Um combate eficaz à violência doméstica passa por condenar efectivamente o agressor a pena de prisão em vez de pena suspensa, defende Rita Montez, autora do livro “Vidas Suspensas”, que foi apresentado no sábado, 27 de Outubro, na Associação Coração com Vida. A sala encheu-se para ouvir falar sobre este drama social que, segundo a autora, “é transversal a toda a sociedade”. Contudo, o sistema judicial não tem em conta o quadro da violência doméstica, “proferindo decisões a desfavor das vítimas e colocando os filhos à guarda dos agressores”.
“Quando começarem a haver penas efectivas em vez de penas suspensas, os casos de violência doméstica vão diminuir de forma significativa”. Palavras da jornalista Rita Montez durante a apresentação do livro Vidas Suspensas, obra editada pela Associação Portuguesa das Mulheres Juristas. Apesar de todas as campanhas políticas e legislação ser a favor da protecção das vítimas, o que se constata nos tribunais sobre a regulação do poder paternal “acaba por ser contraproducente e até contrário a este espírito protector”, disse a autora deste trabalho que reúne retratos de 12 mulheres, vítimas de violência domestica, oriundas de várias regiões do país, de meios urbanos e rurais, e de todos os estratos sociais.
“Temos operárias, mas também juízas e médicas”, contou a jornalista, que obteve os seus testemunhos sob anonimato, mas mesmo assim “tivemos entrevistas marcadas onde as mulheres não apareceram”. Por duas razões: “por terem medo” ou porque “lhes era muito difícil reviver as situações em que sofreram coacção física e psicológica”.
Um dos primeiros problemas destas mães que sofrem de violência doméstica é que “são obrigadas a fugir com os seus filhos”. Muitas perdem as casas, têm que sair dos seus meios e os filhos são obrigados a mudar de escola. Nalguns casos vão para casas-abrigo “depois de já terem passado muitos anos de sofrimento em casa”, contou Rita Montez.
Quando avançam com os processos judiciais contra os agressores, estes usam certos direitos do quadro das suas responsabilidades parentais “para manter a perseguição e violência psicológica sobre as vítimas”, contou a autora que registou inúmeros casos de mulheres que fugiram e que foram perseguidas pelos ex-maridos.
Esfaqueada à frente dos filhos
Entre os casos retratados no livro, há uma mulher que foi esfaqueada no meio da rua em frente aos filhos pelo marido. Sobreviveu às 10 facadas, mas o tribunal não considerou que tivesse havido tentativa de homicídio. “E há um juiz que obriga as crianças que assistiram a tudo a visitar quinzenalmente o pai na prisão!”, disse Rita Montez, acrescentando que aquelas crianças “sofreram horrores e foi muito traumático”. Esta mulher teve ajudas e conseguiu mais tarde suspender as visitas. “Casos destes espelham a insensibilidade e a falta de preparação que há do sistema judicial para estas situações onde o progenitor mantém todos os direitos independentemente do que aconteceu”, disse a autora.
Rita Montez preocupa-se igualmente com as crianças que assistem às situações de violência e “não há resposta das autoridades para as proteger”.
Obrigada a dormir no carro
Uma outra mulher que testemunhou para o livro, durante muitos anos era expulsa de casa à noite, obrigada a dormir dentro do carro na garagem do condomínio. De manhã voltava para que os filhos não se apercebessem que a mãe não podia dormir na sua própria casa porque o pai não deixava. Ela fugiu com os filhos e o ex-marido interpôs um processo de alienação parental e conseguiu “que um juiz lhe desse uma das guardas das crianças”. Ou seja, separou os irmãos tendo entregue um deles ao agressor.
Situações destas “acontecem cada vez mais”, disse a jornalista, acrescentando que quando a obra foi apresentada nas delegações da Ordem dos Advogados de norte a sul do país constataram que quem trabalha no sistema judicial “conhece vários casos destes!”. Rita Montez questiona-se como é possível o sistema judicial ter conhecimento destes casos “e pura e simplesmente não se fazer nada”. A jornalista constatou que ainda há muita vergonha e preconceito em volta deste assunto. “Já bem basta as marcas que ficam, mesmo em quem consegue ultrapassar e seguir com a sua vida”, comentou a autoras. É, por isso, urgente uma mudança de mentalidade e que haja uma forma efectiva “de obrigar os agressores a serem afastados das mulheres”.
Casos julgados, agressores condenados
Vidas Suspensas cinge-se a casos que já foram julgados e em que os agressores foram condenados. A jornalista é coautora desta obra com o fotojornalista Hugo Correia que mesmo mantendo o anonimato das vítimas, “conseguiu retratos belíssimos onde apenas os olhos falam…”.
Rita Montez e Hugo Correia eram amigos e colegas de profissão há mais de 20 anos. “Ele era uma pessoa de rara sensibilidade que se orgulhava muitos deste trabalho”, contou a autora. Hugo Correia morreu em 2016, após a feitura deste trabalho, vítima de uma infecção pulmonar.
Para a autora deste livro-reportagem é preciso continuar a dar voz a estes casos. Ainda hoje, passados dois anos, continua a receber mensagens de mulheres a agradecer o facto de denunciar a situação e a contar os seus casos.
“Estou grata por ter feito este livro. Valeu a pena”, disse a autora de Vidas Suspensas, livro que já se encontra na biblioteca da Comissão Europeia.
Para que a violência tenha um rosto
Sílvia Abreu, 42 anos, deixou um testemunho na primeira pessoa na sessão de apresentação do livro.
A viver nas Caldas desde 2000 contou que “a violência faz parte da minha vida desde sempre… como filha, esposa e mãe”.
Separada há cinco anos do pai dos filhos, Sílvia Abreu explicou que muitas vezes sentiu que a sua vida esteve em suspenso.
“Nós mulheres, somos agredidas, saímos de casa, tememos pelas nossas vidas e pela saúde emocional e física dos nossos filhos, que vivem a violência exercida pelo pai sobre a mãe e depois sobre eles próprios”, referiu. Na sua opinião, são as mulheres que têm que mudar as suas vidas e garantiu aos presentes que as coisas não mudam “enquanto nós não deixarmos de ter medo e pedirmos ajuda!”.
Segundo Sílvia Abreu, as vítimas de violência vivem durante anos a fio “com o medo, culpa e vergonha”. Na sua opinião, o sistema também “é agressor e compactua com o agressor”, porque a lei existe, mas quem a aplica “não possui formação, tem preconceitos e faz juízos de valor… “. As entidades que deveriam proteger, “culpam e amedrontam, tratando as mulheres e as crianças como criminosas”.
O seu testemunho foi dado “para que a violência tenha rosto e porque eu não quero que o meu filho e a minha filha vivam o que eu vivi, para que algo mude e eles deixem de sofrer”. Como tal, Sílvia Abreu considera que é necessário que haja mudança na mentalidade na sociedade e no sistema. “Precisamos unir esforços e erguer a nossa voz”, disse a testemunha, que pretende ajudar outras mulheres através do seu exemplo. “Quero ajudar os jovens a perceber que no amor não cabe a violência. Amor é respeito e carinho. Temos direito à vida, temos direito à nossa liberdade!”.