A luta popular contra a construção de uma central nuclear em Ferrel em 1976 esteve na génese do ambientalismo em Portugal, tendo sido o primeiro conflito ambiental da jovem democracia. “Ferrel é o berço do ambientalismo em Portugal”, afirmou a investigadora Inês Grandela Lourenço, num estudo que apresentou no dia 18 de Agosto na biblioteca Raul Brandão (Ferrel). Cerca de 30 pessoas marcaram presença na sessão, onde também foi apresentada a Carta Arqueológica de Ferrel, desenvolvida pela Associação Patrimonium.
Numa altura em que ainda não se sabe se Almaraz terá ou não licença para continuar a laborar além de 2020, em Ferrel recordou-se a luta contra a construção da primeira central nuclear em Portugal, em 1976. A luta antinuclear de Ferrel esteve na génese do movimento ecologista português e marcou a vila na História contemporânea. Este foi o primeiro conflito ambiental da jovem democracia portuguesa, que havia sido instaurada com o 25 de Abril dois anos antes.
À época, a Companhia Portuguesa de Electricidade estava a fazer trabalhos nos terrenos baldios conhecidos como Moinho Velho, onde já tinha instalado uma antena meteorológica. A população, temendo que fosse o início da construção, juntou-se e uniu-se contra um inimigo comum.
Na noite de 14 de Março de 1976 realizou-se uma reunião para planear a acção que viria a acontecer no dia seguinte. Pelas 8h00 do dia 15 de Março a D. Crealmina, uma habitante de Ferrel que já faleceu, tocou o sino a rebate. Acabou por partir o badalo, mas isso não a impediu de continuar a tocar. Agarrou no badalo partido e bateu com ele no próprio sino.
Pouco depois, no largo da igreja apareceu gente de vários pontos, uns a pé, outros de bicicleta, alguns de motorizada, camioneta ou tractor e outros montados no burro. Juntaram-se cerca de 700 pessoas e marcharam em direcção ao local no alto do Moinho Velho, com foices, ancinhos e enxadas, cartazes contra o nuclear e protestos sonoros.
No local partiram a vedação e os escassos equipamentos já instalados foram retirados. Dois anos mais tarde, em 1978, deu-se a segunda manifestação, com o local já em obras e guardado pela GNR.
A estação meteorológica estava protegida e ficou intacta, mas os estaleiros das obras foram desmantelados e a ideia do nuclear abandonada definitivamente.
Nuclear é uma herança do Estado Novo
Esta ideia do nuclear é “uma herança do Estado Novo que teve continuidade nos governos provisórios e no primeiro governo constitucional”, contou Inês Grandela Lourenço.
Com a influência de alguns mais esclarecidos, quer pelos estudos, quer pelas vivências no estrangeiro, organizou-se uma marcha e uma manifestação, à qual se seguiram várias campanhas de luta. Esse foi o momento em que o debate “deixou de estar reservado a técnicos, cientistas e gabinetes e passou para a praça pública”.
Uma das grandes particularidades deste acontecimento é o facto de juntar motivações materialistas (a sustentabilidade da pesca e agricultura) e pós-materialistas (a preocupação com o ambiente) num só protesto.
A mediatização da causa foi também um dos motivos para que o ambiente surgisse pela primeira vez como um problema social. “Os meios de comunicação locais e regionais, dos quais se destacam o Baluarte, o Arado, A Voz do Mar e a Gazeta das Caldas, desempenharam um papel fundamental no esclarecimento, contribuindo para o debate”, salientou a investigadora.
Outra das particularidades desta manifestação foi o fincar de pé da população ante um monstro que não conheciam, mas que temiam.
Note-se que nessa época ainda não se tinha registado nenhum dos grandes acidentes nucleares. O primeiro viria a acontecer logo no ano a seguir à segunda manifestação, em Three Mile Island (1979), seguindo-se Chernobyl em 1986. Mais recentemente houve o caso de Fukushima.
Apesar de, à época, não existirem estes casos para exemplificar, havia já uma consciência de que o nuclear era uma aposta com muito mais a perder que a ganhar, pelo menos para as pessoas.
A Gazeta das Caldas na luta
A Gazeta das Caldas foi, à época, um dos grandes aliados da luta antinuclear, organizando sessões e lançando o suplemento Pela Vida. O jornal, fundado em 1925 nas Caldas, era o representante em Portugal do símbolo internacional “Sol Sorridente” – umas chapinhas metálicas e autocolantes com um Sol a sorrir que dizia “Nuclear? Não Obrigado” em várias línguas.
Foi também nas Caldas e através da Gazeta das Caldas que se realizou em 1978 o Festival Pela Vida Contra o Nuclear, que reuniu vários músicos na Casa da Cultura. Entre eles estava, por exemplo, Fausto (autor do hino ecológico “Rosalinda”), mas também Zeca Afonso, Vitorino e Sérgio Godinho. Aí a questão “ganhou âmbito nacional” e até internacional, para o qual contribuiu o facto de o II Encontro Internacional da Juventude se ter realizado em Ferrel.
Presente na sessão esteve o ambientalista António Eloy, que é o presidente do Movimento Ibérico Antinuclear. “Lutar hoje contra Almaraz é, tal como no caso de Ferrel, lutar pela vida”, ainda que “com novos desafios e novas lutas”, afirmou.
António Eloy fez notar que perto do local onde seria implementada a central existe uma falha sísmica que poderia ter originado um acidente nuclear semelhante ao de Fukushima e salientou a importância de manter os elementos simbólicos existentes, como o painel de azulejos.
O ambientalista sugeriu ainda que a energia geotérmica pode ser aproveitada tanto nas Caldas como em Peniche e divulgou que vai lançar, em Outubro no Folio, um novo livro intitulado “Almaraz e outras coisas más”. A obra conta com a colaboração de 32 pessoas ligadas ao ambiente. O director da Gazeta das Caldas, José Luís de Almeida e Silva, que também esteve na sessão, é o autor de um capítulo sobre Ferrel.
Transmitir a memória da luta popular pelo ambiente
Além da apresentação do estudo, foi inaugurada uma exposição com trabalhos dos alunos da escola de Ferrel sobre este acontecimento.
À Gazeta das Caldas, Inês Grandela Lourenço salientou a importância de transmitir a herança cultural local aos mais novos, articulando a educação patrimonial e a educação ambiental. Além disso, dar a conhecer às crianças esta história de mobilização social, “é também uma forma de os incitar a defender os seus direitos”.
Por fim, com essa experiência, pretende-se que os mais novos criem uma ligação com os símbolos que estão pela vila, como a placa à entrada do recinto da igreja que assinala o local onde a população se juntou.
O tema de sessão despertou o interesse do penichense Manuel Martins, que esteve na plateia. No final da sessão disse ao nosso jornal que “é muito importante passar esta memória aos mais novos, relembrar o que houve de mau e não voltar a cair no mesmo erro”.
Por outro lado, elogiou o trabalho da associação Patrimonium na criação de uma carta arqueológica [ver caixa].
Do nuclear à energia das ondas
Hoje, bem perto do local do antigo moinho, na Almagreira, há um sistema para criar energia através das ondas. É uma base de metal que está no fundo do mar, a 900 metros da costa e a 15 metros de profundidade. Nessa base estão grandes pás que são movidas através da força das correntes marítimas, gerando energia cinética, que é depois transformada em energia eléctrica. Chama-se Waveroller, está a ser desenvolvido por uma empresa finlandesa e ainda está em fase experimental, mas já mostrou que é possível produzir energia das ondas em escala.
O projecto começou em 2006 e um ano depois foi testado pela primeira vez. Entre 2009 e 2014 decorreu a segunda fase, que permitiu gerar energia para 120 habitações e 380 pessoas. Desde 2015 está a decorrer a terceira fase, onde se pretende abastecer 5500 casas e 16500 habitantes. I.V.
Uma carta arqueológica para Ferrel e Peniche
A associação Patrimonium apresentou a Carta Arqueológica de Ferrel. Esta foi a primeira freguesia onde foi feito o levantamento dos sítios arqueológicos do concelho de Peniche, mas o objectivo é fazer o mesmo em todo o concelho.
Luís Rendeiro, da Associação Patrimonium, disse que “há indícios da ocupação humana em Ferrel no Paleolítico Inferior”, mais precisamente, há 700 ou 800 mil anos.
O investigador recordou que não se sabe a data de fundação de Ferrel e alertou para o estacionamento junto à igreja de N. Sra. Da Guia onde “há carros a estacionar todos os dias em cima de achados arqueológicos”.
Um dos mais relevantes sítios de Ferrel é o Fortim do Baleal, que é “uma das poucas construções feitas durante a ocupação francesa que foi acabada”.
Os trabalhos começaram por Ferrel porque era o sítio com menos achados identificados. Todos os achados deverão agora ser identificados, estudados, valorizados e incluídos em roteiros turísticos.
Neste caso não houve apoio municipal que financiasse o projecto, daí que a associação o esteja a fazer de forma faseada, de freguesia em freguesia. A falta de dinheiro também impede uma maior fluidez nos trabalhos.
Luís Rendeiro realçou ainda que os técnicos da associação fazem um investimento pessoal, além do tempo, para conseguir fazer este trabalho.
Pedro Barata, secretário da Junta e candidato à presidência, explicou que dos 53 pedidos de apoio que fizeram, conseguiram que sete empresários ajudassem não monetariamente, mas em géneros (alimentação e dormida para os investigadores) e disse que “o património não é menos importante que as praias quando se fala de turismo”.
