84 ANOS
VIÚVO, UMA FILHA, UMA NETA E UM BISNETO
Trabalhei 20 anos na estação das Caldas. Fui servente, carregador, agulheiro, manobrador, capataz de manobras.
Categorias diferentes que, na prática, significavam a mesma coisa: eu dava entrada aos comboios nas agulhas, fazia cargas e descargas de mercadorias, engatava e desengatava vagões, limpava a estação, acendia as lanternas dos indicadores de posição das agulhas, dava corda aos discos, mantinha os sinais, colocava óleo nos aparelhos de via. Uma vida inteira ligada ao caminho-de-ferro.
Nasci em 6 de Agosto de 1932 em Vieirinhos (Louriçal), filho de ferroviários. O meu pai trabalhava na conservação da via e a minha mãe era guarda de passagem de nível. Vivíamos amontoados na caseta, à beira da linha. Uma cozinha ao meio, um quarto de cada lado e um barracão feito de chulipas onde dormia com os meus irmãos. Éramos cinco: quatro rapazes e uma rapariga. Uma vida de miséria e sempre a saltar de um lado para o outro, pois era essa a sina dos ferroviários.
Teria os meus quatro ou cinco anos quando a família se mudou para a Curia (Anadia), na linha do Norte. Mas logo a seguir foi transferida para o Lavre (Montemor-o-Novo), na linha de Vendas Novas. Aquilo era um deserto e quando fui para a primária andei numa escola lá num monte, que até era o dono da quinta que pagava à professora. Mas só lá fiz a 1ª classe porque a família foi outra vez transferida, desta vez para a linha do Oeste, para a Amieira (concelho de Soure).
A passagem de nível ficava mesmo na Bifurcação de Lares, no local em que a linha do Oeste bifurca para Figueira da Foz e Coimbra. Um sítio isolado no meio dos campos de arroz. Eu ia à escola ao Moinho do Almoxarife, que era ali ao lado, onde fiz a 3ª classe. Só mais tarde, em adulto, fiz o exame da 4ª classe.
Da Amieira já tenho mais recordações. Na passagem de nível da minha mãe só lá passavam carroças e carros de bois. Não havia carros nem tractores. A minha mãe trabalhava de sol a sol, a fechar e a abrir as cancelas à passagem dos comboios e à noite fechava-as a cadeado porque a passagem de nível ficava tecnicamente encerrada. Mas de vez em quando lá aparecia um camponês a bater-lhe à porta para abri-la porque vinha já tarde dos campos, com a carroça, e queria atravessar a linha.
ASSENTADOR NA VIA
Vida de miséria aquela, naquele lugar. Andei a guardar cabras e ovelhas, andei à jorna no campo, mas com 17 anos comecei a trabalhar na via com o meu pai. Tínhamos de assentar as travessas (chulipas) debaixo dos carris, fixá-las apertando bem os tirafundos (parafusos) e depois atacar a via compactando pedras (balastro) debaixo das travessas para que a linha ficasse bem nivelada e bem assente. Por isso nos chamavam assentadores.
Era um trabalho precário, como hoje se diz. No dia 20 de Dezembro de cada ano a CP despedia todos os trabalhadores como eu e voltava a contratá-los em Janeiro. Ganhava uma miséria naqueles anos 50, mas entregava tudo à minha mãe, que depois me dava cinco tostões, o que não dava para nada.
Por esta altura, a família mudou-se outra vez, mas para ali perto,na Telhada, onde também não ficou muito tempo porque a minha mãe foi enviada para Fanhais, perto de Pataias. Eu entretanto tinha 20 anos e fui chamado para a tropa. Assentei praça em Torres Novas e depois fui para o Porto e 18 meses depois regressei a Fanhais.
E aí voltei a assentar travessas. Sempre como servente de via, sem contrato e onde o trabalho me levasse. Andei pelo Alentejo, na linha de Vendas Novas e em Alcácer do Sal, fui trabalhar na renovação das pontes metálicas da Beira Alta, ali para o Luso e Santa Comba Dão. Era um trabalho escravo, brigadas de dezenas de homens a servir o caminho-de-ferro em trincheiras, pontes, túneis, e a dormir em barracões de madeira nas estações. Não havia diversões, não havia bailaricos (nunca aprendi a dançar), não sabia o que era um cinema.
Eu já tinha vinte e tal anos quando consegui ficar efectivo na CP. Fiquei ali na zona de Nelas a trabalhar na conservação da via. Mas é claro que eu gostava era de trabalhar numa estação, que era uma vida mais calma. Fiz um pedido por escrito para Lisboa e uns meses depois disseram-me que havia uma vaga em Setúbal. Fiquei todo contente, claro.
Trabalhei como manobrador. Dava entrada aos comboios e fazia manobras para engatar os vagões e formar as composições. Andava sempre com o casaco de ganga manchado de óleo. Um trabalho perigoso, entalado entre os tampões de choque das carruagens, vagões e locomotivas, a apertar e a desapertar os tensores, a engatar e desengatar aqueles monstros de aço. Um tipo ficava ali, pequenino, a dominar o ferro contra o ferro, a locomotiva a resfolgar (sou do tempo dos comboios a vapor), acompanhado da lanterna e da corneta com que dava sinais ao maquinista para avançar, parar, recuar. Turnos de oito, dez, 14 horas.
De Setúbal fui para Alvalade do Sado e depois consegui ser transferido para Valado dos Frades e nunca mais saí da linha do Oeste. Eu entretanto conhecera a Judite, em Fanhais, e casei-me na Nazaré. Ficámos a morar em Fanhais, mas depois eu fui promovido a agulheiro de 3ª classe e fui transferido para Martingança.
Estas promoções significavam uma diferença de tostões no ordenado, mas qualquer tostão a mais era bem vindo. Foi quando estava na Martingança que fiz a 4ª classe porque a CP obrigou a que todos os funcionários tivessem a escola primária completa. E também foi aqui que fui promovido de agulheiro de 3ª a agulheiro de 2ª. Fiz o exame em Lisboa e nos testes havia uma entrevista com um Pide que me perguntou, com ar de manda-chuva: “então você não ganha o suficiente como agulheiro de 2ª?”.
A Martingança foi a estação onde mais se trabalhava porque não se parava um minuto. Do ramal para a fábrica da Maceira saíam quatro comboios de cimento por dia e havia ainda os comboios regulares de mercadorias. Era preciso formar os comboios, engatar os vagões, fazer as manobras… Sempre com o coração nas mãos porque aquilo fica num alto e qualquer descuido podia levar o material a deslizar por ali abaixo. Uma vez – não foi comigo – houve um corte de material que começou a rolar pela linha fora, cinco vagões carregados de cimento, em direcção à Marinha Grande, a Leiria, aquilo é sempre a descer e não havia quem os parasse. Felizmente que se avisaram as guardas de passagem de nível e em Leiria ficou retido um comboio que vinha em sentido contrário. Só não houve uma tragédia por milagre. Os vagões só pararam na Regueira de Pontes.
A ESTAÇÃO DAS CALDAS ERA UM MUNDO
As Caldas foi a estação onde trabalhei mais anos. Vim para cá em 1967, com a mulher e a minha filha. Entrava de serviço de madrugada e saía à tarde, ou entrava à tarde e saía à meia-noite. Era uma estação muito importante. Só pessoal braçal (serventes, carregadores, agulheiros e manobradores) éramos à volta de 24 (hoje existem apenas quatro). No total, contando com factores, chefes e inspectores, deviam trabalhar aqui mais de 40 pessoas (hoje não passam de meia dúzia).
Eu carregava e descarregava mercadorias, dava entrada aos comboios, engatava vagões, formava comboios, recebia os bilhetes dos passageiros à saída da gare, fazia a limpeza à estação, acendia as lanternas das agulhas.
Havia os “mercadorias”: os comboios 4081 e o 4082 que ficavam horas nas Caldas. Abríamos os vagões para descarregar e carregar os volumes e depois havia vagões de carga completa que ficavam cá e era preciso o comboio manobrar para deixar e recolher vagões nos ramais. Só ali para os Silos, deixei eu lá centenas e centenas de vagões à descarga.
Naquele tempo vinha tudo de comboio. Abastecíamos todo o comércio das Caldas. As lojas todas vinham cá buscar os volumes ou despachar encomendas para todo o país. Eram caixas com roupa, sapatos, retrosarias, barris de bebidas, garrafões, mas também peças, ferramentas, enfim, todos os artigos que se vendiam na cidade. Até os CTT tinham uma ambulância postal que viajava atrelada aos comboios para recolher e distribuir o correio ao longo da linha.
Aqui à estação chegavam as caixas de peixe fresco, as bobines dos filmes para o cinema, os jornais de Lisboa, as encomendas para as famílias: sacos de batata, motorizadas, bicicletas. E também daqui expedíamos caixas com pintos do dia, jaulas de criação com galinhas e coelhos vivos. E carregávamos vagões completos com porcos: quase todos os dias iam dois ou três para o Norte.
E passageiros eram às centenas. No Verão, então, eram aos milhares, sobretudo na altura das praias, mas também no 15 de Maio e no 15 de Agosto. Até se faziam comboios especiais e a estação ficava pejada de gente.
Havia as vendedoras que serviam os passageiros à passagem dos comboios. A Piedade vendia cavacas das Caldas e bilhinhas de barro com água. Quando um comboio chegava ela apregoava “Cavacas das Caldas e água fresca”.
A estação era um mundo. No dormitório pernoitavam dezenas de ferroviários: factores, revisores, maquinistas, guarda-freios. E até havia um homem que tinha como função tratar do dormitório e acordar o pessoal à hora que entrava de serviço.
DO TEMPO DO VAPOR
Sou do tempo dos comboios a vapor, das locomotivas a carvão que tinham de ser abastecidas de água nas estações. Quando vim para o Oeste já havia as automotoras a diesel, mas os mercadorias ainda eram a vapor. Havia, contudo, um comboio naquele tempo que lhe chamavam o Flecha. Tinha uma máquina a diesel prateada e as carruagens, em vez de madeira, eram todas em aço inox.
De agulheiro de 3ª passei, já nas Caldas, a agulheiro de 1ª e depois a capataz de manobras. Reformei-me em 1987 com 55 anos.
Durante algum tempo tive um negócio de charcutaria com a minha mulher, ali na Rua Coronel Andrada Mendonça. A Judite, nascida em Fanhais, no concelho de Alcobaça, acabaria por se tornar uma verdadeira caldense pois vendia frutas e legumes na Praça. Depois estabelecemo-nos com a Charcutaria Dias. Ainda aguentámos aquilo até 2005 e depois é que me reformei a sério.
Ou talvez não. Ele há noites em que continuo a trabalhar porque estou reformado do caminho-de-ferro e ainda sonho com o serviço. Às vezes tenho momentos de aflição: estou a dar entrada a um comboio para uma linha errada, ou então há uma composição que vai para cima da outra. Tanta responsabilidade nesta vida de ferroviário dá nisto. Um homem está afastado do caminho-de-ferro há 29 anos e ainda sonha com ele.
Agora vou poucas vezes à estação. Do meu tempo só lá está o Martins. E aquilo já não é a mesma coisa. Está morto. Não é só a estação. É a linha do Oeste. É o caminho-de-ferro. Está tudo morto. Sempre ouvi dizer que a linha ia ser electrificada, que isto havia de ser uma linha moderna, mas qualquer dia ainda morro e não vejo nada disso.