Anacrónicas – Voltar a casa

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Gazeta das Caldas
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Fazer um espectáculo no Parque D. Carlos é regressar a casa, ao “jardim da Casa da Cultura”, logo contíguo à nossa sala de ensaios e apresentações — fazíamos uma pausa, abríamos a porta que dava para o Parque e regressávamos ao trabalho criativo com redobrada vontade e vigor.
Por ali andámos entre 85 e 90 sempre de sala cheia — Tantas maneira de enganos, de Vicente, fez 32 duas apresentações seguidas, AQ, transformou a sala num convento, em plena RDA — sim, essa, do socialismo real fizemos Christoph Hein, um dissidente. Nesse convento gritava-se “anarquia” — tenho esse grito na cabeça, era eu que o berrava — do fundo da alma vinha — dando corpo à figura marginal de AQ. Era um grito contra o totalitarismo acéfalo de uma ordem burocrático-estalinista. Gritava-o com o amor profundo de uma ordem de paz real, de um verdadero caminho de libertação humana. Filoctetes concretizou, do mesmo modo crítico, na adaptação de Heiner Muller da peça de Sófocles, uma viagem pelas formas maquiavélicas da astúcia estalinista, denunciando a instrumentalização humana como forma de política manipulatória — nesta peça, o general Filoctetes, abandonado para morrer numa ilha isolado, era enganado pelo astuto Ulisses face a novas necessidades de regime e da sua presença. O fim do princípio, de O’Casey, trouxe a todos os que viram o espectáculo, a alegria contagiante do riso que não é de pacote, na versão emancipada de um burlesco sem limites. Enfim, em 5 anos ali fechados em laboração contínua — horas infinitas de ensaios nas pernas nessa sala desaparecida — trouxemos milhares de cidadãos e cidadãs do mundo e caldenses ao teatro e para o teatro.
O antigo casino — que voltará como hotel — foi espaço cultural. O nosso Abril projectava — no nosso teatro ainda vivíamos desse momento propulsor, em busca de um aperfeiçoamento da democracia, hoje os tempos são outros, mas o desejo de liberdade aprofundou-se, por assim dizer — outro país, cuja razão fosse, na base, a de uma partilha cultural ampla. Esse ideal assentava nas liberdades do espírito crítico estimuladas e treinadas pelas artes e pelos saberes, mundivisão alicerçada num exercício de um dia a dia da democraccia como prática de literacia artística e cultural — olhando a coisa de frente, é absolutamente claro que sem uma profunda transformação cultural, sem a instauração de uma verdadeira democracia cultural, a democracia é uma falácia, já que a qualificação dos portugueses e a literacia cultural e científica são esteios de uma tolerância real e de projecto de futuro, bases estruturantes da própria qualidade democrática da democracia. Um país não pode ter como projecto a religião da dívida nem como lei-geral o orçamento de Estado.
Com a Cidade dos Pássaros é também para essa necessidade de vida cultural e artística como forma de vida, respiração de todos, que chamamos a atenção.
E mais uma vez as formas do cómico dão forma a um teatro aberto e popular, portanto nada popularucho e anti-populista.

Fernando Mora Ramos
fernando.mora.ramos@gmail.com

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