“Refugiados não saem dos campos por achar que são lugares seguros”

0
556
Gazeta das Caldas

alternativaA Europa não está a dar resposta à crise dos refugiados, afirmou Susana Gaspar, presidente da Amnistia Internacional que participou no ciclo “Ser cidadão do mundo, hoje!”, promovido pelo Conselho da Cidade. A sessão teve lugar a 20 de Fevereiro na Secundária Rafael Bordalo Pinheiro e nela participou também o jornalista Carlos Guerreiro que falou sobre os fluxos de migrantes e emigrantes ao longo da história em Portugal. A eurodeputada Ana Gomes adiou a sua presença neste ciclo para o dia 5 de Março.

“Não estamos a encontrar respostas”

“O que é que daqui a cem anos os historiadores vão dizer de nós e da forma como estamos a lidar com a maior crise de refugiados desde a II Guerra Mundial?”. Foi com esta interrogação que Susana Gaspar, presidente da Amnistia Internacional (AI), começou a sua intervenção.
A convidada, de 28 anos, é também actriz e professora, e recordou aos presentes (cerca de 30 pessoas) que a história é cíclica e que, além de uma grande crise económica, vivemos também uma crise de valores. Perante a crise dos refugiados, diz que “não estamos a ser nada ágeis a achar respostas”.
Susana Gaspar lamentou a ausência de Ana Gomes pois, se a eurodeputada estivesse na conferência, “poderia explicar-nos porque é que o Parlamento Europeu leva tanto tempo para criar rotas seguras para os refugiados”.
Como se não bastasse ter que fugir de um país em guerra, as pessoas ainda têm que o fazer por mar, de forma insegura, correndo o risco de vida e de perder os seus familiares. “Parece que nos sobrou pouca coisa de tantos anos de filosofia e de humanismo”, comentou a responsável da AI.
Susana Gaspar contou como foi a sua experiência em 2011 em Lampedusa (ilha italiana) e como ficou chocada com o centro de recepção, que achou melhor apelidar de detenção. Este tinha capacidade para 200 pessoas e “quando lá estive estavam 500 pessoas num espaço cercado de arame farpado”, recordou.
E nas praias da ilha, onde tantos turistas apanhavam sol, todos os dias chegavam cadáveres trazidos pelo mar, gente que foge do terror que se vive nos seus países. Entre os habitantes da ilha Susana Gaspar constatou que havia quem “recebia bem os refugiados” e outros que os mandavam para os países de origem, afirmando que os refugiados traziam doenças para a ilha.
Susana Gaspar referiu ainda os atropelos aos direitos humanos nas grandes deslocações. “Recentemente desapareceram 10 mil crianças, já para não falar nos jovens e mulheres que simplesmente passam para as redes de tráfico sexual, de trabalho e de órgãos”, afirmou.
Nos campos de refugiados do Líbano, por exemplo, “as mulheres sofrem de assédio sexual e violações pois não há quem as proteja”, disse Susana Gaspar. Para a defensora dos Direitos Humanos, a maioria das pessoas, mantém-se nos campos de refugiados por medo e “por achar que já não há lugares seguros”.
Citando António Guterres (ex-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados), a autora referiu que a Europa dentro de 50 anos “não terá gente para cuidar dos mais velhos”. Simplesmente porque as pessoas emigram, não têm filhos, verificando-se um greve problema demográfico relacionados com a renovação das gerações.

DA ESCRAVATURA À EMIGRAÇÃO

Carlos Guerreiro, jornalista e colaborador do canal RTP Ensina, deu uma panorâmica geral sobre a forma como Portugal lidou com os fluxos migratórios ao longo da História.
“Entre 1519 e 1867 vários estudos levados a cabo por investigadores americanos apontam para um total de 10 a 12 milhões de deslocados, nos tempos da escravatura”. Números assustadores, revelados por Carlos Guerreiro, jornalista e colaborador do canal RTP Ensina, durante esta sessão. O convidado deu a conhecer que dos “40% dos escravos que chegaram vivos ao destino (mais de metade morria nas longas viagens) foram para o Brasil”. Tal percentagem não deixa Portugal imune em relação ao tema. Mais: só no transporte de escravos “terão morrido entre 1,2 a 2,4 milhões de pessoas”, acrescentou o jornalista.
E se em relação à escravatura, Portugal não fica bem no retrato, também a forma como os judeus foram tratados em terras lusas deixa muito a desejar. “Pouco antes de 1500, vieram de Espanha entre 30 a 50 mil judeus que seriam 3 a 5% da população de então, que era apenas de um milhão de pessoas”, explicou o jornalista. Na época, D. João II, exigiu-lhes elevadas taxas e estes acederam ao pedido. Só que o monarca resolveu posteriormente retirar 700 crianças aos pais para enviar para São Tomé onde a maioria viria a morrer.
De seguida, obrigou-os à conversão religiosa e, por isso, muitos optaram por abandonar o país e outros acabaram por perecer às mãos da Inquisição. Além da perda de capital humano e económico, “também se perdeu o ímpeto dos Descobrimentos”. E isto porque os judeus tinham um papel fulcral no comércio, nos estudos astronómicos e na construção naval.
Carlos Guerreiro, sobre o século XX, referiu os números da emigração portuguesa, sobretudo a que ocorreu nos anos 60. “Os portugueses foram para a França, a Alemanha, a Suíça, mas também para os EUA, Brasil e também Marrocos”, contou o convidado. Para este último destino foram muitos algarvios, ligados à pesca.
Durante a II Guerra Portugal recebeu também crianças austríacas como refugiadas. Hoje, depois de terem tido vidas preenchidas nos seus países, regressaram para gozar as suas reformas, sobretudo no Algarve. Para a maioria, Portugal “foi sempre o país do coração”, disse Carlos Guerreiro.
Sobre os denominados “retornados” – que regressaram ao país após o processo de independência das ex-colónias – o convidado afirmou que estes “foram refugiados no próprio país”. Ainda assim, e tendo em conta que foram integrados meio milhão de pessoas, “as coisas até não correram assim tão mal”.
Por fim, Carlos Guerreiro deteve-se sobre a vinda de bósnios para Portugal em 1992. Das cerca de 150 a 200 pessoas “contam-se os dedos das duas mãos os casos de sucesso”, pois a larga maioria não se sentiu integrada em Portugal.
Em relação à actual situação dos refugiados, disse que “temos que abrir as portas”, mas alertou para o facto de “o excesso de boa vontade poder ser o nosso maior inimigo”. Até porque quando se deslocam muitas pessoas de muitas proveniências, “a mínima coisa pode funcionar como isqueiro para um barril de pólvora”.
E como, por todo o lado já se instalou o medo, assiste-se ao extremar dos discursos em vários países da Europa.
Segundo a organização da iniciativa, a eurodeputada Ana Gomes virá às Caldas no próximo dia 5 de Março.