Renée Ermann – a luxemburguesa que foi feliz nas Caldas da Rainha sem saber que era uma refugiada da II Grande Guerra

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Fugiu do Luxemburgo apenas seis horas antes de os alemães ocuparem a cidade. Chegou a Portugal, com vistos passados por Aristides de Sousa Mendes, e viveu dois anos nas Caldas da Rainha, muito feliz, brincando na Praça da Fruta e no Parque, antes de rumar para a Jamaica, Cuba e Estados Unidos. Regressou ao seu país em 1945, depois da guerra. Na semana passada falou à Gazeta das Caldas sobre as suas recordações das Caldas nos anos 40. Renée Ermann tem 86 anos. Tinha dez quando chegou às Caldas. E o mais extraordinário: ainda hoje fala português!

Dez de Maio de 1940. Seis da manhã. No número 22 da Rua Gastán Diderich, em Belair, um bairro burguês da capital luxemburguesa, toca o telefone. “Os alemães estão a invadir-nos. Mete-te imediatamente no carro com a tua mulher e a tua filha e fujam”. As palavras poderão não ter sido exactamente estas, mas a mensagem, curta, dispensava mais explicações. Renée Ermann conta que foi um primo que os avisou e que o pai não perdeu tempo em seguir o conselho. Agarrou nalguns pertences mais valiosos e arrancou, com a família, a caminho da fronteira francesa.
Na outra fronteira (alemã) do Grão/d-Ducado, as movimentações de tropas tinham começado a meio da noite. Quem quer que fosse o primo que avisou a família, estava bem informado do que estava a acontecer pois a invasão alemã apanhou desprevenidos os próprios milicianos e corpos de voluntários (o Luxemburgo não tinha Exército) que dormiam nos quartéis fronteiriços. Às 4h30 os primeiros soldados alemães cruzam o rio Mosela e antes do meio dia tinham ocupado a capital. A família Ermann tinha escapado por um triz.
“Outros não tiveram a mesma sorte. Também eram judeus e foram  avisados, mas pensaram que os alemães não chegariam nesse dia e que teriam tempo para preparar a fuga com mais calma. Alguns dos meus tios acabaram por ser deportados e morreram nos campos de concentração”.
Gérard Karas, filho de Renée, mostra a casa onde agora vive e que pertenceu aos seus pais. É uma robusta vivenda construída nos anos 30 pelo seu avô. Foi daqui, do número 22, que os seus avós e mãe, se puseram, oportunamente, em fuga naquela madrugada de 10 de Maio de 1940.
Renée Erran vive agora no outro lado da rua, com o marido, num apartamento moderno. “Está encantada por recebê-lo. Desde manhã que está a treinar o seu português que já não falava há 70 anos”.
A verdade é que o sotaque da Madame Renée é surpreendente. Faltam-lhe algumas palavras, de vez em quando mistura algumas expressões em francês, inglês ou espanhol. Mas metade da conversa decorre em português, com a entrevistada a sorrir à medida que as memórias das Caldas se avivam, na exacta medida em que recorda palavras da língua portuguesa que julgava esquecidas.
Mas recuemos 75 anos no tempo, aquela manhã em que a família Ermann fugia rumo ao sul de França. Renée diz que terão chegado a Bordéus nessa noite, mas o filho corrige-a: “mamã, nesse tempo não havia auto-estradas, as viagens demoravam muito mais tempo”.
Dos pormenores da viagem, a velha senhora não se lembra. A sua memória salta imediatamente para as Caldas da Rainha. É das Caldas, da “praça do mercado” e do parque que ela quer falar.
Mas vamos com calma. Em Bordéus o pai consegue vistos para Portugal. Em Maio de 1940 o cônsul de Portugal em Bordéus é um discreto diplomata chamado Aristides de Sousa Mendes. É ele que, desobedecendo às ordens de Salazar, passará, meses mais tarde, milhares de vistos a uma multidão que procura fugir do terror nazi e que, deste modo, consegue escapar aos campos de concentração.
Nesta altura o consulado português em Bordéus ainda não conhece as enchentes que o caracterizariam mais tarde durante o êxodo para o porto de abrigo em que se transformara Portugal no auge da guerra. É, pois, provável que tenha sido sem grandes dificuldades que o pai de Renée tenha obtido o visto assinado pelo próprio Aristides de Sousa Mendes antes de prosseguir viagem até à fronteira espanhola.
O primeiro desaire começa ali. As autoridades espanholas não deixam passar o carro. Só os seus ocupantes. O Peugeot do senhor Henri Ermann fica ali. Não voltará a vê-lo. A família prossegue de comboio, no Sud Expresso, para Lisboa e de lá é reencaminhada para as Caldas da Rainha
NAS CALDAS
“Ficamos instalados na rua que vai dar à praça do mercado, num primeiro andar por cima de uma loja de tecidos”, conta Renée. O pai teria posses para pagar a renda e a relação com o senhorio, o dono da loja, é muito cordial.
A menina de dez anos não sabe que está em fuga e que escapou a uma morte quase certa num campo de concentração. Nas Caldas tem uma existência feliz e despreocupada, própria das crianças a quem nada lhes falta e a quem é permitido brincar.
“Brincava na praça junto ao quartel dos bombeiros. Os meus amigos eram portugueses. Havia outras crianças estrangeiras, sobretudo holandesas, mas eu brincava com os portugueses. Não havia problemas de segurança e eu andava na rua. Também íamos ao parque. Ó lá lá! O parque, com o lago e os barcos, e aqueles edifícios altos…! Fui muito feliz nas Caldas da Rainha. Foi formidável!”.
Renée aprende português a brincar. Os seus melhores amigos são Rui Pinto Ferreira, que é filho de um militar do RI5,  e Maria Cristina Morais do Valle. Esta última é filha do director da Escola Industrial e Comercial Rafael Bordalo Pinheiro e é referida com grande entusiasmo pela velha senhora luxemburguesa como a sua melhor amiga daquela tempo, de quem mostra uma foto em que ambas estão a andar de bicicleta no parque.
Posteriormente à nossa visita, Renée Ermann ficou a saber, com grande pesar, que essa sua amiga morreu há dez anos, em 2005.
Em 1940 a jovem Renné entrará na escola tal como os outros meninos e meninas portuguesas e frequenta um ano lectivo e meio. A escola primária funciona então na Praça 5 de Outubro num edifício já demolido e onde é hoje a sede do PSD. A jovem já falava português quando entra na escola. Agora melhora o idioma.
“Vivemos muito bem em Caldas. As pessoas eram muito simpáticas. Havia a pastelaria Gato Preto e o Hotel Rosa. O Hotel Rosa era muito chique. Era para a gente rica. Era lá que estavam os holandeses ricos. Olhe, vou-lhe contar um episódio. Havia crianças portuguesas muito pobres, que andavam descalços. E houve uma família holandesa que comprou uma centena de pares de sapatos e ofereceu-lhes. E sabe uma coisa? Eles iam para a escola e levavam os sapatos nas mãos…!”

BRINCAR E PASSEAR

Sem se dar conta do drama da guerra, de que nem ouvia falar, a pequena Renée vai à escola e brinca. Recorda-se que uma vez foi de autocarro a Óbidos “e que era uma vila muito bonita”. E tem uma vaga ideia de ter ido ao Bombarral, também de autocarro. Mas recorda-se melhor – até porque há fotografias que a documentam – de uma excursão à Foz do Arelho. Pelos vistos a relação com os senhorios é muito boa porque são eles que os levam de carro. Renée lembra-se que foi no Natal de 1941, o que coincide com o vestuário de Inverno da fotografia.
Não há memórias de Lisboa, por onde só terá passado à chegada e à partida de Portugal. É o pai que lá vai de vez em quando “ajudar outros estrangeiros com os papéis”. Provavelmente Henri Ermann faria parte do comité judaico de apoio aos refugiados.
E não está seguro. Henri receia que os alemães – que entretanto já ocuparam quase toda a Europa e avançam pela União Soviética adentro – não poupem Espanha e Portugal. Franco, que é próximo de Hitler, desiste da neutralidade espanhola e coloca-se na posição de não-beligerante, o que, diplomaticamente, representa um salto qualitativo grande numa eventual aliança com os nazis.
Por isso o comerciante luxemburguês, que já dera provas de saber jogar na antecipação, quer partir para os Estados Unidos, desiderato que é comum à maioria dos refugiados.
Os Ermann partem na Páscoa de 1942. Para a pequena Renée a vida é uma constante aventura, passada em comboios, navios, hotéis. A família vai primeiro para a Jamaica (à época território britânico) onde vive quase dois anos. Segue-se Cuba, onde também permanecem uma temporada. E finalmente Nova Iorque.
O regresso ao Luxemburgo só se dá depois do fim da guerra, em 1945. Na altura, já adolescente, Renée Ermann tem noção do que aconteceu. Grande parte dos horrores dos campos de extermínio só serão conhecidos nos meses e anos seguintes. Só então se dará conta de como escapou por uma unha negra, naquela madrugada de 10 de Maio, de ter morrido num campo de concentração.
Nesta altura a jovem fala cinco línguas: luxemburguês, francês, alemão (a mãe era alemã), inglês, português e espanhol. Mas já não regressa à escola.
“Era demasiado velha para voltar para a escola e continuar os estudos e por isso fui trabalhar para a loja da minha tia”, conta. Uma loja de chapéus. Um comércio raro hoje, mas comum naquela época.
A sua vida no Luxemburgo acaba com o casamento. André Karas, um jovem francês de descendência judia, que vive na cidade fronteiriça de Metz, vem um dia visitar os tios de Renée e toma-se de amores pela jovem luxemburguesa. Casam em 1952 e vão viver para França. Em 2007, já reformados, decidem viver no Grão Ducado e Renée regressa, assim, ao seu país, a um apartamento a poucos metros da casa dos pais, e onde agora vive o seu filho Gérard Karas. O casal tem dois filhos, quatros netos e dois bisnetos, devendo, na altura em que este texto for publicado já ter nascido o terceiro bisneto.
André Karas, o marido de Renée, brinca: “estou casado há 63 anos, hem! E sempre com a mesma mulher”. E depois, com um ar mais sério: “oiça, não é para ser simpático, mas sempre que a minha mulher fala de Portugal resume tudo a uma só palavra: formidável!”