Uma viagem no espaço e no tempo, numa jornada de Lisboa às Caldas em 1817

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Uma notícia da Gazeta sobre um livro de 1817 despertou a aventura de recriar este trajeto nos nossos dias

Gazeta das Caldas fez esta semana uma viagem no espaço e no tempo, recriando a forma como se viajava entre Lisboa e as Caldas no ano de 1817, ou seja, há 208 anos. À “boleia” de um testemunho anónimo, manuscrito no início do séc. XIX, que foi notícia nas páginas do nosso jornal em 1931, partimos à aventura de fazer este percurso, 200 anos depois, num veículo diferente: em vez de um cavalo, somos levados por um carro que tem um motor com a força de… mais de 150 cavalos. Fomos, no ano em que se comemoram 100 anos da vitória do caldense José Tanganho na Volta a Portugal a Cavalo, em busca da História e dos vestígios que nos permitem recuperar a memória destes tempos, num exercício que possibilita perceber as mudanças e diferenças, a ocupação do território, a evolução na mobilidade e os avanços na tecnologia.
“Jornada interessante e jocoseria em q[ue] se combatem de um modo novo e agradável o vício da avareza e outros. Tudo descoberto em uma jornada às Caldas. Por um desejoso do proveito do próximo” é o título da obra, de autor anónimo, conforme referido. Publicada pela Imprensa Régia em 1819, a obra explica-nos como se viajava então entre a capital e a cidade termal. Trata-se de um diário de viagem de uma pessoa que, presume a Gazeta cerca de um século depois, seria um padre, que estaria doente e vinha às Caldas tratar-se.
A história começa com o catálogo de um alfarrabista onde aparecia este título, que chamou a atenção da Gazeta de então. “Procuramos obter o exemplar, o que outro curioso antes de nós conseguiu, não o cedendo, mas consentindo amavelmente em no-lo deixar ler. E como nos dá algumas notas curiosas, aqui as deixamos arquivadas”, lê-se.
O livro, que hoje conseguimos encontrar na Torre do Tombo, está escrito “em forma dialogada, é um pretexto para considerações morais e de crítica a costumes e abusos mais evidentes da epoca”, conta a Gazeta, notando que o autor, “porventura um padre, põe na bôca do Môço Recoveiro, que supõe ser pessoa educada, obrigada áquele mister pela necessidade, toda a parte doutrinária do livro, sem excluir a ironia e um fino espírito de observação. Passam-se durante a jornada várias scenas cómicas que ainda agora fazem sorrir o leitor. Critica-se a avareza, o abuso do alcool, a má divisão das riquezas, a fidalguia soberba, os abusos de certos frades e sacerdotes, a impiedade do pôvo que não sabe distinguir os bons dos maus, a ignorancia, criticam-se os estalajadeiros, certos hospedes mal pagantes, as creadas das estalagens, a ira desordenada e a maledicencia, o excesso nas festas, mesmo religiosas, etc.”.
A aventura inclui, além do alfaiate doente, “do moço recoveiro e do seu ajudante, um estalajadeiro e a sua creada, uma velha e um rapaz engeitado, endiabrado, dando ao dialogo por vezes muita viveza e mesmo espírito” e, “para os caldenses tem o livro o mérito de nos descrever como viajava em 1817 de Lisboa para as Caldas um doente que viesse a cavalo. É um quadro de costumes e linguagem popular da época e um compendio, seguindo o critério de que ridendo castigat mores, de moral pratica que em muitos pontos nada perdeu de actualidade”.
O jornal nota que “sendo o livro impresso em 1817 e referindo-se ele já ao combate da Roliça de 1808, mostra-nos como tanta gente fazia naquela época a viagem de Lisboa ás Caldas, antes dos automóveis, dos comboios e até da mala-posta”. É de notar, ainda assim, a relatividade da expressão “tanta gente”, dado que naqueles tempos a mobilidade era muito reduzida.
A viagem é feita a cavalo num macho e “passam por Santo Antonio do Tojal, á vista duns arcos, pelos moinhos da Agonia, Ermida de Santa Anna e Loures, onde há uma paragem para o doente visitar um compadre, em casa de quem come com apetite devorador, e que lhe empresta «uma espada que não serve há dez anos, por amor das bruxas», que no caso são representadas pelo Môço recoveiro que lhe parece «testo e pimpão», de modo a meter-lhe medo com ela, sendo preciso”, conta-se.
Guiados hoje por um mapa das estradas de Portugal de 1808, um de 1820 e o GPS com as vias atuais, é, precisamente, no aqueduto de Santo Antão de Tojal que, nos nossos dias, fazemos a primeira paragem na busca dos vestígios desta viagem, o que nos leva a questionar o ponto de partida. Sabemos que vinham de casa, em Lisboa, mas não exatamente de onde. Sabemos também que seguiram em direção a Loures.
Em Santo Antão do Tojal, o aqueduto teria dois quilómetros e leva-nos à Praça Monumental, onde apreciamos o Palácio-Fonte, a Igreja Matriz, o Palácio dos Arcebispos, num conjunto projetado por António Canevari. O conjunto inclui ainda um chafariz.
Partimos novamente, em busca da referida ermida de Santa Anna, que atualmente já não existe. Perto do local onde esta estaria situada (em frente ao sítio onde hoje estão os CTT) encontramos uma réplica de uma pedra da capela que está preservada no Museu Municipal de Loures. Fazemos nova paragem neste ponto, onde a equipa nos ajuda a conhecer mais sobre a história deste território e os caminhos e vias do antigamente e da atualidade.
Passamos pelo centro de Loures, em frente à Câmara Municipal e seguimos em direção a Norte, tal como o fizeram os personagens da história. Eles iam “á estalagem da Cabeça, que tem o nome do outeiro onde está, que se vê da Serra da Amoreira. Para nos caraterisar a estalagem, o A. fala-nos duma enfiada de argolas num pau, á frente da casa, para se segurarem os machos e eles comerem a ração. Perto da estalagem havia uma fonte de agua férrea que o doente bebe, dizendo que lhe fez maravilhas, abrindo-lhe o apetite”.
Esse ponto foi o primeiro onde pernoitaram. Não nos foi, ainda, possível localizar esta antiga estalagem, mas fizemos esse mesmo caminho, seguindo “pela Enchara, á vista duma vinha grande, que dá ao Môço motivo para largas considerações sobre a igualdade e a propriedade, passando depois por Mata da Guerra, indo pernoitar numa estalagem á vista de Runa. Na manhã seguinte partiram, passaram numa ponte, junto de terrenos férteis, cheios de vinhas carregadas, junto do Asilo da Princesa; passaram á Quinta das Lapas, Abrunheira, Quinta da Bugalheira, num descampado, Casal de S. Gião, em cuja mata encontraram dois lobos, que afugentaram só depois de irem pedir dois cães ao casal”. Desta fase do caminho, seguimos pela Enxara dos Cavaleiros, vimos vinhas, mas não a Mata da Guerra. Em Runa, o asilo militar ainda hoje lá está em frente à desprezada estação ferroviária. A Quinta das Lapas é outro testemunho que permanece, servindo nos nossos dias uma comunidade terapêutica. Passamos pela Abrunheira e pela Quinta da Bugalheira. Não localizámos, ainda assim, o Casal de S. Gião neste troço do percurso, tendo passado por uma quinta de São Gião, mas perto de Cabeço de Montachique. Evitámos, assim, os lobos…
A seguir, conta o jornal em 1931, “passaram no Casal dos Ferreiros, indo dormir na Estalagem dos Fornos, de onde partem no dia seguinte depois de almoçarem, seguindo d’ahi direitos aos campos da Roliça, onde entraram depois de passarem um ribeiro, ao fim de uma calçada. Ahi o Môço recorda um seu conhecido «que de madrugada na cama ouvia zunir do telhado as ballas dos Exercitos de huma parte para outra». Fala da Columbeira, em cujos desfiladeiros se deu a batalha. Da Columbeira seguiram os viajantes para a Roliça e Obidos, onde deram de beber aos machos no tanque do chafariz depois de várias peripécias. Falam das muralhas que cercam a vila de Obidos, que tinha três freguesias intramuros; visitaram a Igreja do Senhor da Pedra, referindo-se á imagem do Senhor Crucificado, esculpida n’huma pedra, posto que grosseiramente, que aparecera num valado e em memoria da qual a Igreja foi construída, Falam da Romaria da Nazaré que, apesar de antiga, nunca diminuiu de concorrência, como sucedia com outras romarias”
Em 2025 não encontrámos o Casal dos Ferreiros, mas pela localização estimada, cremos que possa estar associado à Moita dos Ferreiros, no concelho da Lourinhã. A Estalagem dos Fornos também não encontrámos, mas os campos da Roliça e da Columbeira, o chafariz à entrada de Óbidos e a igreja do Senhor da Pedra, já no caminho para as Caldas, sim, permanecem como testemunhas desta história.
“Partem, finalmente, para as Caldas, pela fresca, tendo levado no caminho três dias, o que o ajudante de recoveiro diz que nunca lhe havia sucedido”, lê-se. No nosso caso, a viagem durou muito menos. Seriam, sem paragens, cerca de três horas de caminho. “Ao chegarem á entrada das Caldas apeiam-se e despedem-se junto da vila, onde corria a agua dos banhos, que faz dizer ao doente que sente um fedor péssimo». -«He da agua dos banhos que por ali corre- responde-lhe um dos companheiros. -Ela he azulada…. – «He côr do céo: isto quer dizer que esta agua he celeste nos seus efeitos». – «Celeste, com tão mau cheiro ?» «Tudo neste mundo he assim». Seguem-se mais umas considerações e com elas acaba o livro”.
A Gazeta, em 1931, termina a dizer que “desconhecemos o seu autor, esperando que alguem nos possa esclarecer sobre o caso”. Atualmente, já havendo a possibilidade de ler esta obra, gratuitamente, novas pistas quanto ao autor poderão surgir.
Depois da viagem salienta-se que as estradas e caminhos de outrora deram lugar a outras, maiores, mais largas e alcatroadas. Os locais desenvolveram-se, alguns desenfreadamente, outros menos, mas a paisagem mudou radicalmente. É possível, ainda assim, reproduzir nos nossos dias esta aventureira viagem, que a Gazeta – que este ano comemora o seu centenário – conseguiu recriar, mais de dois séculos depois. ■

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