Vítor Manuel da Silva Sebastião, empresário

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| Margarida Araújo
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Carlos Querido (Director-Convidado)

Marcámos encontro numa esplanada. Chegou discreto e pontual, com o habitual sorriso escondido por detrás da máscara branca que só retirou para a fotografia. Na impossibilidade do abraço, acotovelámo-nos. Somos amigos desde há quase 50 anos. A conversa fluiu ao ritmo da vivacidade do entrevistado. Havia surpresas. Há sempre surpresas na narrativa de vida deste caldense, nascido no Beco das Flores no ano de 1933, que diariamente percorre as ruas da sua infância, e que guarda na memória histórias e personagens da cidade e do mundo.

Com a Gazeta das Caldas em Stanleyville

Em 1955, Vítor Sebastião voou para Stanleyville, cidade da República Democrática do Congo [na altura Congo Belga], hoje denominada Kisangani, a fim de gerir um negócio familiar.
O pai, Artur Sebastião, comerciante estabelecido na Praça da Fruta, ofereceu-lhe a assinatura da Gazeta, a mesma que ainda hoje se mantém, volvidos 65 anos, e foi essa a única janela sobre o mundo, em cujas páginas este caldense espreitava a vida da sua cidade: «O meu pai enviava-me a Gazeta todas as semanas. Era o único jornal português que eu lia. Era a única informação que recebia do país. Chegava uma semana depois, mas recebia-a com entusiasmo, como se recebesse uma carta da família».

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Patrice Émery Lumumba

Patrice Lumumba, líder anti colonial, fundador do Movimento Nacional Congolês (MNC), celebrizado pela luta contra a dominação colonial belga no Congo, era funcionário dos correios em Stanleyville, com relações de amizade com o nosso entrevistado e a sua família.
Aquando da nomeação de Patrice Lumumba para primeiro-ministro do seu país, no ano de 1960, Vítor Sebastião presenciou uma conversa entre o seu tio e o líder africano de quem era amigo: «Dizia-lhe o meu tio: tem cuidado com aquela gente, Patrice, os tipos são capazes de te matar. E mataram-no mesmo, pouco depois».
Patrice Lumumba exerceu as funções de primeiro-ministro apenas durante 12 semanas, tendo sido derrubado por um golpe de estado liderado por Mobutu, na sequência do qual foi capturado e assassinado em janeiro de 1961.

Audrey Hepburn

Em 1958 chega a Stanleyville a equipa de filmagens de “A História de Uma Freira”, adaptação de Fred Zinnemann, do romance “The Nun’s Story” de Kathryn Hulme, inspirado na história verídica de Marie-Louise Habets.
Entre o elenco sobressaía a estrela britânica Audrey Hepburn, que antes e durante a realização das filmagens passou a viver numa missão de freiras para se adaptar ao papel que desempenhava.
Vítor Sebastião conta assim o encontro com a famosa atriz: «O estabelecimento onde trabalhava pertencia à sociedade, da qual eu era sócio, denominada J. Silva e Companhia. Importávamos bens de todo o mundo, especialmente da Europa, sobretudo de Paris. As freiras deslocavam-se com regularidade à nossa loja, quase todos os dias, estando entre elas a Audrey Hepburn, que ali chegou a comprar coisas».
E foi assim que conheceu uma estrela de cinema por quem tinha enorme admiração.

Tertúlia de Artes e Letras

Vítor Sebastião regressa ao país em 1960 e três anos depois, com 30 anos de idade, funda com um sócio e amigo a Tertúlia de Artes e Letras, sediada na Rua das Montras.
Esta iniciativa cultural, que marcou a cidade, foi objeto de um extenso e pormenorizado trabalho publicado na edição da Gazeta das Caldas de 15 de Agosto de 2003.
«Toda a gente importante nas artes e letras da época veio a Caldas aos eventos da Tertúlia», diz-nos o entrevistado, que realça entre as relações de amizade que na sua atividade de gestor cultural criou com Michel Giacometti, Luís de Sttau Monteiro e Luiz Pacheco.
Para Vítor Sebastião esta foi uma das atividades mais estimulantes que teve na sua vida de empresário. Com o sócio, dividiu o país em duas grandes zonas – a norte e a sul do Tejo, cabendo-lhe todos os contactos com a parte norte. E recorda viagens atribuladas: «Ia de comboio fazer divulgação e contactos com estabelecimentos que colaboravam connosco. Numa viagem para Bragança o comboio avariou e tivemos que esperar toda a noite até ao amanhecer. O maquinista levava comida, bem como os passageiros, juntámos o que havia e fizemos um belo jantar».

Luís de Sttau Monteiro e a morte de John F. Kennedy

Os acontecimentos que abalam o mundo são referências temporais que nos gravam na memória o momento em que ocorreram.
Vítor Sebastião recorda o instante em que viu na televisão a notícia do assassinato do presidente americano: «O Sttau Monteiro ia com frequência jantar lá a casa. Nessa noite, estávamos a comer e eu tinha uma televisão ligada, daquelas a preto e branco que se usavam na altura. Foi quando vimos as imagens do assassinato do Presidente Kennedy. Recordo-me como se fosse hoje. Ficámos estupefactos a olhar para a televisão, com dificuldade em acreditar naquilo que víamos.

Compadre de Luiz Pacheco

O polémico escritor viveu em Caldas e «era visita lá de casa», conta o entrevistado, que lhe reconhece o imenso talento literário, bem como «alguma loucura»: «Ele ia com muita frequência a minha casa, e estabelecemos uma relação de amizade. De tal forma fomos amigos que ele convidou-me para ser o padrinho do filho dele que nasceu em Caldas. E eu aceitei, claro. Eu acho que tinha uma certa influência sobre ele e acalmava-o quando ele perdia a cabeça. Cheguei a ir de propósito lá a casa para intervir nas zaragatas dele com a mulher com quem vivia. Viviam ali naquele prédio que fica na rampa no Bairro João de Deus, no n.º 2 da Rua Raphael Bordallo Pinheiro, do lado direito de quem sobe, e que faz gaveto com o Beco do Quartel, que é um acesso às traseiras dos Pavilhões do Parque. Faziam muito barulho e os vizinhos chamavam-me para pôr ordem naquilo».

O Estúdio Um e Raul Solnado

No ano de 1977 Vítor Sebastião integrou uma sociedade liderada por Artur Capristano, que construiu o cinema Estúdio Um, tendo o entrevistado exercido funções de administrador. Foi nessa atividade que conheceu e se tornou amigo do célebre ator.
«Nós tínhamos um projeto para o lote de terreno ao lado do Estúdio Um. Um dia, estava eu com o Artur Capristano, e apareceu lá o Raul Solnado, que nos disse: por favor não se metam nisso; eu já tenho tudo preparado para a fundação de um hotel. Foi assim que surgiu o Hotel Malhoa, com quem tínhamos uma relação de estreita colaboração. Estive depois muitas vezes com o Raul Solnado, que vinha com frequência às Caldas e que era uma pessoa encantadora».

Cidadania e cultura

Vítor Sebastião fala com orgulho das atividades empresariais em que esteve envolvido, mas o entrevistador surpreende-lhe um especial brilho nos olhos quando se refere às associações cívicas a que esteve ligado.
E são muitas: Conjunto Cénico Caldense; Orfeão Caldense; Clube de Ténis das Caldas; Liga dos Amigos do Museu de José Malhoa; Grupo de Amigos do Museu da Cerâmica; e Conselho da Cidade.

A entrevista termina e Vítor Sebastião continua a desfiar memórias pessoais e da cidade: a amizade com o seu vizinho António Maldonado Freitas, a criação e instalação na cidade de uma fábrica de antenas com o nome “Soleizer”. Histórias para outra oportunidade. Depois segue o seu percurso habitual pelas ruas da cidade que conhece como poucos. Esta foi apenas uma breve pausa na rotina dum caldense tranquilo com tantas coisas para contar.

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