No dia 23 de janeiro de 1905, na sua casa no Largo da Abegoaria (hoje, largo com o nome artista), em Lisboa, morre aos 58 anos, Rafael Bordalo Pinheiro.
Faz este mês 113 anos. Não querendo deixar passar tal data em branco, dedico-lhe uma despretensiosa crónica, que tem por tema central o exotismo de duas peças de cerâmica da sua autoria representando ambas um animal por quem ele denotava uma particular simpatia: o macaco. Recordemos que em determinado período da sua vida Bordalo teve por companheiro o “Basílio”, um pequeno macaquinho de origem brasileira.
Mas antes de “pegar” nessas peças, deixem-me recordar que está patente no Porto na Galeria Biodiversidades, uma exposição Photo Art’ da autoria do fotógrafo Joel Sartore, que nos apresenta animais exóticos, que se encontram em perigo de extinção e que se torna urgente salvar. Sartore já fotografou mais de sete mil espécies. É uma exposição que merece a nossa atenção, pelo exotismo de alguns destes animais, entre eles: lagartos, lémures, panteras da Flórida, grifos africanos, tartarugas, sapos e chimpanzés de olhar doce…Mas se queremos ver animais exóticos e se não nos for possível ir ao Porto, podemos visitar bem mais perto de nós, em Lisboa, dois macacos surpreendentes, no Museu Bordalo Pinheiro, integrados na exposição intitulada “Formas do Desejo”; esta exposição apresenta cerca de 150 peças, algumas delas nunca expostas, da autoria do Mestre Bordalo; um conjunto de peças únicas, encomendadas ou peças de oferta faz desta exposição uma ocasião impar para tomarmos contato com um espólio surpreendente.
Mas então de que peças/bichos se trata, estes dois macacos totalmente diferentes entre si?
O primeiro macaco que desperta a nossa atenção decora uma “Caixa Macaco com Nêsperas”, em que o primata se encontra encavalitado no cimo da caixa, enquanto segura com ambas as patas uma bela e suculenta nêspera. Não se pense que é um macaco qualquer; não senhor, é um macaco cujo focinho é ladeado por umas exageradas orelhas, que faz com que à primeira vista, pareça que tem umas pequenas asas na cabeça, Não é um macaco de grande porte, mas a sua cauda é comprida, pois envolve a parte superior da caixa, terminando junto a uma outra nêspera, em posição de posse. São frutas frescas, a crer no aspecto viçoso das mesmas. O macaco olha fixamente em frente, como que a mandar uma mensagem: ninguém pense em me tirar a nêspera! O macaco tem uma pelagem acinzentada e se não fosse o medo de ele nos morder, até lhe fazíamos umas festas, porque o pêlo parece-nos ser muito sedoso.
O melhor é deixarmos este macaco de ar filosófico no seu sossego, abraçado à nêspera, e fixarmos a nossa atenção noutro macaco, absolutamente surpreendente.
Este primata, pendurado de uma corda, tem um aspecto invulgar. O focinho não tem pêlo, assim como o rabo e as patas. O seu corpo todo coberto por pêlo encaracolado, deixa-nos aperceber uma estrutura musculada, na base de uma agilidade de movimentos que lhe permite balançar-se pendurado numa corda presa não se sabe onde.
Este macaco é um exemplar único, de que não se sabe a proveniência, nem as razões que motivaram Mestre Bordalo a dar-lhe vida. Será um primo nórdico dos macacos que hoje vivem no parque das Caldas? Um primata-turista em viagem? Um macaco transvertido em época carnavalesca? O mistério mantem-se. Uma certeza temos: só uma grande dose de imaginação e muita arte de modelação é que permitem criar uma peça tão exótica que nos surpreende e nos faz sorrir.
Tanto olhei para este macaco, que às tantas na minha imaginação ele olhou para mim, fez umas macaquices, como que a dizer-me: – gostaste de mim? Olha, também gosto de ti; se te puseres a jeito, encavalito-me nos teus ombros e vamos ambos Campo Grande fora…
Com medo que a promessa se transformasse em realidade, discretamente disse-lhe adeus, e rumei para pátio onde desabafei para o “Polícia de Giro”, que faz guarda de honra à porta: – «olha lá tu ao que eu escapei!»…
As informações que utilizei para vos apresentar estas peças únicas, recolhi-as do catálogo “A Cerâmica de Rafael na Colecção do Museu Bordalo Pinheiro, Formas do Desejo”, um belo catálogo que acompanha a Exposição no Museu, e que convido os meus eventuais leitores a visitarem.
Estou quase a terminar, mas não quero perder a oportunidade de expressar de novo um desejo antigo: encontrar um Bordalo Pinheiro sentado numa qualquer esplanada das Caldas, onde por exemplo, eu pudesse tomar um cafezinho na sua companhia, e trocar meia dúzia de ideias em amena cavaqueira. Para o ano, por esta data? Sonhar é sempre possível…
Isabel Castanheira