Muita gente não sabe ou já não se lembra que a repartição das finanças das Caldas funcionou aqui neste edifício, onde também estava a PSP e a cadeia da comarca (entre a Praça da Fruta e o Chafariz das 5 Bicas). Foi para aqui que eu vim em 1967, transferido de Chaves, como ajudante verificador. Estive aqui dois anos, fui para Lisboa, depois para Leiria e regressei às Caldas onde me reformei.
Sou dum tempo em que não havia IRS nem IRC nem IMI. Na altura havia o Imposto de Transações, o Imposto Profissional, o Imposto Complementar e outros que tais.
78 ANOS
DIVORCIADO, 3 FILHOS E 4 NETOS
Se algo une Chaves às Caldas da Rainha são as águas termais e – perdoem-me a imodéstia – eu próprio! É que eu passo duas semanas em Chaves e outras duas nas Caldas. Ou então estou oito dias por lá e oito dias por cá, mais propriamente no Nadadouro. Desde que me reformei vivo onde me apetece, aproveitando o melhor de cada um dos sítios, dividindo-me entre estas duas cidades.
Foi em Chaves que nasci no dia 15 de Março de 1938. Das memórias de infância recordo uma cidade pobre do interior, com muitos vestígios romanos, mas uma terra razoável para a época devido às termas e, sobretudo, devido ao comércio. Ou melhor, devido ao contrabando com a Espanha, que fica a poucos quilómetros, que era uma actividade de grande importância na economia local.
Fiz a escola primária e o curso comercial na Escola Comercial e Industrial Dr. Júlio Martins, em Chaves. O meu pai era pedreiro, a minha mãe doméstica, como todas na época, mas conseguiram que eu e o meus quatro irmãos não nos ficássemos só pela 4ª classe.
O meu primeiro emprego, em 1955, durou três dias. Foi num stand de automóveis, mas a firma foi à falência e aquilo fechou três dias depois. Eu tinha 17 anos, queria ajudar a família (eu era o mais velho dos cinco irmãos) e não havia empregos. Decidi inscrever-me como voluntário para a tropa e com 18 anos assentei praça no Batalhão de Caçadores 10 em Chaves, onde fiz a recruta.
Três meses depois fui tirar o curso de sargento miliciano para Tavira. É verdade! Eu que nunca tinha saído da terra onde nasci, que nem sequer conhecia o Porto, fui mandado para o Algarve.
Enfiado na farda cinzenta da tropa, com a guia de marcha no bolso e a arrastar uma mala com roupa e um farnel, lá atravessei o país de ponta a ponta. Foi, à data, a viagem da minha vida. Em 1956, em composições rebocadas por locomotivas a vapor, saí de Chaves para a Régua, onde apanhei o comboio para o Porto. Depois outro comboio para Lisboa, onde apanhei o barco para o Barreiro e depois outro comboio para Tavira. Durou a coisa um dia e uma noite até chegar lá abaixo.
Isto era apenas o princípio das muitas viagens que viria a fazer na minha vida. Três meses depois voltei para Chaves, já como cabo miliciano, mas não fiquei ali muito tempo porque fui para o RI6 no Porto. Um ano depois ofereci-me como voluntário para ir para a Índia.
Mandaram-me para o RI5 das Caldas da Rainha para formar batalhão. Em 1959 as minhas impressões desta terra foram as de uma cidade mais buliçosa e movimentada, com vida nocturna e economicamente mais desenvolvida do que a terra onde nasci.
Semanas depois embarquei no navio Niassa para o Alto Margão no Estado da Índia Portuguesa. Vinte dias de viagem, quase sem ver terra, contornando África pela rota do Vasco da Gama.
O quartel onde vivíamos cerca de 150 homens ficava num alto, com a vila de Margão cá em baixo. A terra era pobre e dependia muito do fornecimento de bens e serviços à tropa. Recordo o calor sufocante, o sol abrasador. De tal forma que o serviço do quartel era feito só de manhã porque à tarde não se trabalhava.
Dois anos depois voltei a Portugal. Estávamos em 1961 e a invasão da Índia deu-se pouco depois de eu ter regressado.
A TROPA NOVAMENTE
Voltei a Chaves para casa dos meus pais. Tinha 23 anos e soube de um anúncio no Diário do Governo (hoje Diário da República) a pedir empregados para as Finanças. Concorri. Pus-me a estudar a matéria fiscal toda durante dois meses e cheio de vontade porque eu queria muito aquele emprego. Era para o Estado, um trabalho de costas direitas, algo que praticamente toda a gente aspirava.
Fui fazer o exame a Lisboa e fiquei apto. Mas enquanto esperava para ser chamado para as Finanças, fui mobilizado para voltar para a tropa. Entretanto rebentara a guerra em Angola e o Salazar precisava de cada vez mais homens para mandar para lá.
Recebi uma guia de marcha e fui formar batalhão a Faro. Dali fomos embarcar no velho Niassa (que também já me tinha levado e trazido à Índia) ao cais de Alcântara. Não quis lá ninguém da família porque não gosto de despedidas e porque, na verdade, não havia posses para fazer uma viagem de Chaves a Lisboa.
E lá fui para a guerra.
Na verdade tive a sorte de nunca ter estado debaixo de fogo, se bem que uma vez um pelotão do meu quartel perdeu um homem e ficou com quatro feridos durante uma emboscada. Na minha incursão por terras angolanas comecei pelo Grafanil, em Luanda, onde agrupavam as tropas recém-chegadas e as que estavam para partir, e depois fui enviado para Lucunga, no norte de Angola. Ficámos alojados em casas que os colonos haviam abandonado devido aos ataques dos terroristas (para uns) ou guerrilheiros (para outros). Seis meses depois fui para Bembe, que fica mesmo no interior de Angola. Fiquei lá cinco meses porque a seguir mandaram-nos para a barragem dos Mabubas, perto de Luanda.
Foi nesta altura que vim de férias à Metrópole (como então se chamava a Portugal continental). Eu já estava farto de tropa, mas consolava-me saber que, pelo menos, tinha o lugar garantido nas Finanças quando acabasse esta segunda fase do serviço militar.
Voltei a Angola. Estive em Henrique de Carvalho (hoje Saurimo), novamente no norte do território, depois fui para o Mussuco, já perto da fronteira com o Congo. E depois acabou!
Regressei a Portugal no Santa Maria (aquele navio que o Henrique Galvão tinha desviado) em Dezembro de 1964, ainda a tempo de passar o Natal com a família. E no dia 2 de Janeiro de 1965, com 27 anos, comecei a trabalhar nas Finanças de Chaves. Finalmente!
Comecei como aspirante de finanças. O meu primeiro ordenado foi um conto e quinhentos (7,50 euros), o que não era nada mau para a época. Dois anos depois fui nomeado ajudante verificador no Quadro Especial do Serviço de Prevenção e Fiscalização Tributária. Hoje já não sei se isso ainda existe porque mudaram tudo. Mas para os mais leigos, eu era o que se chama um fiscal das Finanças.
Foi com esta nomeação que eu vim para as Caldas. Porquê?
Quando eu tinha estado na Índia, travei correspondência com uma madrinha de guerra do Nadadouro. As madrinhas de guerra eram correspondentes dos militares no Ultramar para lhes levantar a moral. Muitas vezes a troca intensa de cartas e de aerogramas (constituídos por uma folha de papel muito fina, dobrável em duas ou quatro partes e que eram oferecidos pelo Movimento Nacional Feminino) resultava em casamento e foi o meu caso.
Casamos em 1965 pouco depois de eu entrar nas Finanças e ficamos a viver em Chaves, mas depois decidimos vir para cá.
SEMPRE EM SERVIÇO EXTERNO
Nas Caldas fiquei a trabalhar neste sítio dois anos. Na verdade grande parte do meu serviço fazia-se nas empresas onde eu ia fiscalizar a escrita.
Entretanto subi a secretário de finanças, mas optei por me manter no quadro especial onde desempenhei as funções de técnico verificador. Por causa disso fui para Lisboa, para a Direcção Geral das Finanças, onde estive entre 1969 e 1971. Depois pedi transferência para Leiria onde estive até 1988 e a seguir vim reformar-me às Caldas da Rainha, onde trabalhei os últimos dois anos da minha carreira, já nas novas instalações no edifício dos Paços do Concelho.
Quase toda a minha vida fiz serviço externo, percorri grande parte das empresas do distrito de Leiria, desde Figueiró dos Vinhos até Peniche e Bombarral. E talvez seja difícil de acreditar, mas apesar de eu ser o representante do Estado que cobra impostos, nunca tive problemas com ninguém nem nunca senti incompreensões por parte dos contribuintes.
Claro que quando entrava numa empresa sentia alguma aversão por parte das pessoas, o que é compreensível porque eu ia “invadir” o espaço deles e pôr-me a verificar papéis, mas esse mal estar nunca era exteriorizado. E também é certo que eu tinha que levantar autos e que estes muitas vezes davam em multas, mas eu sempre tive a preocupação de explicar tudo e as pessoas aceitavam.
Uma vez, numa empresa ali para os lados da Marinha Grande, tentaram entregar-me um envelope, mas eu, muito simplesmente, recusei. Como estava fechado, não sabia o que lá estava dentro e desconfiei da intenção.
Durante os anos em que trabalhei nas Finanças quase tudo mudou. A começar pela forma como se trabalhava: o serviço era feito à mão, por vezes com livros de registos que mediam dois a três metros e que estavam estendidos em armários junto às paredes, e os ofícios (cartas) eram escritos à máquina. Agora é tudo computadorizado. E, no entanto, em 1967, quando vim para as Caldas, éramos só seis funcionários. Agora são 30.
Não sei se em 1990, quando me reformei, já havia computadores na repartição de Finanças das Caldas, mas se havia eu já não cheguei a trabalhar com eles. Tinha 52 anos e vim-me embora. Foi cedo? Apenas usufrui do que a lei me permitiu: os anos na Índia e em Angola contavam com mais 50% ou 100% de tempo de serviço para a reforma.
NÃO TINHA ESPÍRITO DE FISCALISTA
Hoje, pelo que vejo, acho que os serviços internamente estão mais complicados porque na altura quando havia algum erro, sanava-se logo o problema oficiosamente. Agora são precisas reclamações sobre reclamações.
Acho que actualmente não há tanta abertura por causa da informatização. Antigamente era pessoa com pessoa e hoje é pessoa com máquina. Ora as pessoas entendem-se a conversar. Agora com as máquinas…
Desde que me reformei tenho andado a passear. Como me dediquei à columbofilia, cheguei a ir visitar exposições internacionais à França, Holanda e Bélgica. Mas também já fiz um cruzeiro no Mediterrâneo, visitei a Madeira e os Açores e atravessei o Atlântico para conhecer Cuba.
Entretenho-me na minha casa no Nadadouro, onde tenho uma horta com feijões, melões, tomates, alfaces, pepinos. E gosto de mudar de ares: estou umas temporadas aqui e outras na minha terra em Chaves.
Uma coisa é certa: mal me reformei procurei esquecer-me de tudo o que era Finanças. A verdade é que o serviço que desempenhei não se coadunava com a minha maneira de ser, eu não tinha espírito fiscalista. Mas era o meu ganha pão e fi-lo de forma honesta.































