Esta é a história de um empreendimento que nunca foi legal, mas foi construído. Que nunca teve licenças, mas foi vendido. Que não foi acabado nem tem licença de habitabilidade, mas onde moram pessoas. Fica em Salir do Porto, chama-se empreendimento do Caramujo e é um monte de problemas que se arrasta há 13 anos.
Tudo começou em Julho de 2003, quando o empresário da Marinha Grande, Diamantino Duarte, quis construir um empreendimento em Salir do Porto, mas sem ter o montante necessário para o edificar. Fez um contrato promessa com o proprietário do terreno pretendido, viu o projecto ser aprovado na Câmara (mas não o seu licenciamento) e, à medida que ia vendendo futuras casas, ia construindo nesse mesmo terreno (ainda em nome do primeiro proprietário), com o dinheiro dos sinais e prestações dos clientes.
Como nunca chegou a ter licença de construção, arranjou a luz eléctrica, que foi contratada a uma vendedora ambulante que tinha uma caixa da rede para abastecer o seu negócio. Tratou também de arranjar água, através de um poço onde colocou uma bomba eléctrica. E assim, sem qualquer licença, começou a construir casas: 15 apartamentos e duas vivendas.
Segundo Diamantino Duarte, por volta de 2003 ou 2004, um engenheiro da Câmara ter-lhe-á dito que, tendo o projecto aprovado, podia avançar ao nível de terreno, enquanto tratava do licenciamento.
Mas o empresário fez mais do que movimentações de terrenos e começou mesmo a erguer casas. E a vendê-las.
A obra foi embargada três vezes pela Câmara das Caldas: a primeira em meados de 2004, a segunda em Agosto de 2008 e a terceira em Agosto de 2011. O empresário diz que nunca assinou o terceiro embargo.
Segundo Diamantino Duarte, em Outubro de 2011, o advogado Fernando Silva, em representação de quatro clientes que haviam comprado moradias no dito empreendimento, “travou duas prestações de dois clientes no valor total de 70 mil euros”. O empresário, que se diz burlado por Fernando Silva, afirmou que “o advogado montou uma cilada às minhas firmas para as deitar abaixo”.
Por esta altura, Diamantino Duarte tinha duas empresas: Duarte Lda. e Magnijump. As duas foram à falência.
Contactado pela Gazeta das Caldas o advogado Fernando Silva negou as acusações do empresário.
O nosso jornal soube que, apesar do valor que levou à insolvência ser de 15 e 25 mil euros (em cada uma das empresas), na falência da Magnijump eram reclamados por vários credores cerca de 1,5 milhões de euros e na da Duarte Lda. mais de 1 milhão.
Para além disso, a insolvência da Magnijump foi considerada culposa pelo Tribunal da Marinha Grande. Diamantino Duarte foi considerado o responsável da falência e inibido de qualquer actividade comercial por três anos. O empresário afirmou que neste processo “há créditos reclamados à Magnijump que deveriam ter sido pedidos à Duarte Lda”, já que os contratos estavam, segundo o mesmo, em nome da segunda empresa. Ambas, contudo, eram empresas suas.
Diamantino Duarte afirma que depois da sua falência “um grupo de moradores liderado por Fernando Silva comprou o terreno e manda naquilo”. O empresário diz que foi “expulso, tal como outros compradores, das casas que tínhamos no empreendimento e todas as fechaduras foram mudadas”.
Os moradores juntaram-se entretanto numa cooperativa intitulada de Cuph – Travessa da Ponte, CRL.
Gazeta das Caldas contactou a direcção da Cooperativa, que explicou que em 2004 as famílias que ali estão representadas compraram uma casa cada uma, pagando 50% do valor como sinal, e acordando com o empresário pagar o restante no acto da escritura.
“Cedo nos apercebemos que o empreendimento era ilegal”, contou João Gonçalves, da direcção da cooperativa, apontando comportamentos comerciais pouco correctos ao empresário Diamantino Duarte que, segundo os mesmos, ao ver-se confrontado com a falta de dinheiro, terá exigido mais aos moradores para poder concluir as obras.
Esta situação ter-se-á arrastado até a empresa ficar insolvente. “Quando percebemos que estávamos em risco de perder tudo o que lá tínhamos, decidimos adquirir o terreno por cerca de 200 mil euros”, contaram.
Os moradores queixam-se ainda de ameaças de morte por parte do empresário. Diamantino Duarte foi condenado pelo Tribunal das Caldas por três crimes de injúria, na forma continuada e dois crimes de ameaça agravada, ambos contra moradores.
Outro processo ditou a obrigação do empresário de reconhecer a propriedade daquele espaço e do seu uso, gozo e fruição à cooperativa de moradores.
A mudança das fechaduras, segundo a direcção da cooperativa, ocorre “por segurança e com ordem do tribunal”.
Neste momento, o grupo de moradores trilha o caminho da legalização do empreendimento. “Fizemos um projecto de raiz que está em apreciação na Câmara, na fase da especialidade”, explicaram.
Diamantino Duarte questiona, no entanto, “como é possível a Câmara fornecer água e concordar que se forneça energia a um empreendimento sem licença de habitabilidade e onde ninguém tem habitação permanente?”.
A resposta encontra-se nas actas da Câmara, consultadas pelo nosso jornal. Em Fevereiro de 2013 o executivo municipal decidiu continuar a fornecer água e a concordar com o fornecimento de energia tendo em conta “a existência de fundadas razões de natureza local e sanitária”.
Vereador do PS acusa anterior gestão camarária
Em Julho de 2015, em reunião de Câmara em que se discutia a legalização do empreendimento, o vereador do PS, Rui Correia, manifestou a sua “satisfação por se estar a concluir judicialmente um processo que se caracterizou desde o princípio pela absoluta ilegalidade”. Para além disso, e numa clara alusão à gestão de Fernando Costa, afirmou que “este desfecho tem de servir de ilustração sobre como esta autarquia funcionou durante anos” e que demonstra “uma gestão profundamente negligente e incompetente dos processos de licenciamento e fiscalização camarária”.
O vereador acusava ainda “um olhar continuadamente ausente de uma fiscalização camarária, de uma junta de freguesia e de um executivo camarário” que, durante anos, permitiu a construção ilegal no concelho. “Considerar que nenhuma destas entidades sabia que o empreendimento estava a ser construído ilegalmente desafia o senso comum de qualquer munícipe”, disse, acrescentando que se atingiu “o absurdo no momento em que este empreendimento chegou a estar identificado no primeiro esboço do plano de pormenor de Salir do Porto como um exemplo da qualidade das edificações previstas nesse plano e esta informação esteve durante meses publicada no website da Câmara Municipal das Caldas que assim publicitava elogios a uma obra que nascera e permaneceria na ilegalidade durante anos. Não surpreende que os compradores não faltassem”.
Rui Correia aponta ainda a existência de outros condomínios ilegais que foram embargados naquela localidade e que hoje estão devolutos.
Tendo visitado o local e falado com os envolvidos, o vereador afirmou ter-se apercebido “do carácter grosseiramente ilícito e mesmo excêntrico de todos estes negócios. Desde documentos e licenciamentos forjados, paredes levantadas dentro de apartamentos já vendidos, reprimendas recíprocas e ameaças à integridade física dos envolvidos, tudo aconteceu”.
O empreendimento do Caramujo continua ainda a dar que falar. À sua custa há vários processos judiciais em curso. A maioria são de Diamantino Duarte contra o advogado Fernando Silva, contra os moradores, contra o administrador de insolvência e contra a Câmara, havendo, pelo menos, uma dezena de processos em tribunal relativos a este caso, que se tornou uma autêntica guerra judicial.