Lutas pela posse da água, barcos que lembram o tempo em que a região era navegável, profissões que mostram como se vivia nos tempos medievos, muita animação e gastronomia, marcam o 16ª edição do Mercado Medieval de Óbidos, que este ano tem um investimento de 212 mil euros.
A vila está de regresso ao passado até dia 5 de Agosto, entre quinta-feira e domingo. Nos primeiros quatro dias o evento foi visitado por cerca de 11 mil pessoas e a organização estima que o número de visitantes possa ascender aos 80 mil nos 16 dias de mercado.

Uma disputa pela posse de águas quentes e sulfurosas de uma nascente na aldeia do Mosqueiro, no termo de Óbidos, coloca frente a frente na liça os cavaleiros D. Lopo de Andrade e D. Má Rês que, acompanhados pelos respectivos homens de armas, lutam pelas “águas mágicas”. D. Francisco de França, o juiz de fora nomeado para tentar resolver aquela contenda deu início ao combate perante centenas de espectadores, muitos deles trajados à época e que aplaudiam ou apupavam os cavaleiros consoante a sua preferência.
Após a “prova do estafermo” (em que os cavaleiros têm que acertar num escudo), segue-se um combate apeado e depois outro com argolas. Ao terceiro combate apeado os ânimos exaltam-se. A aguadeira D. Inês, tomada de amores pelo escudeiro D. Henriques, entretanto machucado na contenda, decide lutar em vez dele e acaba por vencer e dar a D. Lopo de Andrade (um antigo alcaide de Óbidos) a posse daquele lençol de água.
São assim os torneios de armas, que decorrem na liça, fora da cerca do castelo, e que juntam os Cavaleiros de Ribadouro, de Barcelos, e os cavaleiros apeados da associação caldense Ilustre Cruzada.
Tiago Castro, na liça conhecido pelo cavaleiro D. Tiago, é natural da Lourinhã e preside à associação Ilustre Cruzada, que conta com oito elementos activos e tem mais seis interessados em entrar. Já é um habitué deste mercado, antes como freelancer e este ano, pela primeira vez, enquanto associação. A seu lado combate a esposa, Inês Andrade, das Caldas da Rainha, que acumula esse papel com o de aguadeira nos espectáculos. Inês começou por se dedicar à arte marcial coreana e depois passou para a esgrima histórica. A sua actuação recebe sempre fortes aplausos, ou não se assistisse na liça ao caso raro de uma mulher a lutar contra um homem.
O combate, conta a participante, acaba por ser metáfora para temas como o machismo, violência doméstica e a igualdade de género. E a mulher tem sempre vencido o combate, como se de uma lição se tratasse.
O casal destaca também a afluência de público a estes espectáculos, que decorrem três vezes por dia, durante todo o evento. Contudo, Tiago Castro destaca que em Óbidos o público é muito exigente, o que leva a que eles tenham que aprimorar a técnica. “Temos que dar sempre muito mais do que o nosso melhor” porque as pessoas “querem ver espectáculo”, sublinha. E, ainda que cada apresentação tenha um guião pré-definido, a parte de improviso “é astronómica”, diz o participante que considera essa exigência particularmente motivadora.
O casal Ana e Paulo Morais, veio de Lisboa para passar a tarde no mercado e gostou particularmente do torneio. “Gostei de ver a forma como a aguadeira lutou e venceu”, disse Ana Morais, comentando que as lutas juntam normalmente homens. O casal destacou o facto do evento se realizar em Óbidos, um local que possui o cenário ideal.

Curandeiros, boticários e gansos

“Gostarias da minha protecção?” avança a curandeira junto dos visitantes que acabam de entrar no recinto e começam a tentar perceber que surpresas lhes estão reservadas. No chão, junto da gruta onde está “alojada”, tem velas e mezinhas feitas com água, terra e outros elementos da Natureza, que depois passa nas mãos de quem recorrer à sua protecção. Esta é apenas uma das personagens que deambula pela cerca, juntamente com a aguadeira, a vendedora de peixe seco, a lavadeira, o frade franciscano e a rapariga que passeia com os gansos. Esta última é Ana Costa, do Bombarral, e está a viver a sua primeira experiência de animação no Mercado Medieval. Consigo trouxe seis gansos, domesticados, que são uma das principais atracções do evento. As aves seguem a dona nos cortejos e na abertura do mercado e, quando estão no lago, interagem com os visitantes.
“São completamente inofensivos”, conta Ana Costa à Gazeta das Caldas, acrescentando que quando lhe perguntam qual é o segredo para o bom comportamento das aves, apenas diz que este “é um animal que tem que ser tratado e domesticado como qualquer outro e que sempre foram criados comigo”.
A cerca dos gansos fica situada na Alquimia das Águas, espaço também utilizado por diversos artesãos para mostrar os seus mesteres. Ali é possível encontrar o armeiro, o picheleiro, o malheiro, a tecedeira, a padeira e a curandeira e boticária, algumas das profissões usuais da Idade Média.
A designer Sara Fonseca, de Sintra, é, por estes dias, a curandeira e boticária do Mercado Medieval. Cuida das maleitas através do que existe na Natureza e na sua banca é possível encontrar um manancial de plantas secas, um livro de plantas e das suas características medicinais, e uma pele de cobra, “muito boa para fazer chá para curar a tosse”, explicou à Gazeta das Caldas.
Sara Fonseca lembra que na Idade Média era a curandeira quem fazia os desmanches (abortos) ou tratava, por exemplo, de uma constipação ou de uma unha encravada. “Numa altura em que tudo o que fosse além do visível era considerado magia, a curandeira era, muitas das vezes, a velhota que sabia mais sobre ervas e maleitas e que acabava por ser muito procurada mas, também, marginalizada”, explica.
A designer de Sintra já há algum tempo que participa em eventos de recriação histórica e, desde o início do ano, que integra a associação “Roteiro da Época”, juntamente com outros amigos que encenam outras profissões. É a primeira vez que está a trabalhar no mercado medieval de Óbidos, embora já tenha vindo como turista nas edições anteriores. Considera que o evento tem “aspectos muito positivos, um cenário fantástico, mas gostava de ver mais artesãos”.

Barco de 26 metros fundeado na Cerca

Um barco de 26 metros de comprido por 5,6 metros de largura está “fundeado” no Porto de Pipas, no fosso da cerca do castelo. Este elemento cenográfico é uma réplica de uma embarcação do século XII, retirada do fundo do Mar Mediterrâneo, perto de Barcelona, por uma equipa do Instituto Superior Técnico.
“Na Idade Média já existiam barcos destes a navegar, não em mar aberto mas sempre de capotagem, junto à costa”, explicou à Gazeta das Caldas Patrícia Figueiredo, da organização do Mercado Medieval. Nos séculos XII e XIII havia uma forte ligação de Óbidos a Salir do Porto, que na altura era um porto bastante importante, onde circulavam embarcações de mercadorias como a que se encontra reproduzida no mercado.
“Até há quem defenda que ali foram feitas as primeiras caravelas que depois partiram para os Descobrimentos, pois chegava facilmente a madeira vinda do pinhal de Leiria”, explicou a responsável.
A ligação de Salir a Óbidos faz-se também pelo facto de ser a mesma rainha quem administrava o povoado e o porto. “Apesar do concelho não ser o mesmo, os pescadores de Salir pagavam impostos à Igreja de S. Pedro em Óbidos”, acrescentou. Mais: no Inverno os pescadores não podiam ir ao mar e então mudavam-se para o Arelho e viviam da pesca na Lagoa.
O barco fica situado no Porto de Pipas ladeado por tavernas, que também adequaram a decoração à temática da água, assim como alguma da sua ementa, para incluir mais peixe. Às ameijoas, bacalhau, polvo, berbigão e enguias, juntam-se os jaquinzinhos fritos e a sopa de peixe. “Os estrangeiros que nos visitam procuram muito o peixe, especialmente os do norte da Europa”, explicou Patrícia Figueiredo.

Água Vai!

Outra das áreas temáticas é a das Águas d’Óbidos, que fica situada ainda do lado de fora da cerca e junta mercadores e algumas tascas, como as do Arelho e Bairro da Sra. da Luz, localidades que estão mais próximas da Lagoa. Já a Água Benta prende-se com a relação da água com a Igreja católica, nomeadamente com a alusão a uma série de rituais como o de aspersão ou o baptismo.
Água Vai! é um hábito da Idade Média, e que se mantém até ao século XIX, que consiste em fazer os despejos das águas da casa para a via pública, acompanhado desta expressão. Esta é outra das temáticas do evento e o local está composto por tabernas, zona de animação e um pequeno lago.
Na Encosta do Castelo está a Alquimia das Águas, com uma demonstração dos mesteres das águas e os banhos e por detrás da Igreja de Santiago está a Quimera dos Petizes, um espaço de jogos e brincadeiras destinado aos mais novos. Há vários jogos tradicionais, como o jogo do saco, uma espécie de bowling medieval, andas e malha.
Os Quimera, um grupo de recriação, dinamizam actividades com as crianças, que vão desde a tecelagem à olaria, passando pelo contar de histórias.

Ceias medievais esgotadas

Os serões medievais estão a ser um sucesso. A organização mais que duplicou o número de lugares diários nesta edição (de 60 para 150) e aumentou o número de dias. Resultado: lotação esgotada a semana passada e também já no próximo fim-de-semana.
O custo é de 39,90 euros e inclui entrada no evento, traje, lugar reservado no torneio e ceia medieval, que este ano é confeccionada pelos alunos dos cursos de restauração, cozinha e pastelaria da Escola Josefa d’Óbidos. Há mais pratos em cada ceia: dois pratos de carne e dois de peixe, e há uma apresentação mais próxima da época, com a aposta em confecções de empadas ou de carne de javali.
Ao contrário do que se possa pensar, a carne não era o ingrediente comum na época medieval e a ligação com a Lagoa de Óbidos é um exemplo da importância que o peixe tinha na vida quotidiana das pessoas como elemento primordial. “A carne seria só nos dias mais festivos e eram consumidas sobretudo aves”, explicou Bruno Silva, da organização do Mercado Medieval.
Diariamente há cortejos temáticos e ao nível da animação há grupos novos a participar, todos portugueses. “Procuramos valorizar o nosso produto e mostrar que na área dos mercados medievais há muita qualidade e diversidade”, acrescentou o responsável.
Nesta edição há também moedas novas. O torreão, assim se chama a moeda do Medieval, tem três novos exemplares, que podem ser adquiridos e trocados por produtos dentro do mercado. Não se trata de réplicas antigas, mas são feitas tendo por base três moedas importantes em Portugal: a primeira moeda cunhada em Portugal, do tempo de D. Afonso Henriques, outra baseada numa moeda de ouro de D. Sancho e uma terceira, de D. Dinis.
“O mercado medieval é um evento do século XXI, mas resultado de muita investigação e com rigor histórico”, concluiu Patrícia Figueiredo, da organização, dando conta que se baseiam em publicações fidedignas e trabalho das universidades portuguesas, especialmente de Lisboa e Coimbra.
O administrador da empresa municipal Óbidos Criativa, que organiza o evento, destaca a “presença em massa” das associações do concelho neste “projecto comunitário muito enraizado, e que permite ter um evento ímpar em Portugal”. O responsável deixa ainda um apelo a todos os visitantes para terem atenção às questões ambientais, lembrando que têm vindo a trabalhar essas temáticas desde o Festival do Chocolate, com a abordagem às alterações climáticas, e agora o uso da água.