Carlos Querido (Director Convidado)
Cruzámo-nos pela primeira vez no tribunal, no julgamento de uma médica do Hospital de Caldas da Rainha. Em defesa da sua colega e do seu Hospital (suscitava-se a questão da responsabilidade do Hospital de Lisboa onde um paciente veio a falecer), prestou um depoimento revelador dum profundo conhecimento da patologia causal e dos procedimentos ditados por imperativos deontológicos, transparecendo do seu testemunho uma impressionante imagem de credibilidade e de integridade.
Encontrámo-nos mais tarde nos múltiplos eventos culturais que assiduamente frequenta, onde, apesar da permanente discrição, a sua figura sobressai pela sobriedade, pela elegância, pela suavidade no trato, pela discreta solenidade que lhe confere distinção.
Marcámos encontro num dia chuvoso. Compareceu com dois documentos que me ofereceu, nos quais, opondo-se ao projeto de edificação de um novo Hospital, defende a ampliação/remodelação do atual, invocando o particular conhecimento que lhe advém da longa e profunda ligação à Instituição.
Na argumentação que desfia, cita o testemunho de João Bonifácio Serra, em crónica publicada na Gazeta das Caldas em 15 de fevereiro de 2008, que transcreve parcialmente num texto que apresentou num debate em junho de 2019: «Sem o Hospital das Caldas perdemos todos. Ficamos mais pobres. É um custo elevadíssimo. Por isso, no Oeste Sul todos convieram que a melhor solução seria manter e modernizar o Hospital de Torres Vedras. E no Oeste Norte vamos deixar-nos conduzir pelo curto prazo?».
Transparece neste homem inteligente, culto e afável, um inegável espírito de missão. E apesar da missão cumprida como médico e dirigente hospitalar, nunca a dará por finda, recusando alhear-se do mundo que o rodeia, particularmente no que respeita à Instituição a que dedicou grande parte da sua vida.
Para além de ter sido a sua casa durante trinta anos, vinte e quatro dos quais em funções de direção, o Hospital das Caldas continua a ser a sua causa, uma bandeira que o move no debate sobre o futuro, e não lhe falta alento nem energia para fazer ouvir a sua voz.
Fala da sua experiência de cirurgião no Montepio Rainha Dona Leonor (entre 1980 e 1988) e no Hospital das Caldas com a emoção do dever cumprido, mas todas as conversas convergem no Hospital onde se cumpriu como médico.
Nasceu em 1931 no segundo andar do n.º 23 da Praça da República e ali viveu a infância e adolescência. Frequentou o ensino primário no Colégio Lusitano, na Rua de Camões e o Ensino liceal no Colégio Ramalho Ortigão.
É com imenso orgulho que fala da sua condição de trabalhador-estudante no Instituto Português de Oncologia, onde exerceu funções de ajudante de preparador no Serviço de Anatomia Patológica enquanto frequentava o curso de medicina.
Concluída a licenciatura em 1961, permaneceu no mesmo Serviço na qualidade de estagiário, promovido a assistente em 1964.
Foi nos Hospitais Civis de Lisboa que, após sucessivos concursos de progressão, adquiriu a graduação de clínica cirúrgica.
Considera que sem o Hospital das Caldas “perdemos todos”. “Ficamos mais pobres. É um custo elevadíssimo. Por isso, no Oeste Sul todos convieram que a melhor solução seria manter e modernizar o Hospital de Torres Vedras”, sustenta o médico
Em Março de 1967 foi mobilizado para Timor, em comissão de serviço militar obrigatório, onde permaneceu dois anos na qualidade de chefe de serviço de cirurgia, após o que regressou a Caldas da Rainha.
Em 1982 foi nomeado, precedendo provas públicas, chefe de serviço da carreira médica hospitalar.
Referência incontornável na cidade, como médico e homem da cultura, aquando da sua aposentação, no ano de 1999, Mário Gonçalves foi objeto de uma impressionante homenagem formalizada em depoimentos de 55 cidadãos, médicos na sua maioria, reunidos num livro editado pelo PH – Património Histórico, com dedicatória inicial subscrita por Jorge Sampaio, à data Presidente da República.
Outras homenagens se sucederam, como a do Rotary Club, que o elegeu profissional do ano em 2008, numa cerimónia em que participou o Grupo Musical e Cultural do Centro Hospitalar.
No que respeita à escolha da especialidade médica, refere a cirurgia como “verdadeira vocação” e “verdadeiro apelo”. Transparece do seu discurso e do seu percurso de vida, o conceito tradicional de ‘chamamento’ que faz da dedicação à função social um ‘sacerdócio’, que implica entrega e renúncia.
O seu profundo conhecimento do estatuto dos Hospitais Distritais e do complexo processo jurídico que esteve na base da sua criação e instalação justificou o convite que lhe foi feito para colaborar no livro “Médicos e Sociedade – Para uma História da Medicina em Portugal no Século XX”, ao lado de grandes vultos da medicina, com destaque para o célebre texto em que João Lobo Antunes faz a intransigente defesa no nosso Nobel, Egas Moniz.
Como médico e diretor hospitalar, o Dr. Mário Gonçalves atingiu um elevado nível de prestígio e de reconhecimento social, manifestado na calorosa interpelação de quem entra no estabelecimento onde conversamos. Todos conhecem o médico. Alguns terão sido seus pacientes. Há sempre uma palavra de apreço.
Para além do clínico ilustre, há o homem da cultura, com uma vasta história de empenhamento e de intervenção cívica, em que se destacam a Casa da Cultura, a direcção do Grupo dos Amigos do Museu da Cerâmica, a fundação e direcção da Liga dos Amigos do Museu de José Malhoa e do Conselho da Cidade- Associação para a Cidadania, as funções de secretário da direção do Centro do Património da Estremadura (CEPAE), a cooperação sem funções executivas com o Centro de Educação Especial Rainha D. Leonor (CEERDL).
Leitor da Gazeta das Caldas desde sempre, em cujas páginas foi presença regular, Mário Gonçalves elogia a constante atenção deste jornal a todas as questões que envolvem o Hospital, referindo as inúmeras vezes em que foi questionado e a sua permanente disponibilidade para prestar todos os esclarecimentos solicitados.
Uma das características das instituições reside na perenidade que transcende os indivíduos que as servem, mesmo daqueles que profundamente a marcam. Uma outra é a memória, cimento de unidade e de coesão, elo de ligação entre gerações. A força duma Instituição também se alicerça no registo do percurso exemplar daqueles que, servindo-a, a engrandeceram.
Nesta edição especial de celebração dos seus 95 anos, a Gazeta das Caldas orgulha-se de inscrever nas suas páginas a breve síntese que antecede do percurso de vida dum cidadão que na sua atividade profissional e no seu envolvimento cívico sempre procurou a excelência, dignificando a cidade e as instituições que serviu.