Óbidos integra 17 refugiados ucranianos e já prepara nova viagem à Polónia

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A equipa de Óbidos juntamente com os cidadãos ucranianos durante a paragem que fizeram na zona de Paris

Fazer oito mil quilómentros até à fronteira da Polónia para trazer 17 refugiados para junto das famílias foi apenas o início do apoio que Óbidos quer dar e que continua agora com a sua integração plena

O ucraniano Ivan Drabets, natural de Ivano-Frankivsk e residente no concelho de Óbidos, percorreu mais de oito mil quilómetros até à fronteira da Polónia com a Ucrânia, juntamente com uma equipa de Óbidos para trazer 17 mulheres e crianças para junto das famílias residentes neste concelho. A ideia inicial era encontrar os seus três irmãos que ainda permanecem na Ucrânia e ficar a combater, mas o cansaço acabaria por tomar conta dele e regressou a Óbidos para junto da sua família, com alguns dos seus conterrâneos, agora a salvo da guerra.
“Foi uma viagem difícil, com temperaturas negativas, mas foi uma equipa muito boa e que fez um trabalho muito importante”, conta Ivan Drabets à Gazeta das Caldas. Em Portugal, mas com o coração na sua terra Natal, ele fala regularmente com os seus familiares e não esconde que pensa regressar a casa.
A viagem que o levou à fronteira com a Ucrânia foi decidida muito rapidamente pela Câmara, depois de identificados os cidadãos de origem ucraniana residentes no concelho (59 no total), com familiares naquele país invadido pela Rússia. Inicialmente foram identificadas 24 pessoas mas face às consequências da guerra, foram sinalizadas 17 pessoas, das quais foram enviadas informações para os serviços da Secretaria de Estado para as Migrações e o Alto Comissariado para as Migrações.
Sandrina Patriarca e Ricardo Duque, presidentes das Juntas do Olho Marinho e das Gaeiras, duas freguesias com famílias ucranianas, disponibilizaram-se desde logo para ir a terreno e partiram, juntamente com o vereador na Câmara de Óbidos, José Pereira, uma colaboradora da Junta das Gaeiras e quatro voluntários, dois deles tradutores.
Foram cinco dias de viagem (entre 5 e 10 de março). O destino eram as cidades polacas de Slemienska e Shehyni, de onde resgataram 11 crianças e 6 mulheres, 10 com família nas Gaeiras e 7 com família no Olho Marinho.
À expetativa inicial juntou-se, depois, o cansaço e até alguns vazios de comunicação, tendo em conta a barreira da língua.
José Pereira lembra-se, ao pormenor, do momento que marcou a diferença na comunicação, e interação, no grupo. Resultado de um contacto com uma gaeirense a residir perto de Paris, foram acolhidos pela comunidade portuguesa local, que lhes arranjou um hotel para descansar umas horas.
“Os cidadãos ucranianos aperceberam-se e logo ficaram apreensivos se ficariam nas carrinhas, mas foi-lhe imediatamente dito que todos eles iriam connosco”, recorda o autarca, manifestando o respeito pela dignidade humana que está subjacente a esta viagem. Já em Portugal o grupo parou na zona de Pombal, onde um restaurante lhes arranjou as refeições e foram preparadas prendas para todas as crianças. “À chegada a Óbidos, sobretudo os miúdos, já conseguiam pronunciar o nosso nome”, salienta o autarca, que tem continuado a acompanhar estas famílias.
Sandrina Patriarca, autarca de “primeira viagem’’ e psicóloga, lembra-se de dizer na campanha que o “património humano é o altar de qualquer território”, mas não sabia que, poucos meses depois de ser eleita, iria colocar a máxima em prática da forma mais básica, a luta pela sobrevivência humana.
No campo de refugiados e perante aquele cenário desolador, a autarca pôde perceber as emoções que sentem: “o olhar vazio, perdido, pois estão a arrancar-lhes a vida”, diz, acrescentando que a oportunidade de asilo, que lhes é dada, é aceite prontamente, a “ponto de entrarem num carro onde não conhecem ninguém e confiarem”. Para trás fica a despedida dos maridos, que não sabem se voltam a ver, filhos que perguntam quando podem regressar a casa.
Para a sua freguesia foram duas mães e cinco crianças, que já estão junto dos familiares, enquanto os restantes refugiados, com família nas Gaeiras, foram acolhidos numa habitação municipal. “Para nós não era suficiente transportar estas pessoas, queríamos que o acompanhamento fosse individualizado, à velocidade de cada pessoa”, conta Sandrina Patriarca, acrescentando que “o sofrimento está presente, mas já falam no futuro, numa escola para os filhos e na sua integração”.

Legalização no SEF
Os 17 cidadãos ucranianos que agora residem em Óbidos vão amanhã, sexta-feira, a Santarém, ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), tratar do processo de legalização, que lhes permite ter acesso à linha direta criada pelo governo para registo nos serviços públicos.
“Queremos que as pessoas sejam integradas”, explica o vereador José Pereira, acrescentando que a partir da próxima semana as crianças vão começar a frequentar a escola ou os jardins de infância e estão a tentar arranjar trabalho para as mulheres adultas.
A Câmara de Óbidos continua a fazer o levantamento dos espaços disponíveis para acolher pessoas, possuindo já ofertas de fora do concelho que irá articular com os outros municípios. Está também já a preparar a próxima intervenção, de maior dimensão, com o objetivo de trazer 40 a 50 pessoas, refugiadas na Polónia para esta região.
“Ainda hoje (segunda-feira) um técnico ligou-me a informar que no autocarro que chegou a Faro há duas pessoas que querem vir para Óbidos porque têm familiares na zona. Já estamos a ver espaços para os acolher e se vierem até sexta-feira, irão connosco ao SEF para regularizar a situação”, avança o autarca, acrescentando que lhes importa dar qualidade de vida a estas pessoas, e que não se sintam como refugiados.

 

 

Carolina Henriques Pereira

Isaac Bem-Seef Margosis nasceu a 5 de dezembro de 1898 no Império Russo, mais precisamente na cidade portuária de Odessa, hoje pertencente à Ucrânia. Sendo judeu viu-se forçado a abandonar a Bélgica, onde residia com a família, aquando da invasão alemã a este país em maio de 1940. Junto com a sua mulher, Schendel (nascida em Odessa, a 20 de janeiro de 1902), e os seus filhos, Michel, Anna e Willy, partiram para o sul de França. Todavia, o facto de Isaac ser editor de dois importantes semanários que denunciavam as atrocidades nazis – “Yiddishe Voch” e “Notre Opinion” – colocavam-no em perigo, e por isso, teve de escapar sozinho para Portugal ainda nesse ano, deixando para trás a sua família.
Chegado a Portugal residiu em Lisboa e, mais tarde, foi colocado pelas autoridades portuguesas em regime de “residência fixa” nas Caldas da Rainha, uma das muitas localidades da zona centro do país que recebeu refugiados durante a Segunda Guerra Mundial. A sua família juntar-se-ia a si, nesta cidade, em 1942, após uma fuga atribulada pelos Pirenéus. Este judeu natural de Odessa era um dos muitos refugiados que frequentava com regularidade o Café Bocage, na Praça da República. Aí os refugiados reuniam-se para ler e discutir as últimas notícias dos avanços alemães e da Guerra, para partilhar experiências da fuga até Portugal, para tentar obter informações relativas aos vistos de saída, mas, ao mesmo tempo, para combater a ociosidade à qual eram forçados, uma vez que, estavam proibidos de trabalhar. Michel conseguiu partir para os Estados Unidos da América, a bordo do navio Serpa Pinto, em 1943, num transporte de crianças preparado pela organização humanitária de auxílio aos judeus refugiados, American Jewish Joint Distribution Committee (JOINT, List of Passengers S.S. Serpa Pinto, 19/08/1943). Numa entrevista concedida a Leora Kahn, em 1994, Michel indica que os seus pais sairiam de Portugal em 1946 e os seus irmãos, que residiam na Palestina, juntar-se-iam a estes em Nova Iorque na década seguinte (Voices of the Holocaust, Oral History Project, Interview with Michel Margosis, 1994).
Tal como tantos outros refugiados deste período, Isaac escreveu ao Presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira de Salazar, antes da sua partida. Nesta carta afirma: “durante os cinco anos que passei neste país, os nossos inimigos massacraram e invadiram quase toda a Europa, onde martirizaram as populações pelos métodos mais selvagens e bárbaros (…) Poucos, muito poucos judeus, conseguiram escapar aos seus perseguidores e inimigos mortais. A grande maioria desses judeus passaram em trânsito por Portugal (…) Estes constataram com prazer e gratidão que Portugal é o único país da Europa onde não existem campos de concentração ou de trabalho forçado para os refugiados” (United States Holocaust Memorial Museum, USHMM, Margosis Family Papers, Identification Papers, 1940-1949, 14/02/1946). O território ucraniano, que tanto sofreu às mãos da Alemanha nazi, voltou a ser alvo de ataques militares indiscriminados, desta vez, por parte da Rússia de Putin. Que Portugal e, sobretudo, as localidades com um longo histórico de acolhimento como as Caldas da Rainha, saibam acolher os refugiados ucranianos – desesperados e desprotegidos – em fuga de mais uma Guerra indesejada na Europa.