“Morte e Vida Severina” – Uma aventura de teatro juvenil há 40 anos

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Gazeta das Caldas em colaboração com a Escola Superior das Artes e Design, especialmente o seu curso de Teatro, vão organizar no dia 19 de Abril, às 18h30, uma sessão destinada a recordar uma experiência teatral levada a cabo em 1972 na então Escola Industrial e Comercial das Caldas da Rainha (hoje Secundária Bordalo Pinheiro) e que transitou depois para o CCC (Conjunto Cénico Caldense).
Esta sessão recebeu o “apoio cultural” da Fundação Joaquim Nabuco, sediada no Recife, que funciona sob a égide do Ministério Federal da Educação e da Presidência da República brasileira, que autorizou expressamente a difusão do filme em banda desenhada intitulado Morte e Vida Severina e que foi concebida pelo designer Miguel Falcão.
Na época um grupo de finalistas, juntamente com alguns professores, conseguiu encenar a peça do poeta João Cabral de Melo Neto, intitulada “Morte e Vida Severina”, que alguns anos antes havia sido representada em Lisboa, Coimbra e Porto pelo Grupo do Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com música de Chico Buarque da Holanda. Este espectáculo tinha-se tornado num sucesso na época, tendo inclusive recebido um prémio no festival universitário de Nancy (França).
O encenador da peça foi Manuel Gil, que tinha assistido à apresentação da peça pelo grupo brasileiro em Lisboa, mas fazendo uma encenação adaptada à realidade portuguesa.
Mas este espectáculo não deixou indiferente as forças do regime. A peça teve de ser transferida para o CCC e a própria Pide/DGS acompanhou a peça, tendo produzido um relatório sobre a sua apresentação em Évora.

Perfazem este ano quatro décadas que um grupo de finalistas da Escola Industrial e Comercial (hoje Secundária Bordalo Pinheiro) das Caldas da Rainha, juntamente com alguns professores, de forma voluntária e sem qualquer ligação curricular, se lançaram num projecto cénico que os levaria a várias partes do país e também (veio a saber-se mais tarde) à perseguição por parte da então DGS (Direcção Geral de Segurança, ex-PIDE).
Para esse projecto teatral foi escolhida o poema Morte e Vida Severina, do brasileiro João Cabral de Melo Neto (que viria a ser cônsul do Brasil em Portugal durante vários anos depois do 25 de Abril). Aquela obra foi transformada em peça teatral pelo grupo de Teatro da Universidade de S. Paulo e apresentado na Europa no início dos anos 70 com música de Chico Buarque da Holanda.
“Morte e Vida Severina” ou Auto de Natal Pernambucano “é a narrativa em versos da viagem que o retirante Severino faz de sua terra — a serra da Costela, nos limites da Paraíba — até Recife, seguindo o curso do rio Capibaribe”.
Este poema-peça de teatro é hoje considerado um dos 100 livros essenciais da literatura brasileira, juntamente com “Gabriela, Cravo e Canela” e “Terras do Sem Fim”, de Jorge Amado, “O Guarani”, de José de Alencar, “Macunaíma”, de Mário de Andrade, “Sermões” do Padre António Vieira, e “Nova Antologia Poética”, de Vinícius de Moaraes.
No Roteiro de Leitura que é hoje distribuído nalgumas escolas brasileiras, explica-se que Vida e Morte Severina é “chamada de auto pelo próprio autor, assemelhando-se às composições de caráter religioso ou moral dos séculos XV e XVI, cuja representação teve origem nos Presépios, encenações do nascimento de Cristo”, típicas no Estado brasileiro de Pernambuco.
A história roda em torno da personagem de um pobre trabalhador que tem de percorrer as terras do sertão até ao mar à procura de comida e vai contactar com toda a realidade de miséria e pobreza que rodeia aquelas gentes do nordeste brasileiro.
Como se diz no texto escolar de autoria de Carlos Rogério D. Barr “A morte ocasionada pelas injustiças sociais — de velhice antes dos trinta e de fome um pouco por dia — ou pela violência do sertão — de emboscada antes dos vinte — é a mesma para todos os Severinos, fadados a ela desde o dia em que nascem. Para a compreensão do texto, é essencial a compreensão do binómio morte/vida: repare que a narrativa, iniciada com um comentário sobre a morte comum a todos os retirantes do sertão, é terminada com um nascimento — a explosão da vida, mesmo que Severina.”Naturalmente que a representação deste texto em Portugal no início dos anos 70 não era ingénua, e a própria polícia política do regime assim o percebeu. No relatório que fez da representação  deste auto no Festival de Teatro Amador de Évora – documento que faz parte dos arquivos da Pide/DGS na Torre do Tombo – o agente Tarouca do Posto da DGS de Évora diz ao seu Director Geral em Lisboa, que a “representação decorreu com normalidade” e que fazia parte “do II Festival de Teatro Amador e que é promovido pelo grupo cénico da Sociedade Operária de Instrução e Recreio “Joaquim António de Aguiar” e que a ele tinha assistido mais de meio milhar de pessoas, constata que a história se passa no “Nordeste do Brasil, por alguns indivíduos naturais do centro daquele pais, que emigraram para o Nordeste Brasileiro à procura de trabalho e duma nova vida”.
E continua o dito agente da DGS: “Todavia, ao chegarem lá, certificam-se que a vida de fome, privação e de miséria continua ali também, por virtude dos coronéis (latifundiários) explorarem ao máximo os trabalhadores e obrigarem-nos a uma obediência cega, vexando-os e exercendo sobre eles todo o seu poder como senhores da terra”.
Depois desta interpretação do texto, o agente da DGS continua dizendo que “os artistas caldenses interpretaram, como melhor puderam, essa vida de trabalho, fome, privação, miséria, morte e vida (severina) desses trabalhadores, bem como a forma como eles eram tratados e subjugados pelos tais senhores “coronéis”.
Depois da sua análise ao texto e à representação, o agente conclui fazendo o seu trabalho bufo: “Mais informo V. Exa. [o dito Director Geral da DGS] de que, em dada altura, um dos apresentadores da referida peça teatral disse que escolheram a peça “Morte e Vida Severina”, para estreia em Évora, por virtude da mesma ter algo de comum com a vida alentejana. Que o senhor coronel do Brasil, não era mais nem menos do que o latifundiário do Alentejo; e que, quanto à fome, não era preciso ir muito longe, pois mesmo ali junto dele, havia fome”.
Estávamos no dia 23 de Outubro de 1972. Faltavam 552 dias para a queda da ditadura já Caetanista, e o agente não escondia na carta que encimava o retatório que “a peça em questão despertou grande interesse, principalmente junto da juventude eborense que, só por si, constituiu 80% dos espectadores, calculados em pouco mais de um milhar de pessoas.”

jlas

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