79 ANOS
VIÚVO, 4 FILHOS, 7 NETOS
Era neste sítio a delegação do Diário de Notícias. Comecei a vender jornais na rua com nove anos, em 1946. E foi esse o meu sustento durante várias décadas. Acabei por ser o último ardina das Caldas, quando larguei a venda em 1975. Mas eu, que vendi mais de um milhão de jornais ao longo da vida, nunca os li porque não aprendi a ler e só os conhecia pelos títulos.
A vida nunca me foi fácil. Nasci pobre e com uma doença congénita na vista que se agravou com a idade. Perdi o meu pai aos 12 anos e saí da casa aos 17 porque não suportava o meu padrasto. Vivi em casa de amigos e até numa barraca. Tudo o que tenho – e não é muito – foi ganho com muito sacrifício. Metade da vida a vender jornais na rua. A outra metade na recolha do lixo para a Câmara das Caldas.
Nasci em 6 de Outubro de 1937 em Vila Verde de Matos (A-dos-Francos). O meu pai trabalhava lá numa quinta e vivíamos numa cabana. Éramos quatro irmãos, mas morreram dois. O meu pai levou-nos para o Alentejo para a ceifa e dormíamos numas barracas de caniços. Apanhamos uma doença e fomos todos internados. Dois morreram e dois viveram. Fiquei eu e o meu irmão. Mais tarde nasceram umas irmãs, mas também morreram. Vivíamos numa grande pobreza.
Depois De Vila Verde de Matos, viemos para as Caldas, para o Bairro Albano. Eu nunca fui à escola porque éramos muito pobres e qualquer tostão contava para a família. Por isso, com nove anos fui para a rua vender jornais.
Estávamos em 1946. Não havia televisão e, além da rádio, que dava as notícias mais imediatas, eram os jornais que traziam as novidades que as pessoas liam avidamente. Eram vendidos nas ruas e nos cafés e naquela altura havia mais de 20 miúdos como eu a vender jornais, quase sempre ali em volta da Praça da Fruta.
Nas Caldas da Rainha havia dois agentes: o Álvaro de Sousa (que tinha uma papelaria na tipografia do José Dias) e o Franklin Galinha, (da Papelaria Pelicano).
Eu comecei a trabalhar para o Álvaro de Sousa. Ele era agente dos jornais do Norte: o Primeiro de Janeiro, o Jornal de Notícias, o Comércio do Porto, o Norte Desportivo, que eram todos matutinos, e de alguns jornais da tarde como o Diário de Lisboa e o Diário Popular.
JORNAIS A 8 TOSTÕES
Os jornais eram vendidos a oito tostões (cerca de meio cêntimo de euro) e eu ganhava 10% em cada um. Não corria a cidade toda porque nas ruas poucos compravam jornais: andava sempre ali em torno dos cafés da Praça da Fruta e ia até aos Capristanos. Mas éramos mais de 20 ardinas e ao fim do dia tinha vendido uns 30 ou 40 jornais e a minha mãe ainda me obrigava a dar um valor fixo por dia. Se eu não desse, ela batia-me.
Eu era um puto da rua que andava descalço e não sabia ler, mas aprendi a fazer contas e a dar trocos. Em 1950, quando eu tinha 13 anos, mudei-me para o Franklin Galinha porque o meu irmão Albertino, que também vendia jornais, foi trabalhar para ele. Ali já era melhor porque ele tinha os jornais de Lisboa, como o Século e o Diário de Notícias, que tinham mais saída. Havia também o Diário de Lisboa, o Diário Popular, a República, o Jornal Desportivo, A Bola, o Mundo Desportivo… e também o Século Ilustrado que sempre dava mais dinheiro. Agora eu já vendia 60 a 90 jornais por dia.
Nas Caldas da Rainha os matutinos chegavam às 10h30 à estação e nós íamos buscá-los ao comboio. Éramos uns 20 ardinas e fazíamos grandes despiques para chegar primeiro à Praça da Fruta. A Zaira era o primeiro sítio onde íamos porque era onde havia mais posses e era ali que paravam os doutores todos. E depois íamos ao Café Lusitano, ao Central, ao Bocage e ao Saraiva. E também à Esplanada do Parque! Então no Verão era para lá que corríamos porque estavam lá os doutores e aquela gente fina de Lisboa que vinha cá de férias.
Os jornais da tarde vinham numa furgoneta que parava ali ao pé da capela de S. Sebastião e a gente ia lá buscá-los e começava logo a vendê-los na Praça da Fruta. Eu tinha alguns fregueses que compravam dois jornais por dia, um de manhã e outro à tarde. E alguns eram fixos. Até costumava atirar com o jornal, dobrado, para dentro das janelas no primeiro andar.
Para vendermos mais jornais costumávamos apregoar as notícias quando havia algum acontecimento importante. “Olhó Século! Traz o assalto ao Santa Maria!” (1961). Ou então: “Olhó Janeiro! Traz os chouriços falsificados”, quando se descobriu que uma fábrica do Montijo fazia chouriços com carne de burro. “Olhó Século, olhó Notícias! Traz a guerra na Índia” (1961), “Olhó Século, olhó Notícias! Traz a morte do Humberto Delgado!” (1965), “Olhó Século, olhó Notícias! Traz o Golpe de Estado” (25 de Abril de 1974).
De alguma forma gritei nas ruas algumas das notícias mais importantes da História de Portugal no século XX e era nessas alturas que eu vendia mais jornais.
Mas os jornais não eram todos iguais. O Diário de Lisboa e o República eram comprados por gente que era da oposição. Eu não percebia daquilo, mas tinha uns clientes que me compravam sempre aqueles dois jornais. Só depois do 25 de Abril é que soube que eles eram informadores da Pide e que só os compravam para fazerem crer que eram do contra.
Quando eu tinha 17 anos saí de casa da minha mãe porque o meu padrasto me tratava mal. Saí de lá com uma cama de arames às costas e fui para casa de uns amigos na rua Henrique Sales. Depois vivi numa barraca nos Bairro das Morenas, a seguir fui para uma casita no Bairro da Ponte e depois para o Bairro dos Arneiros. Uma vida difícil, sem rendimento certo e sempre à espera do que ganhava com os jornais
Eu não era um bom partido para as raparigas solteiras. E só aos 27 anos é que encontrei a mulher da minha vida – a Elísia Maria Ribeiro, de Salir de Matos. Conheci-a na procissão do 1º de Maio em 1964 e juntei-me com ela. Nunca casámos. A Elísia tinha uma história parecida com a minha: o pai tinha cegado numa pedreira quando ela era pequenina, também era pobre. Tão pobre que até a mandaram para uma casa de correcção sem que ela tivesse feito nada de mal. Mas naquele tempo era assim: chamavam corrécios aos filhos dos pobre. Descobri nela uma alma gémea, pobre como eu e companheira de infortúnio. Juntamo-nos e fomos viver numa casinha em S. Cristóvão. Depois mudamos para o Casal da Ribeira. Ela vendia cavacas das Caldas nas feiras e eu continuava com os jornais. Disso vivíamos.
Em 1967 deixei de ser ardina por dois anos. O meu irmão ofendeu-me: disse-me que só éramos irmãos fora dos jornais e que nos jornais éramos adversários. Ora eu via mal (tenho este problema na vista) e ele via bem. Fiquei muito magoado e larguei a venda.
Durante dois anos saltei de emprego em emprego: a carregar camiões de madeira para o Crespo, na fábrica do Caiado e a nas câmaras frigoríficas para o Amaro da Silva.
Em 1969 o meu irmão pede-me para eu lhe fazer a venda dos jornais durante três dias porque tinha de ir ao Norte. Eu disse-lhe que sim, mas ele não voltou a aparecer. Tinha emigrado para França e eu, de repente, estava de novo na venda.
AGORA HAVIA MAIS títulos
Agora o agente era o senhor Pedro Franco, do Diário de Notícias, aqui em frente à Rodoviária. E nessa altura já só havia dois ardinas nas Caldas: eu e o Henrique Vilão. Por isso nessa altura eu vendia 600 jornais por dia. Tinha um triciclo, que era uma bicicleta com três rodas e uma caixa que servia de banca. Corria a cidade toda, ía à Secla e à fábrica do Melo, na rua da Fé, onde tinha também lá uma grande freguesia.
Os jornais continuavam a chegar pelo caminho-de-ferro. Vinham na automotora das oito da manhã. Mas como o senhor Franco era agente do Diário de Notícias arranjaram-me um passe da CP para eu viajar de graça nos comboios entre Lisboa e a Figueira da Foz. E então eu ía cedo para baixo, ao cruzamento da Malveira e começava logo ali a vender jornais no comboio até às Caldas. Havia também o Petinga, do Bombarral, que fazia o mesmo, mas eu não me dava bem com o feitio dele.
Estávamos no início dos anos 70 e agora havia mais títulos. Tinha aparecido o Recorde e havia também a Capital, a revista Actualidades, os jornais do Sporting, do Benfica e do Belenenses. E havia a revista Eva, que tinha muita saída no Natal. E também apareceu o Expresso.
A época em que vendi mais jornais foi no 25 de Abril e nos meses seguintes. Cheguei a ter uma roda de gente à minha volta a querer comprá-los. Só que por essa altura o Pedro Franco cegou e agora era o Fernando Fragoeiro que estava no Diário de Notícias.
E ele não era amigo dos vendedores de jornais.
Começou a dar-me menos jornais do que eu precisava. À segunda-feira eu vendia 200 Bolas e ele só me dava 70. Eu esgotava o Diário de Notícias e ele tinha-os escondidos debaixo do balcão.
Chateado com isto, em 1975 deixei de vez os jornais. Fui o último ardina das Caldas. Só ficou o Petinga, do Bombarral, que andava nos comboios e vinha cá de passagem.
Mas eu tinha 38 anos e filhos para alimentar. Precisava de ganhar a vida. Fui uns dias para as minas de gesso do Gama, ali perto de Óbidos. Depois andei a montar os esgotos no Bairro dos Arneiros por conta de uma empresa da Figueira da Foz. Mas pouco tempo por causa das dificuldades da vista.
E eu não sabia ler nem escrever.
Tentei ir para a Câmara, mas as administrações eram provisórias e diziam que não podiam dar-me emprego. Foi o Dr. Perpétua e o Dr. Custódio Freitas que me deram a mão e lá me puseram como cantoneiro de limpeza. Andei, assim, na recolha do lixo, a acartar caixotes para os camiões porque naquele tempo não havia contentores como é hoje – era agarrar em baldes e despejá-los na camioneta do lixo.
O Hergildo Velhinho, que foi presidente da Comissão Administrativa da Câmara a seguir ao professor Perpétua, é que melhorou muito as condições dos trabalhadores do lixo e aquilo passou a ser menos duro. Seja como for, para mim era bom ter um ordenado certo no fim do mês.
Trabalhei 32 anos na Câmara das Caldas e reformei-me por invalidez aos 69 anos. O trabalho que eu tinha também prejudicou muito o meu problema na vista e hoje só tenho 4,5% de visão e num só olho.
Mas vou-me mexendo. De manhã vou todos os dias até à rua das Montras e à Praça. À tarde estou por aqui numa garagem e entretenho-me a fazer caixas com rádios! Agarro em rádios dos carros, daqueles que já não se usam, compro transformadores e colunas e faço caixas de rádios.
Tenho saudades dos jornais. A gente habitua-se a gostar do que faz. Os meus melhores tempos foram antes e depois do 25 de Abril. Antes porque já havia pouca concorrência e eu vendia muitos jornais. Depois porque continuava a vender muito e nessa altura já havia liberdade.