Manuel Pinto – o aventureiro dos sete mares

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Emigrante nos mares e em terra, Manuel Pinto viveu em França, Bélgica, Suécia e Inglaterra.
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Manuel Pinto ainda não tinha 16 anos quando partiu a pé e à boleia para Paris. Levava 500 escudos (2,50 euros hoje) e um mapa. Tentou passar a fronteira no Minho, em Melgaço, mas foi recambiado para Lisboa por um guarda fiscal e acabaria por entrar em Espanha por Badajoz. Chegado a França, conseguiu logo um contrato de trabalho.
Mas esta não era a primeira aventura de Manuel Pinto, aventureiro dos sete-mares, que já antes andara embarcado na Gronelândia, no Japão e nos EUA. Mais tarde trabalhou num cruzeiro na Suécia e atravessou o Atlântico num catamarã de 6,2 metros entre Lisboa e a Guiana Francesa (Caraíbas).

Manuel Pinto tem 70 anos. Nasceu em Óbidos em 1948. “Sou toupeiro puro, nasci numa pequena casa junto ao quintal da antiga escola, onde se jogava ao berlinde. Era uma casa dividida por duas famílias, que eram os reibaques, o nome de um peixe do Rio Arnóia. Já eu era o filho de Santo Antão, porque o meu pai olhava pela igreja e arejava-a e então vivia na casa anexa”.
Fez a quarta classe em Óbidos e aos 11 anos “teve de ir trabalhar para os campos a dar serventia aos pulverizadores, mas o caneco com sulfato era maior que eu”.
Com 11 anos andou na escola de marinharia na fragata D. Fernando II e Glória, que estava ancorada em Lisboa. Teve de abandonar a escola e seguiram-se duas viagens à pesca do bacalhau, na Terra Nova (Gronelândia). Naquela altura ainda em barco à vela.
Manuel Pinto recorda as partidas, com a missa ao bacalhoeiro, que reunia os barcos em frente ao Mosteiro dos Jerónimos. Lembra-se bem dos navios com 20 a 30 pessoas onde estavam amontoados os dóris (os pequenos barcos que levavam dois pescadores cada um, para pescarem o bacalhau à linha).
“Quando estava nevoeiro, não se via nada e só se ouvia buzinas e sinos para assinalar a presença dos barcos maiores. No primeiro barco que se encontrava, subia-se com o pescado e depois pelo rádio os capitães comunicavam: tenho aqui três dos teus, para dar conta de que não faltava ninguém. Quando o nevoeiro passava voltávamos ao nosso barco e à pesca”.
Enchiam os dóris e quando estes pequenos barcos ficavam pesados descarregavam o bacalhau pescado no barco mãe e traziam isco. Continuavam até encher o porão. A bordo estavam outros trabalhadores a escalar, a salgar e a arrumar o peixe.
“Com o porão cheio, iniciava-se uma corrida para ver qual o barco que chegava primeiro a Aveiro, onde se fazia a seca”.
Depois de praticamente dois anos embarcado, ainda com 13 anos, voltou para as Caldas. Foi trabalhar na substituição das canalizações da água, que eram em ferro forjado, por outras que hoje seriam ilegais, feitas em fibrocimento.
Corria a década de 60 do século passado e um dia “o patrão da obra nas Caldas, que estava a acabar, andava-me a desafiar para ir fazer uma obra parecida no Bairro Social da Sacor, em Sacavém, e eu pensei ‘não é tarde nem é cedo’”. Assim foi. Esteve lá, fez a obra e voltou para as suas origens, onde não encontrou trabalho. “O que ando aqui a fazer?, pensei. Vou para a França!”.
Faltavam dois meses para os 16 anos, que fazia em Julho de 1964, quando partiu à boleia, com 500 escudos (2,50 euros) no bolso e um mapa das estradas de Portugal e Espanha.
“Na altura pagava-se aos passadores, mas eu fui sozinho”. Seguiu em direcção ao Norte e tentou passar a fronteira perto de Chaves. Quando lá chegou procurou uma forma para saltar para terra espanhola, quando lhe tocaram no ombro e ouviu uma voz: “O que é que andas aqui a fazer?”. Era um guarda-fiscal. “Sou turista”, respondeu. Mas a resposta não convenceu o guarda, que mandou parar um camião e, ao saber que seguia para Lisboa, mandou-o levar Manuel consigo. “Só pensava: Bolas! Levou-me três dias para chegar aqui!”.
Chegado a Lisboa, seguiu de comboio para Beja e meteu-se à boleia. Um norte-americano que por ali passava de carro parou e deu-lhe boleia. Manuel disse-lhe que queria ir para a fronteira, mas pediu-lhe para parar a meio quilómetro antes de lá chegar. “Já era final de tarde e íamos distraídos na conversa, quando olho para a frente estávamos a 100 ou 200 metros da fronteira de Elvas e disse-lhe para parar, voltei para trás até perder as luzes de vista e meti-me a atalhar pelos campos fora. Quando achei que já tinha andado o suficiente, cortei em direcção à fronteira. Cheguei a um riacho e pensei ‘não vou molhar os pés’. Sentei-me, tirei os sapatos e quando estava a arregaçar as calças, ouço uma voz atrás de mim: “o que é tu estás aí a fazer?” E eu pensei: ‘olha estou lixado outra vez’. Olhei para trás e era outro português com uma grande trouxa às costas, um contrabandista. Eu olhei para ele e pensei: ‘isto não é um guarda-fiscal’ e perguntei se ainda estávamos longe de Espanha ao que ele respondeu que, onde eu estava sentado, era Portugal e na outra margem já era Espanha”.
Manuel Pinto atravessou o riacho e caminhou em direcção à estrada. A ideia era comprar um bilhete de comboio para ir o mais longe que pudesse e afastar-se da fronteira. O que não sabia era que na estação estavam dois guardas civis. “Eles não estavam a controlar bilhetes de identidade nem nada, mas vi-os e dei meia-volta, meti-me num táxi com o resto do dinheiro que tinha e fiz aí cem quilómetros até Mérida”. A partir daí, não havia mais dinheiro “e fui indo à pedincha para comer e à boleia”. Os camionistas, que iam carregados com frutas e legumes para os mercados das grandes cidades davam-lhe boleia e às vezes deixavam-no dormir no camião. Noutras noites dormia debaixo de uma árvore seca, mais ou menos escondido.

UMA SURPRESA EM FRANÇA

No último troço até à fronteira entre Espanha e França, Irun/Hendaya, foi de comboio. A ideia era chegar perto da linha que separa os dois países para estudar a melhor forma de passar, novamente a salto. Desconhecia que o comboio já parava em plena fronteira e que à saída estava um guarda a controlar os passaportes.
“E foi assim que cheguei à França no final de Maio com um passaporte de coelho, ou seja, sem passaporte”.
Mas a sorte foi, como diz o ditado, amiga da audácia. Embora não soubesse, a França havia aberto as fronteiras a emigrantes porque precisava de mão-de-obra. Foi colocado numa sala sem lhe dizerem nada. Ao fim do dia deram-lhe um saco com comida e água e trouxeram-lhe um monte de papelada que lhe iria mudar a vida: um contrato de trabalho de seis meses numa fábrica e os bilhetes de comboio para viajar até ao Norte de França.
Assim, chegou a Charleville-Mézières, perto da fronteira com a Bélgica. Tinha contrato de seis meses e tudo pago: avanço de ordenado e um bairro residencial onde os trabalhadores podiam dormir.
Passou a trabalhar numa fundição de ferro forjado, mas nos acabamentos, a limar as rebarbas com uma pedra de esmeril.
Mas naquela cidade não havia nenhum português e ao fim de quatro meses rescindiu o contrato e foi cumprir o plano inicial de ir ter com uma família conhecida que tinha em Paris. Na capital trabalhou numa fábrica que fazia cartolinas. Tinha direito a alojamento e nas folgas ajudava num café, onde conheceu Mauricette, uma francesa, com quem casou.
Entretanto deixou o trabalho na fábrica, que era por turnos, e começou a entregar encomendas. “Nessa altura eu conhecia melhor Paris do que conheço as Caldas”.
Mas acabou por se aborrecer com a falta de organização da empresa e foi trabalhar com máquinas automáticas de bebidas quentes, já com moinho de café. Fazia a reposição, a limpeza e recolha do dinheiro. “Mas o café era muito mau, era água suja, então ajustei os moinhos daquelas máquinas para tirarem biquinhas à portuguesa”, contou.
Trabalhava há dois meses na empresa quando um dia o patrão o chamou ao escritório. “O que é que terei feito desta vez?” questionou-se. Aquelas máquinas, que vendiam 30 ou 40 cafés por dia, tinham começado a vender mais do dobro e ele deixaria de limpar e repor e passava a ajustar todas as cerca de 500 máquinas que o patrão tinha em Paris. “Tinha a chave mestra de todas as máquinas, trabalhava com os meus horários e passava o tempo a rodar, porque quando acabava de afinar a última, a primeira já precisava de manutenção”.
Esteve lá um ano e meio e seguiu para Nantes com a esposa, que queria estar perto da família. O casamento não correu bem e Manuel acabou por regressar a Portugal para tirar a cédula de marinheiro.
Seguiu-se uma viagem de carro a Antuérpia (Bélgica) para procurar um navio para embarcar. Não conseguiu, mas encontrou trabalho numa pensão como cozinheiro, com a promessa de que o patrão lhe arranjaria uma cunha quando houvesse oportunidade de embarcar.

PARA SANTANDER COM UM CONTRABANDISTA

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Essa oportunidade chegou. E foi uma nova aventura. Teria que dar boleia no seu carro a um contrabandista que tinha chegado à pensão. Levá-lo-ia até ao porto de Santander e, quando chegassem, o contrabandista falaria com o dono do barco onde trabalhava para que este embarcasse Manuel Pinto.
E é em Santander que é recrutado para ir trabalhar num navio de uma companhia alemã que fazia viagens entre a Turquia e o Egipto. Carregavam trigo no Egipto e descarregavam na Turquia. “Mas que eu saiba o Egipto nunca foi um país produtor de trigo para poder exportar. Aquilo eram as toneladas de trigo que eram doadas nas campanhas contra a fome em África e que o Egipto decidiu vender à Turquia, que por sua vez, o voltava a vender ao Egipto. Era sempre o mesmo trigo, que era descarregado de um barco e carregado no outro”.
Entre gargalhadas conta um episódio em Alexandria, em que no cais estavam centenas de sacos de trigo. “Caiu uma grande chuvada e o cais parecia um relvado de futebol porque, com a água e o calor, o trigo germinou todo”, recorda.
Além disso, nessa rota compravam rádio-cassetes (um produto típico dos anos 70) no Egipto e vendiam-nos mais caros na Turquia. No trajecto inverso, transportavam calças de ganga. Quando o navio chegava à Turquia, a alfândega não o deixava ir à doca. Ia uma lancha até ao barco e enquanto dois agentes iam conferir os passaportes na cabine do capitão, “os outros distribuíam-se pelo barco e metiam a cabeça no interior dos quartos e diziam: cigarrette? Whisky? Business? Compravam tudo o que era contrabando! Quando o barco estava no cais vinham, a meio da noite, com dólares, levar o que já tinham comprado”.

NOVAMENTE NO MAR

Seguiu-se nova aventura, agora num navio de prospecção de gás e petróleo em Cádiz. Depois viajou da Holanda ao Japão num navio-frigorífico com 350 toneladas de rabos de lagosta, em que apanhou o resto de um tufão com ondas terríveis.
A vida nos mares era assim, ora trabalhava seis meses num navio, ora um ano noutro. O trabalho seguinte foi a bordo de um petroleiro nos Estados Unidos da América, entre Savanah e Texas. “Era tão comprido que tínhamos bicicleta para ir da proa à traseira!”.
Daí foi para um pequeno navio de cruzeiro na Suécia. Saía de Estocolmo, passava pela costa ao largo da Rússia, Polónia, Alemanha de Leste e Dinamarca, em viagens de uma semana.
Mais tarde, o mesmo navio começou a fazer as chamadas “cruise booze”, pequenos cruzeiros de 24 horas que os nórdicos aproveitavam para comprar álcool e se embebedarem. Saíam de Estocolmo até à ilha de Mariam (Finlândia) e voltavam.
A certa altura, Manuel Pinto estava em terra, numa praça de Estocolmo e meteu conversa, em francês, com uma sueca, levando-a a ver o barco. No dia seguinte resolveram casar. Mas não seria Angelika a mulher da vida dele porque as coisas voltaram a não correr bem e decidiu regressar a Portugal.
Estávamos no início dos anos 80. Um amigo de Manuel, que importava carros em segunda mão da Alemanha, precisava de um motorista, que passou a ser o novo trabalho deste toupeiro.

O TERCEIRO CASAMENTO

Numa das viagens de autocarro para a Alemanha conheceu aquela que, reconhece, acabaria por ser a mulher da sua vida – Maria Teodósio, que ia de Lisboa visitar as filhas a Londres. Viajaram juntos no mesmo autocarro até Paris, mas só se falaram à chegada. “Eu ia sempre na conversa com o choffeur e ela pensou que eu era da tripulação”. Em Paris ela pediu-lhe informações para apanhar o metro e ele disse que a levava até lá. Foram conversando e gostaram um do outro. Passaram a noite juntos e no dia seguinte ele deixou-a no autocarro para Londres e disse-lhe que já não iria para Alemanha e que esperaria por ela naquele mesmo sítio. Tinha 35 anos.
“Foi a mulher da minha vida, honesta, trabalhadora, poupadora, era perfeita! Já não voltei à Alemanha e fiquei à espera dela. Voltámos para Portugal”.
Maria Teodósia tinha um apartamento em Porto Salvo e era enfermeira no Hospital do Desterro. Mas como tinha saudades das filhas, convence Manuel Pinto a irem para Inglaterra.
“Eu sempre gostei do mar, queria comprar um barco à vela para vivermos e viajarmos. Comprei uma Carocha, uma Volkswagen antiga, que faz uma cama de casal que é uma maravilha, desfazendo dois parafusos”.
Foram por terra rumo ao Norte, parando em todos os portos, mas não encontraram um barco que lhes agradasse.
Voltaram a Lisboa para tomar banho e carregar roupa lavada e seguiram pela costa até ao Algarve. Continuaram sem encontrar.
Venderam o apartamento e rumaram para Espanha e, depois França, sempre na Carocha. Em Saint Nazaire compraram um veleiro de 6,8 metros e navegaram até Brighton (Inglaterra).
Foi em Terras de Sua Majestade que casaram.
Viveram no barco, atracado em Brighton durante um ano e meio. Maria Teodósia adorava viver dentro do barco, mas na marina. Então decidiram trazer o barco para Lisboa para o vender. Ficaram na Doca de Santo Amaro, onde um rapaz lhes emprestava uma canoa a motor e Manuel Pinho ia pescar robalo debaixo da Ponte 25 de Abril. “Ganhei muito dinheiro à conta do peixe”, conta.
“A última viagem que fiz por mar foi de Lisboa à Guiana Francesa num catamarã de 6,20 metros, de um francês que não era marinheiro e que teve dificuldades em chegar a Lisboa, então decidiu contratar-me. Demorámos três dias até à Madeira. Saímos em Dezembro, encasacados de Lisboa. Na Madeira já estávamos de calções e t-shirt e três semanas depois, em que só vimos passar dois barcos, estávamos na Guiana só de calções com grande calor. Passámos o Natal e o ano novo no mar. Fiz a mesma viagem que o Pedro Álvares Cabral, mas ele numa nau com 45 metros e eu num catamarã de 6,20 metros”.
Depois venderam mesmo o barco e foram viver definitivamente para Brighton, mas numa casa.
Desde Junho deste ano, este aventureiro dos sete-mares, agora com 70 anos e viúvo, vive numa das residências do Montepio.

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