Chegou às Caldas nos anos 1940, fugindo da guerra e acompanhando a família judia, que seguiu viagem. O Oeste encantou a suíça que regressou de comboio, dois anos depois, casada por procuração. Teve dois filhos e dedicou-se ao ensino, tendo-se doutorado e tornado professora catedrática em 1973
Irene Simone Truninger chegou às Caldas em 1940, acompanhando o casal de refugiados judeus que ajudou na fuga para Portugal, com destino à África do Sul. Era, então, percetora dos filhos do casal e, durante a estadia nas Caldas, a família ficou instalada no Hotel Lisbonense.
A helvética veio para Portugal via Paris e contava aos filhos episódios de bombardeamentos que aconteceram antes de a cidade luz ter sido ocupada em 14 de junho de 1940. Quem recorda estes factos é a filha de Irene, Isabel Truninger de Albuquerque, que se lembra dos raros desabafos da progenitora, em que esta contava que, enquanto acertava a saída de França com elementos da Resistência “começavam a soar as sirenes e tinha de correr rapidamente para os abrigos” de onde o casal para quem trabalhava praticamente não saía.
“Ela contava com muita emoção essas vivências, quando, com a ajuda da Resistência, conseguiram sair para Portugal, um país neutro que podia receber refugiados”, explicou a filha. Isabel crê que a mãe conheceu o futuro marido, Paulino Pires de Albuquerque, “provavelmente no ténis, no parque que ficava em frente ao hotel, ou na Foz do Arelho, pois era uma excelente nadadora.
Irene Truninger sai de Portugal e chega em agosto de 1941 a Montebello, na Suíça, onde fica como professora de Inglês num colégio. “As alunas constatavam que havia uma intensa correspondência entre a docente e Portugal e que ela ficava sempre muito feliz quando recebia as cartas lusas”, recorda a filha. As alunas chegaram a dedicar-lhe uma peça de teatro, representada a 24 de março de 1942. Um dia antes, a docente tinha casado por procuração com Paulino de Albuquerque, que vivia na cidade termal.
Com 25 anos, Irene volta então às Caldas, para se reunir com o marido. Chega de comboio e traz dinheiro num envelope oferecido por uma tia cantora lírica e pianista e que só podia ter um destino: a compra de um piano. Isabel lembra que a mãe cumpriu a promessa e que um exemplar de cauda acompanhou a vida da família.
À espera na estação das Caldas, em 1942 estava Paulino de Albuquerque. Era divorciado e veio esperar a sua nova mulher, ao lado do filho Fernando, de uma relação anterior.
“O meu pai recebeu-a com um pratinho de arroz doce e a minha mãe devorou!”, assegura Isabel, recordando que os refugiados estavam sujeitos a um racionamento severo e só tinham acesso ao essencial. Nada de doces.
Isabel nasceu em 1945, dois anos depois do irmão, Pedro. Ela conta que os pais tinham muito em comum: a música, as artes, o mar, o amor pela natureza, o desporto e ambos “adoravam ler”. E faziam-no em vários línguas.
Acordar com canções ao piano
A primeira casa da família foi na Rua de Camões, em frente ao Parque, e as primeiras recordações de Isabel da mãe era de acordar, aos três anos, com a progenitora a cantar ao piano, dado que tinha o curso de piano e canto do Conservatório de Genebra. A suíça tinha tido uma educação inglesa, com regras, horários e disciplina que passou aos filhos.
O pai de Isabel era 14 anos mais velho do que a mãe. “Era um homem infinitamente livre, grande alegria de viver, formação agrícola, devido ao meu avô que foi diretor do Pinhal de Leiria”, recordou a filha.
Paulino de Albuquerque tinha o gosto pelo improviso e adorava viajar. Acordava de manhã e dizia “amanhã vamos para a Suíça!” E a família lá tinha de se organizar para partir no dia seguinte. A sua maneira de ser contrastava com a da esposa, que gostava de planeamento e organização.
Além do ensino das línguas, ela interessa-se por História e temas da história local. A filha lembra-se de a mãe se ter dedicado com afinco ao Bordado das Caldas. “Os meus pais tinham uma paixão e admiração mútuas”, lembrou Isabel. O pai, além de proprietário foi gerente do Banco Raposo de Magalhães, nas Caldas, até que decidiu abrir um armazém, com um bom stock de artigos diversos. “Num dia ficávamos com a casa cheia de pentes, no outro cheio de tesouras que vinham a mais e o pai não estava para se maçar a devolver”, recorda a herdeira.
Noites de Inverno, a ouvir a BBC
A família mudou de casa em 1948 quando Isabel tinha 4 anos.
“O meu pai constrói uma vivenda no Avenal, acima do atual Museu da Cerâmica”, contou Isabel Truninger de Albuquerque, recordando que foram morar para o casal de S. Pedro, assim designado por causa de um dos filhos do casal.
A caldense recorda-se das noites de inverno dos primeiros anos de 1950, na grande sala da casa onde estava o piano de cauda. “A minha mãe fazia malha à lareira enquanto ouvíamos na BBC os relatos da Guerra na Coreia, o barulho dos aviões, os números dos feridos e dos mortos….”, recorda a enfermeira, que se lembra de a mãe explicar aos filhos “que nem todos no mundo viviam em paz”. Contudo, ainda hoje Isabel de Albuquerque não aprecia o “Requiem” de Mozart, que encerrava o noticiário radiofónico e que atualmente ainda a “faz estremecer…”.
A caldense conta que o passado ligado aos refugiados da mãe fez com que a professora suíça tivesse sempre a preocupação de elogiar Portugal e os portugueses, “que tão bem a receberam e acolheram”. E por cá ficou, por amor.
Na nova casa, maior e com espaço exterior, Irene Truninger abriu um jardim de infância. Segundo a filha, “não havia nas Caldas nenhuma estrutura de apoio às crianças antes da Escola Primária”. E Isabel de Albuquerque recorda-se das mesas quadradas em que se sentavam e trabalhavam “com barro”, pintavam e faziam “desenhos”. Em simultâneo, a sua mãe já ensinava Francês. Dominava Inglês. Alemão, Italiano e até Grego Antigo”, recorda a orgulhosa filha, que herdou da mãe a apetência pelas artes pois foi bailarina. Em jovem cursou Medicina e Farmáciamas depois seguiu enfermagem. ■
Pioneira no pré-escolar prosseguiu até ser catedrática
A vida de Irene Truninger esteve sempre ligada ao ensino. Já casada, a docente deu aulas na universidade em Lisboa e chegou a doutorar-se
Ainda nos anos de 1950, Irene Truninger foi contratada como professora de Inglês e Francês no Colégio Ramalho Ortigão, nas Caldas, quando já tinha fechado o jardim de infância.
“Estávamos totalmente integrados nas Caldas da Rainha, embora com uma vida que eu considerava pertencer a outro mundo”, comentou à Gazeta a caldense, referindo que nas férias a família se mudava para a Foz, ia à Suíça ou recebia nas Caldas familiares suíços.
Teria 11 anos quando assistiu à conferência da sua mãe, no Museu Malhoa, sobre “Os desígnios do Infante D. Henrique e a sua continuidade até Afonso de Albuquerque.” Aos 15 anos, Isabel de Albuquerque aprendia com a mãe o que era o fascismo, socialismo, democracia e a liberdade e aconselhava leituras de Sartre, Camus, Beauvoir e de Marx. Ao mesmo tempo dava aulas de piano aos filhos.
Depois de começar a lecionar no Colégio, Irene Truninger matriculou-se em Filologia Germânica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) e acabou por terminar a licenciatura como aluna voluntária, pois dessa forma era-lhe permitido manter a residência nas Caldas. Um colega que conheceu, Fernando de Melo Moser, era guia turístico da empresa Capristanos e, mais tarde, também foi professor catedrático da FLUL, “Ele passava periodicamente pelas Caldas e trazia-lhe os apontamentos das aulas”, lembrou a filha, acrescentando que a progenitora terminou a licenciatura com louvor e distinção. E, por isso, foi convidada a entrar na FLUL, como assistente.
“Acabámos por ir viver para Lisboa”, lembrou Isabel, que fez o 7º ano já em Lisboa no ano letivo de 1962/63. Irene Truninger foi também convidada a integrar o corpo docente do ISLA, que a docente aceitou em acumulação com a Universidade. Na capital, Irene Truninger tornou-se “Amiga do Teatro Nacional de S. Carlos” e a família passa a frequentar com regularidade as óperas e os concertos. Na mesma fase, torna-se tradutora oficial da Embaixada Suíça.
A helvética terminou o doutoramento com louvor e distinção tornando-se, através de concurso, professora catedrática em 1973. Ficou colocada no Departamento de Estudo Anglo-Americanos,
Posteriormente foi dirigente do Instituto de Cultura Inglesa e docente de Literatura Inglesa e Medieval. “Possuidora de uma arquitetura intelectual sólida, a minha mãe tinha o gosto pela exatidão e pela verdade”, disse Isabel de Albuquerque, recordando que a mãe manteve sempre viva a sua referência a Pestalozzi, pedagogo suíço do séc XVII, defendendo que “devem ser estimulados e formados os três componentes da personalidade humana, a fim de se conseguir a plena valorização do indivíduo; são eles a sensibilidade, o intelecto e a habilidade manual”.
Irene Truninger de Albuquerque faleceu em Lisboa em 1986, seis anos depois da morte do marido. ■