no Ilha do Faial, no Pólo Norte, no Praia do Restelo, no Alfeite, no Albufeira, tudo navios de pesca. Mas havia outros que andavam nos paquetes de passageiros e estavam temporadas maiores fora de casa.

A TROPA NA MARINHA

Quando fiz 21 anos fui chamado para a tropa e, obviamente, mandaram-me para a Marinha. Sou um “filho da escola” – andei em Vila Franca de Xira – e fui depois para o Alfeite. Um dia disseram-me que eu faria parte de uma tripulação que ia buscar uma fragata nova, a Almirante Pereira Bessa, a um estaleiro alemão. Foi assim que eu, um rapaz das Cruzes que ainda não tinha visto mundo, apanhei um avião na Portela e aterrei na Alemanha e fui instalado numa base militar em Kiel.
Logo na altura vi que a Alemanha estava aí uns 20 ou 30 anos à frente de Portugal. O que mais me impressionava era a organização deles e o marco alemão. Cada marco era para aí uns cento e tal escudos. Eu pensei logo ‘quando acabar a tropa vou arranjar maneira de vir para a Alemanha”.
Não gozei muito naqueles dois meses em que estive em Kiel. Não sabia a língua nem tinha dinheiro. Saíamos da base à noite, dávamos uma volta pela cidade, um grupo de marinheiros portugueses a contar os Pfennig (cada marco valia 100 Pfennig) para beber uma cerveja. Também é certo que, anos depois, como emigrante, também não entrava em grandes despesas porque aquilo só valia a pena se trabalhássemos muito e poupássemos ainda mais.
Mas não quero adiantar-me. Em Kiel, quando a fragata ficou pronta e recebeu a bandeira portuguesa, passámos a dormir nela e um mês depois zarpámos para o Alfeite. Não fiquei muito tempo em Portugal. Em breve a Pereira Bessa partia em missão para a Moçambique. Mas demorámos a chegar: três meses em Cabo Verde, três meses na Guiné Bissau, duas semanas em Luanda, uma semana na cidade do Cabo (África do Sul) e depois, sim, Lourenço Marque (hoje Maputo).
A nossa missão era patrulhar a costa moçambicana e andei quase cinco anos a navegar no Índico, entre Lourenço Marques, Beira e Porto Amélia (hoje Pemba). Portugal era então um país que – aprendíamos na escola – ia do Minho a Timor, e coube-me a mim andar a defender aquela parte do Império. Servir na Marinha poupou-me aos horrores da guerra. Pior estavam os do Exército que combatiam e morriam nos territórios do norte de Moçambique. Mas, mesmo assim, não escapei uma vez a ver dois soldados ficarem sem pernas devido ao rebentamento de uma mina quando fazíamos um desembarque num rio.
Da guerra ainda me lembro de um episódio estranho: uma vez subimos pelo rio Rovuma, que faz fronteira entre o norte de Moçambique e a Tanzânia numa operação que incluía forças sul-africanas (e até um submarino da África do Sul) e que fizeram explodir uma base da FRELIMO.
Durante os quatro anos em Moçambique nunca vim à Metrópole, como então se dizia. Nas férias aproveitei para tirar a carta. Quando acabei a tropa, já não vim de barco – voei da Beira para Luanda e depois para Lisboa.

EM SINZIG NA ALEMANHA

Quando regressei às Cruzes em 1973, é claro que tinha saudades da terra e da família. Mas estava tudo na mesma, isto é, sem futuro. Por isso não demorei muito tempo a inscrever-me para ir para a Alemanha porque aqui o meu vizinho Silvino Alves (ver “Silvino Alves para a Alemanha ganhar dinheiro para o Caldeirão”, Gazeta das Caldas de 8/03/2019) dizia-me que precisavam lá de gente para trabalhar.
E foi assim que fui parar a Sinzig, uma cidade pequena, entre Koblenz e Bona (que na altura era a capital da Alemanha Federal). Trabalhei na AGRO na parte da hidráulica (porque eu já percebia alguma coisa de máquinas) e vivia num bairro da própria empresa.
Durante 22 anos a minha vida foi trabalhar e amealhar deutsche mark. Vivi quase dois anos sozinho, mas depois casei-me e a minha mulher foi comigo. Os meus filhos Vítor e Diana nasceram na Alemanha e ainda hoje lá vivem. É lá que também tenho três netos, mas infelizmente eles mal falam português. Quando regressei a Portugal divorciei-me e voltei a casar. O meu mais novo, o João Miguel, tem 19 anos.
No tempo em que vivi em Sinzig não houve lugar a grandes diversões. Saía de casa, atravessava a rua e tinha a fábrica em frente. E, sempre que podia, fazia horas extraordinárias, porque afinal a gente estava ali era para ganhar dinheiro. Aliás, os trabalhos mais difíceis não eram os alemães que os faziam. Nem os turcos nem os árabes. Eram os portugueses e os espanhóis. Estávamos sempre prontos.
Hoje vejo na televisão que não querem estrangeiros na Alemanha, mas eles hão-de se lembrar que se não fossem os estrangeiros, eles não eram ninguém. Mas, seja como for, eu de política não entendo nada. O meu filho, o Vítor, quando vem cá de férias é que me fala algumas coisas de lá, da Merkel, do SPD, da CDU, dos Verdes e isso, mas eu não percebo muito.
Quando foi o 25 de Abril eu percebi logo de manhã que alguma coisa se passava em Portugal porque tinha o costume de ouvir o rádio português logo de manhã. Na fábrica entre os portugueses ainda falámos sobre isso, mas só à noite é que percebemos que tinha havido uma revolução. Não fiquei lá muito preocupado. Quando foi no 16 de Março, é que sim. Também tinha ouvido que saíram umas tropas das Caldas da Rainha e eu pensei ‘Eh pá, isso é na minha terra!… . Mas nem telefonei. Naquela altura telefonar era caro. E quase nem havia telefones. Aqui nas Cruzes, então, só havia dois.
Em 1995 eu tinha 48 anos e decidi regressar a Portugal. Já tinha a casa e herdei umas fazendas do meu avô. Durante uns anos dediquei-me à fruta, mas depois arranquei os pomares e agora tenho vinhos. Comprei uma prensa e tenho um lagar onde faço vinho que depois vendo. E vivo disso e da reforma que vem da Alemanha no dia 29 de cada mês e da reforma portuguesa (do tempo em que andei nos barcos) que vem no dia 10. Só que há uma diferença: a reforma alemã eu não preciso de fazer nada que eles aumentam-na todos os anos, mas a reforma portuguesa, essa está sempre na mesma…