“A cutelaria do concelho nasceu nas Relvas e o nosso rancho representa essa tradição”
São o único rancho da freguesia de Santa Catarina e também o único do concelho que representa a arte da cutelaria. O nome que adoptaram – “Vale Choupinho” – é uma homenagem ao lugar nas Relvas onde antigamente a população se juntava para os bailaricos e que assim se designa devido à abundância de choupos e oliveiras no local.
Têm 29 anos e surgiram para não deixar morrer os costumes da sua freguesia, uma vez que o único rancho folclórico que antes existiu em Santa Catarina viria a acabar.
Hoje contam com 35 elementos, dos cinco aos 82 anos, e no seu currículo incluem duas actuações fora do país: à Madeira e à Polónia.
Nas Relvas, quatro em cada cinco casas tinha uma oficina de cutelaria. É disso que se lembra José Luís, 61 anos, um dos elementos mais antigos do rancho e cujo avô era mestre navalheiro. O irmão João confirma e acrescenta que Relvas foi o berço da cutelaria no concelho das Caldas.
“Aqui surgiram as primeiras oficinas e mesmo as grandes empresas que actualmente estão na Benedita têm pessoas com origens em Relvas e nas terras à volta”, diz João Luís, explicando que antigamente a agricultura apenas servia para assegurar a subsistência das famílias, que encontravam no fabrico e venda das facas uma oportunidade para trazerem mais dinheiro para casa. Além disso, os Invernos rigorosos nem sempre permitiam que as pessoas saíssem para o campo todos os dias, então montavam-se pequenas oficinas em casa onde os homens pudessem trabalhar na arte da cutelaria. As peças eram depois distribuídas por toda a região, armazenadas num alforge e levadas de terra em terra com os mestres montados em burros.
Tantos anos depois, o rancho “Vale Choupinho” faz questão de incluir esta tradição nas suas actuações. Fazem-no com orgulho, não só através do traje típico de cutileiro – em que o homem veste umas calças de zuarte subidas até ao peito – como dos utensílios que levam para palco (as navalhas artesanais e roda de amolador que era usada para afiar as facas são alguns exemplos).
Outra actividade que em tempos foi uma das mais importantes para o desenvolvimento económico de Santa Catarina era a criação de gado bovino. De tal forma que um dos elementos do rancho representa precisamente o dono da herdade onde se criava o gado. Este costumava levar uma flauta de cana para os seus percursos de pastoreio, que também servia de companhia aos outros homens que trabalhavam no campo e assim se entretinham com a sua melodia.
No conjunto de trajes do rancho das Relvas entra igualmente o vindimeiro, o cavador, a ceifeira e a aguadeira. Só a partir de 1997 é que o grupo passou a actuar com fatos etnográficos, antes subiam ao palco com roupas que eram muito semelhantes à maioria dos outros ranchos do concelho. O homem vestia calça preta, camisa branca e colete preto, as mulheres saias pretas riscadas a vermelho, uma blusa e meias brancas subidas até ao joelho. Na altura, estes trajes eram inspirados nas marchas populares.
Em 1988, quando o rancho foi criado, o objectivo era não deixar morrer nem folclore nem os costumes mais tradicionais da freguesia. É que o único grupo que existia em Santa Catarina tinha acabado, pelo que era preciso formar outro que lhe desse continuidade. Foi em Relvas que um conjunto de pessoas – muitas delas pertencentes ao outro rancho – fundaram o “Vale Choupinho”. O nome escolhido é uma homenagem ao lugar nas Relvas onde antigamente a população se juntava para os bailes e que se chama Vale Choupinho por ser um local rodeado de choupos.
Embora a Associação de Desenvolvimento de Relvas também tinha sido criada em 1988, durante muitos anos o rancho ensaiou em casas particulares até a sede ter condições para o efeito. Ao contrário do que se verifica noutras localidades – em que primeiro surgiu a vontade de construir um salão de festas na aldeia e só depois a ideia de criar um grupo de folclore para animar aquele espaço – nas Relvas deu-se precisamente o contrário. A colectividade só nasceu graças ao facto de existir um rancho.
Actualmente, embora o rancho integre a associação, funciona com um sistema de contas à parte, pelo que as duas entidades trabalham de forma independente. “Tomámos essa opção porque sempre que era preciso dinheiro para o rancho diziam-nos que não havia, quando a verdade é que nós também contribuíamos para gerar riqueza na associação”, explica José Luís, que foi um dos fundadores da colectividade.
“OS FESTIVAIS EXISTEM GRAÇAS ÀS PESSOAS DA TERRA”
É sempre em Maio que se realiza o festival de folclore nas Relvas, uma festa onde também se celebra o aniversário do rancho. É comum que o grupo organize um peditório pela localidade, angariando não só donativos como iguarias que as pessoas da terra confeccionam de propósito para o evento. Com umas sobremesas ali, uns salgadinhos acolá, o resultado é uma mesa farta semelhante à de um casamento.
Vera Machado, actual responsável do rancho, diz mesmo que “o festival subsiste principalmente graças à ajuda da população local”, mas lamenta que as pessoas depois não saiam de casa para assistir às actuações de folclore. “Acredito que não o façam porque têm pouco à vontade, mas da nossa parte seriam muito bem vindas”, acrescenta.
Vera é uma jovem, tem 34 anos, mas faz parte do rancho desde pequenina. Na altura, tinha cinco anos, ainda existia o rancho infantil onde se lembra de ter dado os primeiros passos de folclore. “Depois nós fomos crescendo e resistiu apenas o grupo adulto, aquele que existe hoje em dia”, explica a ensaiadora, realçando que hoje em dia uma das principais dificuldades que o rancho enfrenta é precisamente a falta de pares.
É difícil manter as pessoas, seja porque vão estudar fora, se casam, constituem famílias ou emigram. “Quem actualmente pertence a um grupo de folclore, fá-lo por carolice, amor à camisola, porque apesar dos bons momentos, isto também dá muito trabalho e implica muitos sacrifícios da nossa parte”, diz Vera Machado, notando que a falta de elementos se agrava naquelas actuações que são mais longe e para as quais é necessário perder um dia inteiro.
Mas se há elementos que pertencem ao grupo desde o início, essa lealdade também se explica.
“Ficam não só porque gostam de folclore, mas também porque o ambiente no rancho é muito bom. Somos uma espécie de família maluca que às vezes nem se apercebe de como um ensaio pode mesmo funcionar como uma terapia”, realça Vera Machado, que considera que há elementos do grupo que lhe são mais próximos do que alguns membros da sua própria família.
João Luís confirma e acrescenta que há momentos que se tornam inesquecíveis. Como exemplo recorda a vez em que o grupo foi actuar à Polónia e estava muito nervoso durante o ensaio no anfiteatro. “Achei que aquele ambiente estava demasiado tenso, então pedi ao nosso acordeonista que fosse ao piano tocar o ‘Fur Elise’. Assim que a música começa a tocar peguei numas fitinhas e fingi que era uma bailarina. Foi o suficiente para pôr toda a gente a rir e para quebrar o gelo”, conta João Luís.
Não só a viagem à Polónia como à Madeira marcaram o grupo. Todas as vezes em que o rancho sai de autocarro para actuar longe da aldeia, isso representa para a maioria dos seus elementos uma oportunidade única de descobrirem locais que de outra forma nunca o fariam.
Mas todos os momentos vividos em grupo contribuem para que “nos tornemos pessoas melhores”, sublinha Vera Machado. “Encontramos aqui valores que nos moldam: falo da amizade, da fraternidade, da gratidão, da responsabilidade e do espírito de família”, refere, acrescentando que nos mais jovens o rancho também contribui para lhes ensinar que antigamente não era preciso muito aparato para as pessoas fazerem a festa.
“Eles vivem muito orientados para o futuro, mas não podem esquecer as suas raízes nem que há uns anos a maioria das crianças da idades deles não podia brincar à vontade porque acabava a escola e eram obrigados a ajudar os pais nos campos”, explica.
29 anos de história…
18 de Maio de 1988: É formado o Rancho Folclórico e Etnográfico “Vale do Choupinho”. Desde então o grupo organiza sempre o seu festival de folclore próximo desta data.
1997: O Rancho actua pela primeira vez fora do continente, na ilha da Madeira.
2005: O Rancho actua pela primeira vez fora do território Português, em Sierpc (Polónia)