O injusto esquecimento na toponímia caldense (2)

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Carlos Querido
Juiz Desembargador Jubilado

3. A proteção de Salazar
Faz-se referência no citado livro, a uma surpreendente afirmação do Padre Felicidade inserta no livro de José Freire Antunes – A Guerra de África: 1961-197: «Eu era amigo de Salazar. Sempre me respeitou e eu a ele. De tempos a tempos ia aos Jerónimos por motivos políticos e dava-se muito bem comigo. […] Salazar aceitava que eu tivesse as minhas ideias» (p. 45).
Uma paroquiana amiga de Salazar afirma a existência «de uma tácita promessa de Salazar em não permitir que a PIDE importunasse o prior de Santa Maria de Belém. Poderia ser vigiado mas não alvo de represálias» (p. 45).
O testemunho do padre Felicidade confirma a afirmação da sua paroquiana: «E, de facto, nunca fui incomodado pela PIDE antes de Salazar morrer» (p. 45).
Em declarações ao Jornal Ilustrado, o sacerdote caldense reitera a afirmação anterior: «Como cidadão eu não pude deixar de ter uma posição contrária ao Salazar, agora como pároco ele sempre foi cordialíssimo comigo. […] quando a polícia dizia que eu era comunista, ele vinha ter comigo de noite, sem séquito nenhum, e entrava para a sacristia sozinho» (p. 45).
No mesmo sentido vai o depoimento do Padre Abílio Tavares Cardoso, reitor do Seminário dos Olivais: «Por diversas vezes Salazar foi aos Jerónimos para assistir aos concertos que tinham lugar nos claustros do templo […]. Entrava sozinho com o Felicidade, que o levava escondido para uma espécie de tribuna que era só frequentada por pessoas da Igreja» (p. 46).
Num artigo do Catholic Messager, de 20.06.1968, alude-se à proteção de Salazar, referindo como motivação, para além da amizade, razões de estratégia política: «quando lhe disseram que a polícia planeava deter o Padre Felicidade, Salazar terá respondido: ‘Um Bispo do Porto é suficiente’» (p. 119) – (referia-se ao Bispo António Ferreira Gomes, exilado em 24 de julho de 1959 por divergências com Salazar).
Certo é que o Padre Felicidade Alves é preso pela DGS em 19.05.1970, sete meses após a substituição de Salazar por Marcelo Caetano, ocorrida em 27.09.1968, não tendo a PIDE intervindo apesar das várias notas sobre o sacerdote caldense remetidas por Silva Pais a Salazar (p. 104).

4. A falta de ‘condições acústicas’ da Igreja dos Jerónimos
Referem-se no livro citado vários relatórios da PIDE, nomeadamente do ano de 1965, em que o zeloso agente transcreve parcialmente uma homilia, na qual o prior de Belém se indigna contra «a opulência e o fausto em que viveram e vivem Papas e Bispos, denunciando o excessivo luxo das vestes papais e episcopais; demasiado apego ao poder temporal e a conceitos de velhos tempos imperiais, de onde herdaram a equiparação à realeza com as inerentes regalias e homenagens, etc. Tudo isto com absoluto desprezo pelas classes menos protegidas e em confrangedora oposição com a pobreza e humildade pregada por Cristo. Esclareceu então que era pobre e que outra riqueza não desejava senão o prazer de servir a Igreja» (p. 84).
Mais refere o agente da PIDE que a homilia foi gravada, lamentando o facto de a gravação ter ficado indecifrável «porque o templo não oferece o mínimo de condições acústicas para efectuar este género de trabalho» (p. 84).
O relatório termina com a promessa de continuidade da operação de vigilância, informando o relator que «mantendo as indispensáveis precauções, continuará a tentar-se nos próximos domingos conseguir gravação mais perfeita» (p. 86).
Contornando a “falta de condições acústicas”, a PIDE continuará durante largos anos a frequentar as missas do Padre Felicidade Alves a a redigir relatórios das suas célebres homilias.

5. Atividade política após a excomunhão
Afastado da Igreja, o Padre Felicidade Alves lidera o chamado “Movimento GEDOC”, com particular expressão nos célebres Cadernos GEDOC, identificando-se o referido Movimento como “Vanguarda Cristã”, convocando um grupo de cristãos que pretendia «promover o debate e a reflexão sobre a Igreja no contexto do pós-Vaticano II», esclarecendo no seu texto programático que o referido projeto «partiu de uma luta pelo direito à informação […] e progrediu na busca de formas de atuação em conjunto», comprometendo-se os dinamizadores e aderentes «no progresso do mundo, do homem e da fé» (p. 141).
Consta do processo criminal movido pela DGS, que as tiragens dos Cadernos eram de 4.000 exemplares, sendo o próprio Felicidade Alves o elemento de ligação à Tipografia Leandro, onde eram impressos.
À volta do ex-pároco de Belém, com ele solidários, reúnem-se nomes sonantes, apoiantes indefectíveis, como Nuno e Natália Teotóneo Pereira, Francisco Pereira de Moura, Fernando Assis Pacheco, Luís Miguel Cintra, Jorge Silva Melo, Francisco de Sousa Tavares, Sophia de Mello Breyner Anderson, Francisco Sarsfield Cabral, António Alçada Baptista e João Bénard da Costa (p. 131 e 136).
Prestigiado protagonista do “catolicismo progressista”, o Padre Felicidade é figura central num documentário realizado pela RTF, intitulado XXème siècle. L’Église Demain? Au Portugal, emitido em França a partir de 8.02.1971 (p. 133).
Também o New York Times dá atenção ao sacerdote, publicando dois artigos nos quais informa que o Padre Felicidade «desafiou publicamente um tabu nacional ao questionar a soberania de Portugal nos seus domínios coloniais [para além de] acusar o governo de ter destruído as liberdades públicas» (119).

6. A reabilitação pelo Cardeal José Policarpo
Absolvido da excomunhão decretada em 1970, finalmente dispensado das ordens sacerdotais em 22 de maio de 1998, encontram-se reunidas as condições para a celebração do casamento católico do ex-prior de Belém, o que ocorre em 10 de junho de 1998, numa comovente cerimónia presidida pelo então Cardeal José Policarpo,
Na homilia, frente a uma assembleia de cerca de três centenas de pessoas, o cardeal-patriarca interpela diretamente o nubente, dizendo-lhe: «Deu-lhe Deus a graça de perdoar as mágoas que sentia. A Igreja também lhe perdoa as que sentiu a seu respeito. E naquilo que, em algum momento deste processo, ela possa ter ferido a justiça, também lhe pede perdão» (p. 196).
Por carta de 18 de junho, dirigida ao Cardeal Policarpo, Felicidade Alves elogia a homilia proferida na celebração, e declara-se feliz com a reconciliação, vindo a falecer cerca de seis meses depois – no dia 14 de dezembro de 1998, com 73 anos.

7. Texto publicado na Gazeta das Caldas
Entre os muitos textos que deixou escritos, regista-se um de homenagem de Felicidade Alves, aquando da morte de Custódio Maldonado Freitas, publicado na GAZETA DAS CALDAS em 18 de outubro de 1994, que se transcreve parcialmente: «Admirávamos nele o cidadão empenhado num projecto revolucionário a longo prazo, fiel a uma linha de pensamento coerente, isento de qualquer traço de cobardia ou oportunismo, projecto que jamais disfarçava ou atenuava […] sempre activo na defesa dos valores da liberdade e da solidariedade» (p. 170).

8. O reconhecimento da hierarquia, dos colegas e da comunidade
Tornou-se lendária a inteligência do Padre Felicidade Alves, muitas vezes salientada pelos seus inimigos, como ocorre com um alto responsável do grupo Champalimaud: «Apareceu um padre […] que é extraordinariamente inteligente e cativante, que lançou um movimento subversivo. Com as suas ideias conseguirá abrir as portas ao comunismo. Estamos todos muito preocupados» (p. 166).
A hierarquia religiosa, mesmo nos momentos de maior tensão, nunca deixou de reconhecer os méritos do sacerdote caldense.
Quando acede ao pedido de Felicidade Alves, de abandono da docência no Seminário dos Olivais, confessa o Cardeal Cerejeira em carta de 8.12.1955: «muita pena por perder o melhor professor e o superior mais prestigioso e influente» (p. 66).
Um ano após ter tomado posse na paróquia de Belém, perante os elogios da comunidade católica, o Cardeal felicita a qualidade do boletim paroquial, que define como «um primor no género», dirigindo ao seu pupilo uma mensagem de fervoroso apoio: «Grande graça foi para Belém a tua presença como pároco; assim queira Deus que ela continue sempre rica de frutos» (p. 73).
Colhem-se no livro várias referências à qualidade intelectual do Professor Felicidade Alves, aludindo-se à «lucidez da sua inteligência», à «objetividade das suas afirmações», à «honestidade intelectual», ao «espírito metódico e ordenado» (p. 62). ■

(continua na próxima edição)