Na sua casa com os documentos que guardou quando esteve emigrado
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José Vieira nasceu em A-da-Gorda (Óbidos), tem 69 anos e começou a sua vida de trabalho ainda garoto na hotelaria caldense e obidense. Passou pelos hotéis da Copa e Estalagem do Convento, com o intuito de obter a carteira profissional de cozinheiro e assim poder ir trabalhar para a marinha mercante. Como não queria ir para a tropa e ter de fazer a guerra colonial, fugiu a salto para França, onde viveu e trabalhou ao longo de 12 anos. Regressou ao seu país após a Revolução de Abril e dedicou-se ao comércio de bacalhau.
Com quatro anos, José Vieira acompanhado pelo seu pai, na quinta da família
José Vieira tinha apenas quatro anos quando os seus pais, ambos obidenses alugaram a Quinta de Belverde, que pertencia ao médico Ernesto Moreira, então director do Montepio. Corria o ano de 1954 e José Vieira muda-se da A-da-Gorda para a quinta onde os pais se dedicavam à agricultura e à criação de gado. Acompanha-o o seu irmão, Afonso Vieira que tinha mais 10 anos que José, hoje com 69 anos. Aos seis anos, José Vieira frequentou a escola primária na delegação escolar nas Caldas da Rainha, próxima do Parque e, mais tarde, na Praça do Peixe antiga, onde fez o exame de admissão à Escola Comercial e Industrial. Esta ainda funcionava onde hoje são os serviços administrativos do CHO. E foi no ano lectivo de 1964/65 que o obidense, com os seus colegas e professores, foram inaugurar o novo edifício daquela que é hoje a Escola Secundária Rafael Bordalo Pinheiro. Ali andou até aos 15 anos a aprender serralharia, mas não terminou o curso pois queria ir trabalhar. A 1 de Dezembro de 1966 foi para o Hotel Rosa, na Rua Diário de Notícias, tendo começado por ser aprendiz de cozinheiro. O seu primeiro ordenado foi de 350 escudos (menos de dois euros). “A 23 de Março de 1967 troquei de patrão, para ganhar mais 50 escudos. Mudei-me então para Óbidos e fui trabalhar para a Estalagem do Convento”, contou José Vieira, recordando que na época, a unidade hoteleira pertencia a um casal de franceses e o jovem, que já tinha aprendido a cozinhar no Hotel da Copa, passa então a ganhar 400 escudos (dois euros). E qual o motivo que o levou a ingressar na indústria hoteleira se antes tinha estudado para ser serralheiro? Para obter a carta do Sindicato dos Profissionais da Industria Hoteleira a fim de obter uma cédula marítima e poder ir para o mar. “Para ir para um barco era preciso ter uma profissão”, contou José Vieira, acrescentando que a 23 de Março de 1968 embarcou no paquete Império, que pertencia à Companhia Colonial de Navegação. Quem estivesse embarcado não tinha que ir à tropa, mas depois já não dava para adiar mais o inevitável: a ida para os quartéis e a posterior mobilização para a guerra. A 20 de Novembro de 1969 (tinha então 19 anos) falou com o comissário do barco para o ajudar pois apesar de “nunca ter militado contra o Salazar, eu era claramente contra a guerra nas colónias”. Não conseguiu qualquer ajuda para não ir para a guerra e, como tal, José Vieira viu uma única opção: fugir para França onde já vivia e trabalhava o seu irmão Afonso. Tomada a decisão, desembarca a 20 de Novembro de 1969, recorrendo a uma licença médica e não regressará mais ao mar, caso contrário, se continuasse embarcado o mais certo seria ser recrutado “à força”.
Veio para casa, nas Caldas, e soube que havia uma senhora que levava clandestinos para França. Combinou-se tudo para o dia 26 de Novembro de 1969 e na véspera, José Vieira teve que lhe pagar cinco contos (25 euros), a quantia cobrada para poder “dar a salto”. Nesse dia apanhou um autocarro para Rio Maior e esperou a passadora no restaurante Gato Preto. “Naquela altura quem passava malta clandestina arriscava-se a multa e a prisão”, afirmou o emigrante, lembrando-se que aquela aventura foi vivida por três homens e que a rota de saída foi através da fronteira de Marvão. Viajaram num Carocha (um Volkswagen muito popular nos anos 60 e 70). “Ela levou-nos até uns caminhos num pinhal e, depois de termos aguardado um pouco, apareceu um homem idoso, com um pau”, contou José Vieira explicando que este se assemelhava a um pastor. Aquele era um local de passagem e os clandestinos tinham indicações para que, se aparecesse a GNR, dizer que se dirigiam a Espanha para apanhar azeitona. Avisaram-nos que se calhar iriam molhar os pés e José Vieira recordou-se de outras histórias de quem se tinha molhado todo para conseguir atravessar rios até chegar ao país vizinho. Daquela data lembra o “luar imaculado” que lhes facilitou a travessia de um riacho que separava Portugal de Espanha. “Já estamos em Espanha! Ah! Agora já ninguém nos apanha!”, disse naquela ocasião em que percebeu que tinha passado a fronteira. Fugia então ao Estado Novo e, sobretudo, à guerra colonial. E ainda mais feliz ficou ao começar a ouvir o característico barulho do Carocha da senhora que os trouxera e que se aproximava para vir buscar aqueles três homens que procuravam trabalho e liberdade em França. E seguiram viagem. Ainda em Espanha, enquanto dormiam no carro, polícias espanhóis vieram bater ao vidro para ver se estava tudo bem. “Os espanhóis não nos entregavam… Sabiam que nós fugíamos para França”, disse José Vieira. Fizeram mais um dia inteiro de viagem e chegaram a Hendaia “onde encontrámos polícia na fronteira e eu declarei que iria a Paris”, contou José Vieira, explicando que foi com um papel, atestado pela polícia de Hendaia, que conseguiu obter o certificado de permanência em França. “Quando lhe dei o dinheiro (os cinco mil escudos) disse-lhe que teria de me deixar em Paris, junto ao meu irmão”, disse José Vieira sobre a senhora que o transportou até Paris. Esta informou que não sabia onde o seu irmão estaria e ele logo lhe apresentou a morada: no Hotel L’Union na zona da Bastilha. E assim lá foram à aventura pela capital francesa: “eu ia olhando para as placas, dando-lhe indicações e foi assim que demos com o hotel onde o meu irmão estava hospedado”, contou. Era um hotel com quartos a preços baratos para a bolsa dos trabalhadores imigrantes. Encontrado o local, o problema foi que Afonso Vieira não estava. Tinha ido trabalhar para fora de Paris. José ficou no hotel, aguardando pelo irmão, e conta que foi naquele local que partilhou, com outro português que lá estava, ovos estrelados e batatas fritas confeccionados num fogão de campismo. Ainda hoje, 50 anos passados, guarda o sabor dos mesmos. “Nunca mais comi ovos tão bons como naquele dia!”, disse referindo-se ao facto de ter passado alguma fome durante a viagem. Aquela terá sido a primeira refeição decente depois daqueles dias a atravessar fronteiras. Pouco depois encontraria o seu irmão e foi com ele trabalhar para a região da Alsácia, na fronteira com a Alemanha e com a Suíça e que ficava a 500 quilómetros de Paris. Não guarda grandes saudades do primeiro emprego que arranjou na cidade de San Luís. Era numa firma de montagem de persianas e de portas de garagem. “Só que não era nada fácil trabalhar com temperaturas negativas…Até custava a pegar numa chave de fendas”, contou, dizendo que ali permaneceu muito pouco tempo até que abriram vagas para entrar na Sandoz, uma empresa de produtos químicos que ficava perto da cidade suíça de Basileia. “Trabalhei lá ao longo de 12 anos e meio em manutenção de máquinas de fazer corantes para a indústria têxtil e ainda outras para a produção de medicamentos”, explicou o emigrante. Diariamente regulava as máquinas, sobretudo as de produção de corantes, algo que aprendeu na própria empresa, uma multinacional que marca presença em vários regiões do mundo. A fábrica, que recebia gente de várias nacionalidades, tinha uma escola de alfabetização para os imigrantes onde se aprendia a ler e a escrever francês. José Vieira não só aprendeu a expressar-se correctamente no idioma gaulês como, no contacto com os colegas de outras nacionalidades, aprendeu castelhano, italiano e um pouco de alemão. “Trabalhávamos por turnos: havia o de manhã, o da tarde e o da noite”, contou José Vieira, explicando ainda que a tratar da maquinaria estava uma equipa de cinco a seis pessoas de várias nacionalidades. Além do obidense, estavam também um alemão, um italiano e dois espanhóis. José Vieira vivia a dez minutos de carro do emprego e conta que se comia na cantina da firma a um preço razoável. Entre funcionários constatava-se bom ambiente pois havia convívios aos fins-de-semana, altura em que o obidense aproveitava para melhorar a aprendizagem dos outros idiomas. Na multinacional Sandoz trabalhavam mais alguns portugueses, oriundos de Pombal, de Santarém, de Braga e do Algarve. A maioria destes tinha ido para França para fugir à guerra. “Outros, de outras nacionalidades, faziam-no pela questão monetária”, disse José Vieira. Na multinacional laborava gente de 20 nacionalidades diferentes.
Num convívio com os colegas da Sandoz. José Vieira é o segundo, a contar da direita.
Divertir-se nos países vizinhos
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“Houve muita gente que passou mal na emigração, mas não foi o meu caso”, referiu José Vieira que ainda hoje mantém alguns amigos de quando trabalhava na Sandoz. “Eu não fui para França para procurar vida melhor, eu simplesmente fugi à guerra”, acrescentou. Como não podia vir para Portugal porque era considerado refractário, logo no primeiro ano de férias foi a Itália, tendo passado pelo Gotardo, uma montanha muito conhecida, situada à altitude de 2106 metros e que liga o cantão suíço alemão ao cantão suíço italiano. Ao fim de dois anos a viver em França, José Vieira tirou a carta de condução e comprou um carro que lhe permitiu viajar e conhecer os países vizinhos. Luxemburgo, Itália e Suíça eram destinos habituais, sobretudo ao fim de semana. “Estávamos na fronteira com a Suíça e com a Alemanha e era, por exemplo, neste último país que ia às danceterias e ao cinema”, contou José Vieira que gostava de frequentar também os bailes para a malta jovem que se realizavam no final de semana. O português tinha nesta altura 21 anos, era solteiro e bom rapaz, e percorria com os amigos as festinhas nas aldeias vizinhas. “Até íamos atrás dos conjuntos como agora se vai atrás do Tony Carreira”, disse. Foi num cinema em França que haveria de conhecer a sua futura mulher, que na altura trabalhava numa loja de roupa. Era costureira e já tinha trabalhado numa fábrica de confecção na Suíça. “Vivemos juntos durante 10 anos e depois casámo-nos em 1982”, disse o emigrante que é também pai de duas filhas.
Dupla nacionalidade
Cinco anos depois de ter chegado a França, José Vieira adquiriu a nacionalidade francesa e possui, por isso, cartão de eleitor em França. Pode, assim votar hoje nas eleições de Portugal e de França. Depois de ter adquirido o passaporte francês, o passo seguinte foi ir ao consulado português e “pagar a tropa”, isto é, regularizar a sua situação perante as autoridades militares portuguesas para deixar de ser considerado refractário. A seguir à Revolução de Abril, o obidense passou a vir todos os anos a Portugal, nas férias do Verão e no Natal. Antes de 1974, eram os seus familiares que iam a França para poderem matar saudades. Quando completou 32 anos, José Vieira decidiu que estava na hora de voltar à sua terra. Custaram-lhe muito os anos sem poder vir a casa pois, se o apanhassem, “embarcavam-me para a guerra colonial”. É que, logo a seguir a ter partido a salto, vieram bater à porta à sua procura. Os seus familiares informaram a GNR “que eu andava no mar”. Ninguém abriu a boca para contar que José Vieira tinha partido para França. Regressado a Portugal, José Vieira reinventou-se profissionalmente. Os primeiros seis meses dedicou-os à agricultura e depois “vi que não dava”. Passou então a dedicar-se à venda ambulante de peixe congelado e bacalhau. Passado algum tempo dedicou-se em exclusivo à venda do bacalhau. Comercializou, a retalho, na Praça do Peixe antiga (Praça 5 de Outubro) e também na praça nova, no mercado fechado. Durante 30 anos vendeu toneladas de bacalhau, sete dias por semana: aos sábados em Peniche, ao domingo na Benedita, depois mais tarde no Mercado de Santana e, uma vez por mês, em Almeirim.
“Sempre amealhei e nunca estraguei”
José Vieira vivia de forma confortável no seu apartamento “onde conseguia ver a Alemanha e a Suíça”. Conta que ao longo da sua vida nunca passou dificuldades financeiras. “Mesmo quando andava no mar todo o meu salário ia para o banco”, disse o obidense, que tinha sempre uns negócios paralelos que se propiciavam a quem andava no mar: vendeu chapéus-de-chuva com mola que ainda não existiam em Portugal e relógios de marca que adquiria na África do Sul. “Desde miúdo sempre amealhei e nunca estraguei”, contou o emigrante, acrescentando que ao longo da sua vida de emigrante teve “bons carros e morei em casas decentes”. José Vieira diz que aprendeu muito profissionalmente em França, assim como sobre a forma de se relacionar com as pessoas de várias nacionalidades. “Se eu não tivesse emigrado não saberia mais do que apertar um parafuso”, comentou o obidense que hoje faz um pouco de tudo na sua casa, desde electricidade até um pouco de mecânica. Além de ter comprado e depois vendido casa enquanto emigrante, também adquiriu ao seu irmão, quando regressou às Caldas, a sua parte na quinta dos pais. Afonso Vieira entretanto faleceu, vítima de doença prolongada. Hoje é na quintinha de seus pais que vive, com a sua mulher, desde que regressou de França. Fez também aquisições imobiliárias nas Caldas – apartamentos e lojas – e hoje vive dos rendimentos e das reformas de França e de Portugal de 43 anos de trabalho. As suas duas filhas também moram nas Caldas da Rainha. A primogénita é engenheira de Biotecnologia e a segunda especializou-se em Recursos Humanos e Legislação de Trabalho. José Vieira tem por agora duas netas e um neto. As duas têm oito anos e ele tem seis.
José Vieira no dia em que fez 18 anos junto à sua mota, na quinta dos pais.
Antes e depois. José Vieira aos 20 anos e hoje, quase com 70.
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