ontem & hoje

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Notícias das Caldas
José Neto Pereira, década de 1950 – Espólio Património Histórico – Grupo de Estudos | D.R.
Notícias das Caldas
Joaquim António Silva – 2012 | D.R.

1. In principio erat Verbum
O Palácio da Justiça de Caldas da Rainha foi inaugurado em 1959. Um ano depois de eu próprio ter nascido. O projecto de arquitectura, cujo autor desconheço (custa admitir que seja filho de pai incógnito…), foi claramente inspirado pela arquitectura oficial do regime fascista italiano (1922-1943), tal como definido por Marcello Piacentini no chamado  “Stile Littorio”. O nome “Stile Littorio” deriva da publicação dos resultados do 1º concurso de arquitectura  para o “Palazzo del Litorrio” (1934), no qual os arquitectos italianos foram convidados a expressar uma monumentalidade à escala das ambições neoclássicas do regime fascista de Benito Mussolini.  Para Mussolini, o novo império que se pretendia erigir deveria ter um estilo que remetesse, sem mediações estéticas, para a grandeza do império romano. A própria designação “Domus Iustitiae”  (Casa da Justiça) remete para a noção de casas de famílias abastadas dos patrícios do antigo império romano.  Neste caso, a “Domus Iustitiae” era a afirmação da centralização do Estado junto das Comarcas, o que subsiste até aos dias de hoje como tema da chamada reforma judiciária. O ‘Palácio da Justiça’ de Caldas da Rainha, erigido pelo chamado Estado Novo, tem grandes semelhanças arquitectónicas com o projecto construído da  ‘Città Universitaria’  de Roma (1932-1935), cujos ecos estéticos são também visíveis nas Cidades Universitárias de Coimbra e Lisboa, embora tenha sido construído 24 anos depois.

Os frescos são da autoria de Lino António, na altura Director da Escola de Artes Decorativas António Arroio.
Paradoxalmente, o Ministério da Justiça da época, dirigido pelo Ministro Antunes Varela durante mais de uma década (de 1954 a 1967), implantou o Palácio da Justiça das Caldas da Rainha exactamente no eixo do sítio exacto em que se deveria iniciar uma longa avenida densamente arborizada que iria desembocar na estrada de Tornada, projectada pelo Arquitecto Paulino Montês como espinha dorsal da sua visão modernizadora de Caldas da Rainha como uma ‘Cidade-Jardim’ (cujo modelo de planeamento urbanístico era a ‘Garden City’ de Ebenezer Howard). O Estado Central, assumindo o papel de mecenas e promotor iluminado, foi o primeiro a boicotar as ideias e os planos de modernização e urbanização locais, em nome de uma centralização materializada na própria arquitectura, concebida como retórica e cenário do sólido, do digno e do funcional…uma metáfora da própria ideia de um Estado Novo.
Passados mais de 40 anos, as experiências pessoais dos cidadãos caldenses com a vivência dos espaços deste Palácio da Justiça das Caldas da Rainha constituem, por isso, uma outra História que merece ser contada e divulgada, paralela e complementar da retórica institucional!
2. Et Verbum caro factum est
Lembro-me como se tivesse acontecido hoje. Devia ter cinco anos, quase a completar seis, antes de ir para a escola. A minha mãe disse-me: “Temos de ir ao Tribunal, tirar o teu Bilhete de Identidade”. Provavelmente levava, nesse dia, uma camisa branca e um fato de veludo azul, com um monograma no bolso frontal do lado esquerdo do coração, com motivos marítimos, uma âncora e umas cordas enrodilhadas num desenho estilizado em azul e dourado.
A escadaria parecia interminável, e olhando para cima e para a frente, as colunatas altas, como num templo egípcio, pareciam esconder segredos de uma sociedade hierática. A pouco e pouco, começava a descortinar a porta, alta em bronze que, por vezes, se abria, deixando escapar uma ou outra pessoa, furtiva e de cabeça baixa, para não perder o início da escadaria ou ser encadeada pela luz forte do sol.  Quando a porta do Tribunal se abria, libertava-se um cheiro diferente lá de dentro, que o movimento de subida da escadaria acentuava, um cheiro doce de madeira de cedro misturado com o fumo acre de tabaco e suor.
O balcão era muito alto e, à frente do meu nariz, via apenas os painéis de madeira escura com um cheiro forte a óleo de cedro. Depois de longas conversas e preenchimento de papéis pela minha mãe, em conjunto com a senhora atrás do balcão, chegou finalmente o grande momento de reconhecimento da minha condição de pessoa e cidadão. Primeiro foi a medição da minha altura numa estrutura de madeira, também escura,  com números pretos em fundo branco, que quase parecia uma forca. Em seguida passámos ao ritual da impressão digital da ponta do dedo indicador da mão direita. A senhora funcionária saiu de trás do balcão com uma almofada de tinta preta e uns papéis na outra mão, dirigindo-se à mesa situada à esquerda da estrutura de madeira que servia para a medição, a tal com um perfil de forca. Agarrou no meu dedo com força e conduziu-o para a almofada impregnada de tinta, pressionando-o até ficar todo preto. Depois dirigiu-o para uma folha pequena de papel amarelado e disse-me para fazer força com o dedo, rodando-o da esquerda para a direita. Lá ficou marcada a minha primeira impressão digital de pessoa e cidadão, única e insubstituível.
Deve haver muitos milhares de cidadãos caldenses com experiências pessoais muito vivas deste edifício, tão ou mais marcantes  do que a minha.

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