Crónica atrasada

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Gazeta das Caldas
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Esta é uma crónica que deveria ter sido escrita no ano passado, 2018. Deve ser da idade, mas os dias, meses e anos voam e quase não damos conta de que ficaram para trás. Tudo isto para explicar o meu atraso na crónica que celebra os 100 anos de 1918, ano da pneumónica, da batalha de La Lys e do armistício da Grande Guerra.
A família da minha avó materna é do Sobral da Lagoa. A avó Sofia, nascida em 1915, era a terceira de quatro filhos, todos pequenos. Em data que não sei precisar, em 1918, o bisavô António Alberto, pequeno agricultor, foi amanhar as suas terras, logo pela manhã. Ao regressar à aldeia ouviu tocar a finados e perguntou-se quem teria morrido. A mulher, Ana, desaparecera em poucas horas, sucumbindo à pneumónica. Ficaram quatro crianças pequenas, que alguns anos depois seriam separadas e entregues a familiares.
Não sei quantas pessoas morreram nos concelhos de Óbidos e Caldas da Rainha, nem sei se existem estudos sobre isto. Em algumas zonas de Portugal desapareceu perto de 10% da população, estimando-se em várias dezenas de milhar o número de vítimas da pneumónica ou gripe espanhola.
Nesse ano, a minha tia avó, do lado paterno, trabalhava em Cascais, como dama-de-companhia, na casa de uma Viscondessa. Gente de grandes posses, tinham um nível de vida muito elevado, vivendo com condições de higiene e conforto pouco habituais na época. Mas a pneumónica não escolhia classes sociais. Ouvi mil vezes a história da Kiki, a filha mais nova da Viscondessa, que amanheceu a arder em febre e morreu horas depois. Ainda conservo um pequeno desenho que deu de presente à minha tia-avó.
Mulher de coragem, essa nossa tia-avó. Voluntariou-se para ir para a Grande Guerra, como voluntária da Cruz Vermelha. E só foi demovida pela sua mãe, minha bisavó Maria Cristina, de quem herdei o nome, que de Óbidos e por carta a proibiu de tal insensatez, nas suas palavras.
Ainda outra história da pneumónica, que cruza com a Guerra. De partida para a Flandres, um jovem mobilizado passou o seu último dia em Cascais com a namorada. Passeio no jardim, beijos entre arbustos, promessas trocadas. O navio que era suposto partir de Lisboa no dia seguinte afinal não saiu naquele dia e o rapaz voltou a Cascais. Mas a namorada também já fora levada pela pneumónica. Restou a saudade.
Histórias tristes de um País pobre. Difícil imaginarmos as condições de vida e de trabalho desse tempo não tão longínquo. Mais difícil ainda imaginarmos a devastação causada por uma pandemia destas e as consequências pessoais, económicas e sociais que teve no nosso País.
Em nossa casa, a Guerra era a primeira. A segunda guerra mundial não era considerada como tal e até me olhava de esguelha a minha avó sempre que eu falava desta guerra como tendo sido grande ou infernal. Na verdade, a participação de Portugal como beligerante, a partir de março de 1916 está muito presente nas nossas memórias individuais, familiares e coletivas. Aqui cabe uma palavra de muita saudade e homenagem ao Luís Manuel Tudella, um grande obidense e estudioso destes assuntos, que preservou e estudou muitos testemunhos desta participação.
Todos os anos, lá em casa no dia 9 de abril se falava na batalha de La Lys, sempre como se tivesse sido na véspera. Por isto, quer queira ou não, em ano redondo ou menos redondo, sempre recordo nessa data a batalha da Flandres e os pobres soldados do Corpo Expedicionário Português, os que pereceram, mas também os muitos que voltaram, mutilados da guerra. E a convicção de que se tratou de uma derrota só comparável a Alcácer-Quibir…
Terminando com uma nota mais alegre, aqui fica o testemunho da celebração, ano após ano, do Armistício, a 11 de novembro. Sempre com uma enorme alegria se falava em casa desse momento ímpar, do final da Grande Guerra, que inaugurou uma era de paz e de esperança no futuro.

 

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