ANNUS MIRABILIS – O azar dos pecadores

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Na semana passada, as Caldas da Rainha foram notícia nos meios de comunicação social nacionais, por uma razão dramática e lamentável: faleceram três pessoas num incêndio doméstico, provocado por uma vela deixada acesa sem os cuidados devidos. Como ensina a experiência da vida, bem traduzida nas famosas leis de Murphy, se alguma coisa puder correr mal, ela irá correr mal de certeza, a não ser que sejam tomadas as indispensáveis medidas preventivas. Foi o que aconteceu neste caso, rapidamente explicado pelos intervenientes como uma consequência do azar. Sorte teria sido não morrer ninguém ou até não haver incêndio, mas então talvez poucos tivessem pensado nela. De facto, quando não ocorre um acidente, esquece-se que isso se deve frequentemente ao facto de não se ter verificado pelo menos uma das condições do conjunto fatal que o determina, condição essa suficiente para evitá-lo.
Fica assim claro que, para se ter sorte – esta entendida como ausência de azar – não é preciso geralmente fazer muito, bastando que se faça alguma coisa. Ainda assim, o que na realidade se faz é pouco ou nada, possibilitando que o “cocktail perfeito” do azar aconteça. No incêndio das Caldas, a vela existia, não era essencial, estava acesa, colocada em sítio errado, a horas de dormir, a pessoa distraiu-se, estava só em casa, o material era muito inflamável, tentou apagar o fogo sozinha, não se lembrou do extintor, os vizinhos não foram acordados a tempo, etc., etc. Bastava que apenas um destes aspectos tivesse sido diferente para a história ser outra, ou mesmo não haver história nenhuma. Obviamente, também seria legítimo especular-se que tudo poderia ter sido pior, com mais mortes e prejuízos materiais, ardendo toda a zona histórica da cidade e por aí além, naquilo que ficaria conhecido como o “Grande Incêndio das Caldas”(!).
Aliás, foi o que provavelmente pensaram muitos portugueses, ao lerem as primeiras páginas dos jornais nacionais: as Caldas da Rainha estão a arder! O sensacionalismo procurado por alguma comunicação social, com o intuito de atrair audiências e vender mais jornais, colocou as Caldas no centro dos noticiários, pelos motivos mais negativos e deprimentes, dando até a ideia de que as responsabilidades não se limitariam à descuidada inquilina e ao inadimplente proprietário. Creio que todos preferiríamos ver as Caldas da Rainha a abrir os noticiários nacionais e internacionais por factos e iniciativas de grande valor social, cultural ou económico, pois, na verdade, os grandes incêndios sempre foram de triste memória e dos incêndiozinhos não reza a história. Mas cada um tem o calor (ou sorte) que merece, pelo menos no que de si depende, tendo os justos que pagar, infelizmente, pelos incêndios (ou azar) dos pecadores.

José Rafael Nascimento
jn.gazeta@gmail.com

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