
Recusaram fazer a guerra colonial e partiram para os países europeus democráticos. Grande parte organizou-se em comités que por vezes até eram rivais, e muitos aderiram a movimentos de extrema esquerda (quase todos maoístas). Depois do 25 de Abril uma grande parte regressou a Portugal.
Pacheco Pereira diz que esta foi uma experiência geracional que marcou o país e sem a qual Portugal não seria aquilo que é hoje.
“A geração que está neste livro é muitas vezes só conhecida pela política, mas o seu impacto na vida social e cultural portuguesa foi muito grande”. O livro a que Pacheco Pereira alude chama-se “Exílios – Testemunhos de exilados e desertores portugueses na Europa (1961-1974)” e foi apresentado na passada sexta-feira, 24 de Junho, no CCC, perante cerca de uma centena de pessoas. Nele se contam 22 histórias de exílio, vividos em França, Bélgica, Holanda, Suécia e noutros países europeus.
O historiador Pacheco Pereira diz que a sua influência na sociedade portuguesa foi muito grande quando puderam regressar após o 25 de Abril Tiveram impacto na universidade, nas artes, na cultura, na medicina e, claro, também na política. E diz que vieram ajudar a preencher alguns vazios na própria academia. Antes a História acabava na Revolução Francesa e a Filosofia morria com Kant. Estes ex-exilados que estudaram nas universidades europeias acabaram “por trazer coisas que não haviam cá”.
Do ponto de vista político, apesar da disseminação de grupos de extrema esquerda em que militavam, tinham, contudo, em comum uma atitude pouco reverencial em relação à União Soviética e ao PCP. Tomaram posição contra a invasão da Checoslováquia, contra a guerra do Vietname e sobre as experiências socialistas nos países do terceiro mundo.
Esta “inteligentzia”, que mais tarde teria um papel importantíssimo no Portugal democrático, tinha no entanto uma militância política revolucionária que hoje, 40 anos depois, parece anedótica porque cheia de episódios pitorescos.
A maioria eram maoístas e Pacheco Pereira, enquanto historiador, fez notar que este livro espelhava uma realidade parcial dos exilados porque é constituído praticamente pelo grupo dos maoístas (movimento ao qual ele próprio pertenceu na sua juventude), sendo o mosaico da extrema esquerda naquela época mais amplo, se juntarmos as tendências trotskistas, comunistas e até anarquistas.
(Fernando Cardoso, presidente da Associação de Exilados Portugueses, explicaria depois que limitou-se a reconstruir a rede de amigos daquela época, desafiando contudo a que “mais mil livros floresçam” sobre este assunto).
Organizados em comités de apoio aos exilados e desertores, estes grupos por vezes entravam em concorrência e competiam entre si através dos seus jornais e boletins escritos em português e editados em vários países europeus.
Para muitos a militância política foi uma questão que só se colocou nos países de acolhimento. Em Portugal, no momento de partir, o que estava em causa era a recusa em fazer uma guerra que consideravam injusta. Pacheco Pereira referiu-se a “um conhecido historiador de direita” que afirmou que naquela altura a escolha do exílio ou da prisão era uma “opção de carreira” com vista a colher frutos no futuro regime democrático.
Classificando tal visão de “absurda”, criticou “a linguagem empresarial e de marketing” associada à palavra “carreira” e explicou que naquela altura ninguém sabia o que iria acontecer no dia seguinte.
“Não se sabia que ia haver uma revolução, a ditadura portuguesa foi a mais longa da Europa Ocidental, maior que a da Espanha, maior que a da Grécia, maior até que as da América Latina porque foi ininterrupta. Portanto, a opção pelo exílio ou pela clandestinidade, eram opções de vida e implicavam sofrimento, separação, dor”. Muitos tiveram que se sujeitar a empregos pouco qualificados e mal pagos, embora seja certo que outros tinham o dinheiro que os pais lhes enviavam e puderam até estudar na universidade.
Mas o sofrimento do exílio, a saudade, a incerteza do futuro eram comum a todos.
Contudo, diz Pacheco Pereira, a opção de recusar a guerra e partir “não era complicada do ponto de vista moral para quem era politizado”.
O conflito entre a memória e os documentos
O orador falou ainda do “conflito” entre a memória e os documentos. A memória é selectiva e é reconstruída, por vezes inconscientemente, pelos participantes dos momentos históricos. Por vezes não coincide com o que está nos documentos, mas compete ao historiador saber usar ambas as fontes para tentar obter a verdade. Ele próprio contou que iria pesquisar página a página informações neste livro para introduzir na sua extensa base de dados.
Questionado pela Gazeta das Caldas se 40 anos era um tempo suficiente para dar à luz um livro com estas memórias, Pacheco Pereira disse que sim, que até já poderia ter sido publicado há 20 anos porque as organizações em que militavam os seus autores desapareceram e eles próprios seguiram os seus caminhos.
O próprio discurso do orador foi muito voltado para dentro, para os antigos correligionários maoístas, partindo do princípio de que estes seriam a maioria na assistência.
Mas não eram, apesar de, na fase de debate, acabarem por só usar da palavra os próprios co-autores do livro ou outros ex-desertores.
Carlos Ribeiro, um caldense que partiu nos anos 60 para a França, contou como era “sedutor” militar na altura na OCMLP (Organização Comunista Marxista-Leninista Portuguesa), associada ao jornal Grito do Povo, devido à vitalidade e às dinâmicas criadas pelos membros daquela estrutura.
Fortunato Cardeira, que era oficial do Exército quando desertou para a Suécia, falou na emoção com que muitos ex-exilados acolheram este livro e saudou o facto de finalmente haver uma associação de exilados políticos portugueses.
Alberto Veríssimo contou como desertou da Marinha Portuguesa quando a fragata em que estava embarcado atracou em Copenhaga e este se pôs em fuga para a Suécia.
Fernando Varela contou histórias pitorescas das redes de falsificações de documentos e da facilidade com que, em Portugal, se corrompiam funcionários para obter favores. E Ana Rosenheim falou no papel esquecido das mulheres nas histórias de exílio, à qual Pacheco Pereira respondeu que, efectivamente, “as organizações de extrema esquerda e o PCP eram machistas. Ponto”.
Comentário
Entre a liberdade individual e o colectivismo totalitário
Na interessante apresentação do simpático livro “Exílos” lançou Pacheco Pereira uma reflexão que ficou perdida no ar e que merece ser aqui retida para aprofundamento, e para ilustrar a nossa história e iluminar o nosso presente.
A deserção, como a objecção de consciência, é/são um acto individual, profundamente inscrito na lógica liberal e também libertária.
Para o Partido Comunista Português, assim como toda a então extrema esquerda (desde logo para a direita era óbvio) a deserção estava longe, muito longe do programa político da revolução democrática nacional, nenhum partido, ou grupúsculo (ainda havia a mitologia soviética da insurreição de soldados e marinheiros, que tinham que lá… estar!), a tinha no seu programa, ou sequer imaginava que os seus militantes pudessem desertar.
A deserção era vista como uma atitude “pequeno burguesa” e individualista que não contribuía para a causa, que passava pela luta dentro do exército colonial, matando ou não os rebeldes… guerrilheiros
As forças armadas e a nação são aliás centrais no épico comunista e da extrema esquerda que tem, ainda hoje, dificuldades em defender políticas de direitos humanos e de defesa do Estado de direito, como sempre defendeu a Amnistia Internacional, que foi também referida nesta sessão.
A deserção, assim como depois do 25 de Abril a regulamentação da objecção de consciência (já para não falar do fim do serviço militar obrigatório), sempre foram anatemizadas pelas forças do colectivismo, em nome da defesa da mitologia e de uma épica nacional, nas fronteiras, hoje e sempre, do nacionalismo mais balofo.
Teria sido e será útil discutir, e a evolução do pensamento de Pacheco Pereira é desde logo uma referência, como a generalidade dos desertores, no quadro do individualismo que representou a sua atitude, ajudaram a moldar a evolução da nossa democracia, e nessa a recusa de caminhos que contrariam o direito e a liberdade individual no quadro da sociedade organizada.
Tema para a continuação do combate. “Ce n’est qu’un debout”, de pé ou sentados… continuemos o caminhar. António Eloy