«periferias da luz» de António Ferra

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Gazeta das Caldas
| D.R

António Ferra retoma neste seu «periferias da luz» os recentes «Já próximo dos Anjos» e «Bluff» num caminho de narrativa em prosa poética. Há na página 63, no capítulo «Luzes periféricas», um verso de Luís de Camões citado em itálico («que para mim bastava amor somente») que pode ser lido como a «chave» deste conjunto de doze sequências poéticas. Esta forma lembra muito Vitorino Nemésio quando lamentava a sorrir «Já não se faz poesia descritiva e é pena». De facto esta poesia de António Ferra «descreve» um mal social não só na paisagem como no povoamento. Temos, por exemplo, o «cheiro a urina», temos um «contentor sem tampa» e um «cartaz de junta de freguesia com instruções de sobrevivência». Mas temos também o lado humano quando um vagabundo a quem deram bons conselhos adverte e reage: «Puta que pariu o Arménio, sabujo de merda, / chulo de gel e sapato bicudo, sabe lá o que é a vida.» Conclusão provisória: temos uma vida breve e uma morte inevitável, só o Amor nos pode resgatar o peso do absurdo.
O ponto de partida do livro é uma viagem: «deixo-me conduzir pelo carro entre ruas repetidas, / portas fechadas no silêncio da uma da manhã, / as cadeiras de um café, empilhadas, presas por uma / corrente igual à que me prende neste bairro / fora de horas.»
Mas este bairro é um lugar de abandono: «Deixaram-me aqui ou fui eu que os deixei? / Para onde foram, para o estrangeiro, emigraram, cortaram-lhes os telefones, as orelhas, os tomates, numa rixa de café? (…) Para onde foram todos?» Ao mesmo tempo também é um espaço de pensar «o sentido da vida e as recordações da infância» e para concluir «O gato parece dizer-me que ainda sou o poeta das noites suburbanas até à manhã seguinte.»
Tudo afinal se pode resumir a uma palavra – crueldade: «A crueldade começa e não se sabe onde vai parar, /uma pessoa pode ser ainda mais cruel do que é, / arreia-se num chavalo sem saber porquê / e depois dá-se-lhe mais porrada e ele continua a sangrar, / o pessoal não sabe onde parar /isso é que é crueldade.» (Editora: Eufeme /Capa: Sérgio Ninguém, Revisão: Jorge M. Telhas)