O título que gostaríamos de dar a este testemunho seria “Morreu um Zé Povinho do séc. XX”, que se arriscaria a colher a condenação de muitos leitores e comentadores, pois seria uma ousadia fazê-lo, mesmo que encontre entre ambas as figuras certas singularidades comuns.
Tal como o Zé Povinho, que também nasceu em Lisboa, teve nas Caldas da Rainha a sua concretização em três dimensões pela mão de Rafael Bordalo Pinheiro, também Mário Soares nasceu em Lisboa e veio para as Caldas da Rainha, onde realizou aos primeiros exames escolares, quando aqui viveu em casa da família Freitas por o pai estar preso nos Açores.
Zé Povinho também não é uma figura pacífica ou de unanimismo, uma vez que transporta consigo, tanto as virtudes do povo português, como os seus defeitos e incoerências.
Mário Soares também, ao longo dos seus 92 anos de vida, coleccionou feitos e defeitos, tendo sido sempre uma pessoa e político controverso, que somou amizades e inimizades, no mundo e no seu país.
Analisado hoje, e basta ouvir os comentários das últimas horas nos media portugueses e internacionais, Mário Soares acaba como uma personagem estimável, mesmo com uma visão e com uma vontade inquebrantável para atingir os seus objectivos, tendo como referências centrais a Liberdade e a Democracia. Mas por outro lado, também podemos encontrar nele os defeitos tão do Zé Povinho, da vaidade, de uma certa presunção e de um convencimento sem limite, que em política, onde foi mestre, também são virtudes.
Provavelmente não cultivou todos os defeitos e virtudes em simultâneo, alternando-os fruto das circunstâncias e dos momentos históricos que viveu, razão pela qual reuniu apoios e sentimentos diferentes nos vários momentos da sua vida.
Como nota pessoal, os primeiros encontros à distância com Mário Soares foram – ainda antes do 25 de Abril – em França, quando este ali estava no exílio depois da deportação em S. Tomé e ia meio anonimamente ao banco onde eu trabalhava em Paris e que era liderado por alguns dos seus compagnons de route, como Vasco Vieira de Almeida, Rui Vilar e Francisco Veloso (este também já falecido).
Recordo uma reunião pública numa sala de cinema do bairro de Montmartre, em que ele compareceu com François Mitterrand, para uma sessão de apoio à causa da resistência portuguesa antes do 25 de Abril. Seria uma sessão típica da época para alimentar o ego da resistência portuguesa ao regime ditatorial e defender para Portugal os valores democráticos que eram comuns na Europa de então.
Depois do 25 de Abril, para além das controvérsias que vivi com um dos ministérios mais autoritário do seu primeiro governo (equipa de Sottomayor Cardia), fui convidado enquanto responsável pelo Supl. Pela Vida da Gazeta das Caldas, na Primavera de 1983, para um almoço num restaurante na Madragoa, onde se reuniram os principais protagonistas da época dos movimentos ecologistas e antinucleares. com o então candidato a primeiro-ministro. Este encontro realizou-se antes da campanha eleitoral para as legislativas daquele ano.
Recorde-se que havia sido o I Governo Constitucional de Soares que fez renascer o projecto da construção em Portugal de uma série de centrais nucleares para a produção de energia, tendo pré-escolhido a região de Ferrel (Peniche) para o efeito. Nessa época a Alemanha Federal havia apoiado politicamente o regime português pós-revolucionário e era uma boa oportunidade para as empresas daquele país instalarem cá algumas centrais nucleares, vencendo a concorrência dos Estados Unidos, França e Canadá para esse efeito, já que o outro produtor de centrais, a União Soviética, estava completamente afastado.
Nessa refeição mantive uma dura discussão com o então candidato a primeiro-ministro, que está testemunhada numa fotografia publicada num vespertino lisboeta, em que Soares se eximia à responsabilidade da política pró-nuclear na década anterior e tentava mostrar uma nova visão mais amiga do ambiente, razão para a realização daquela sessão pré-eleitoral com os ecologistas e antinuclearistas portugueses.
Depois tive outro contacto mais bem simpático aquando da visita em 1987 às Caldas da Rainha, como Presidente da República no seu primeiro mandato, em que fez uma prolongada visita com jantar no CENCAL
De todos estes contactos, que foram poucos e mesmo quase fortuitos, não me permite o conhecimento profundo que outros têm e que o demonstraram à saciedade nos últimos dias, depois da sua morte no passado sábado.
Mas a impressão que me fica reforça a ideia de alguém que esteve à altura dos vários momentos históricos que viveu, e que, com a sua circunstância, respondeu de formas diferentes às realidades com que se confrontou.
Não foi um santo, nem ele próprio alguma vez o desejaria, mas foi um homem importante para o seu país, quer na luta contra o regime autoritário do antes do 25 de Abril, como em muitos momentos posteriores, em que estão determinados vários marcos, como da manifestação da Fonte Luminosa, o apoio à descolonização, a decisão da adesão à CEE de Portugal, e depois e mais recentemente, por várias posições públicas mais ousadas, tanto em relação ao país como aos grandes temas internacionais (Invasão do Iraque, actuação da troika em Portugal, etc.).
Caldas da Rainha, apesar da sua ligação no início de vida através da família Freitas, deve-lhe pouco, porque nunca conseguiu da sua parte alguma atenção, como ocorreu com outras terras em que ele ajudou a concretizar projectos de forte impacto, bastando o exemplo próximo da Nazaré. Certamente a culpa, neste caso, não foi sua, mas sim dos caldenses, que nunca souberam re-conquistar a sua atenção.
Julgo que Mário Soares terá sido o político português mais dotado e reconhecido nacional e internacionalmente na última metade de século passado, encontrando-se nele bem vincado o traço do político que nunca desistiu e que acreditando nas suas convicções mais profundas, se bateu em batalhas que julgou irrecusáveis e que formataram o futuro de Portugal para os séculos mais próximos.
Fecha-se com o seu desaparecimento um capítulo da História de Portugal, ou talvez mesmo, possamos ter aberto agora uma nova dinastia de políticos, que já não têm nada a ver com os primeiros 50 anos da democracia portuguesa.
Ao associá-lo ao Zé Povinho, talvez um pouco provocatoriamente, temos a crença que ele veria isso, se ainda fosse vivo, como um supremo elogio, pois certamente reconheceria a sua identificação com este povo tão tolerante e compreensivo, como desconfiado e reservado, também confiante nalguns amigos, mas enfim, simultaneamente optimista e temente do futuro.
António terá sido o cartoonista que melhor o captou nas suas idiossincrasias, razão pela qual escolhi como imagem nesta despedida, uma das últimas caricaturas que lhe dedicou na série Figurões realizada nas Caldas da Rainha e que capta bem, o seu sentido de humor e a sua dimensão na história recente de um país com nove séculos. JLAS
Depoimento de Custódio Maldonado Freitas ao director da Gazeta das Caldas
Tenho-te em elevada consideração para não deixar de dizer três simples apontamentos sobre o Dr. Mário Soares!
É óbvio que só me debruço na sua faceta pessoal, cívica e familiar.
Como sabes, viveu 2 anos aqui nas Caldas da Rainha em casa de meus Avós que era na Praça da República no edifício onde posteriormente veio a ser o Banco de Portugal e durante esse tempo tirou a terceira e quarta classe na escola primária da antiga Praça 5 de Outubro (antiga praça do peixe)!
Foi o “sexto” filho da minha Avó e porquê?
Devido às relações de amizade e cumplicidade (afinidade) política e partidária entre o meu Avô e o seu Pai, Professor João Soares. Estas duas famílias sempre se deram ao longo de todo este tempo, tão bem, que levou o seu Pai a vir com os alunos do seu colégio (Moderno) para a Foz do Arelho numa colónia de férias durante mais de 25 anos!
Três notas:
O que ele escreveu no Jornal República quando do falecimento do meu Avô, que tinha por título “FOGO SOLTO”!
A vinda já como primeiro-ministro ao enterro da “mãe” Margarida minha Avó!
Quando do funeral do meu Pai, alguém no cemitério lhe perguntou se ele iria falar, ao que disse: “Uma pessoa da Família não fala”!
E, por último, a sua vinda, com a mulher Maria Barroso, à homenagem que a edilidade “fez” a meu Pai!
Conclusão: Guardo um sentimento misto de perda e uma sensação e orgulho de ter privado com esta figura incontornável da nossa recente história e conforto de pertencer e continuar na memória o seu legado, tentando transmitir aos meus as suas virtudes!
Desculpa este desabafo mas estou bastante emocionado!
Bem hajas – o teu amigo
Custódio José Vilela Maldonado Freitas
Mário Soares condecorou o RI5 em 1994

O Presidente da República, Mário Soares, presidiu, a 24 de Abril de 1994, à cerimónia, que decorreu na Escola de Sargentos do Exército (ESE), em que o antigo Regimento de Infantaria 5 das Caldas da Rainha foi condecorado com o título de membro honorário da Ordem da Liberdade, como reconhecimento do carácter eminentemente colectivo da acção realizada em 16 de Março de 1974. Esta instituição recebeu a condecoração enquanto “herdeira e fiel depositária dos feitos e tradições” do Regimento de Infantaria 5.
O conhecido RI 5 foi extinto a 30 de Março de 1975 e dois dias depois, a 1 de Abril, passou a designar-se Centro de Instrução do Quadro Complemento, surgindo a hipótese de todos os Cursos de Oficiais e Sargentos milicianos ali serem ministrados. No entanto, por despacho do chefe do Estado-maior do Exército no final do ano é extinto o Centro de Instrução e, a 1 de Janeiro de 1976, é criado o Regimento de Infantaria de Caldas da Rainha que se mantém até 1981, data da criação da Escola de Sargentos do Exército.
No seu discurso Mário Soares referiu-se à condecoração atribuída àqueles que “se debateram pela liberdade e tiveram a coragem de lutar pelos seus ideais democráticos”, acrescentando que o 16 de Março constituiu um “acto decisivo para restituir a liberdade a Portugal”. G.C. 29-04-1994
“Caldas e a família Freitas estão sempre unidas no meu espírito”
A Câmara das Caldas aprovou por unanimidade, na sua reunião de 9 de Janeiro, um voto de pesar pelo falecimento de Mário Soares. O executivo destaca as suas antigas e intensas relações do histórico socialista com este concelho, nomeadamente com a freguesia da Foz do Arelho. Desde a frequência sazonal da família nesta freguesia nos anos 30, à presença da estância de férias neste local para os alunos do Colégio Moderno durante as décadas de 40 e 50 do século XX, a figura de Mário Soares e sua família estarão sempre marcadamente associadas ao concelho das Caldas da Rainha, refere o documento aprovado pelo executivo. O mesmo refere que a presença de Mário Soares nas Caldas da Rainha ocorre “muito em função do sacrifício por vezes derradeiro que era exigido a todas as famílias com um histórico de luta contra o regime anti-democrático de Oliveira Salazar”. O seu pai, João Soares, foi deportado pela PIDE para os Açores e confiou o acolhimento do filho, então com cinco anos, à família Maldonado Freitas.
O documento refere ainda que Mário Soares manifestou ao longo da sua vida, uma constante disponibilidade para vir às Caldas da Rainha “sempre que se proporcionava uma circunstância propícia a recordar a sua ancestral estima pela cidade e pelos caldenses”. Afirmaria, em 2011, numa homenagem do município a António Maldonado Freitas, “As Caldas da Rainha e a família Freitas estão sempre unidas no meu espírito”.
O município das Caldas da Rainha endereça as mais pungidas condolências à família de Mário Soares, pelo amor que sempre testemunhou por esta terra. “Recordamos o cidadão combativo e perseguido, vencedor e vencido, homem de acção e pensamento convictos, controverso e fulgente, culto e afectuoso que faz parte, de uma forma ou de outra, do grande livro da vida de todos os portugueses”, salienta o voto de pesar.
“Figura importantíssima da nossa democracia”
Em declarações à Gazeta das Caldas, o presidente da Câmara, Tinta Ferreira, disse que Mário Soares “foi uma grande personalidade do país e um homem fundamental no combate pela democracia em Portugal”. O autarca destaca a sua intervenção, numa primeira fase, a combater o regime anterior e, posteriormente, ao defender os ideais democráticos relativamente a um conjunto de iniciativas mais totalitárias que estavam em curso no pós-25 de Abril.
Tinta Ferreira lembrou as suas funções de governante e o papel importante que teve na entrada de Portugal na Comunidade Europeia. “Procurou, da sua maneira, ajudar os portugueses a viverem melhor”, referiu o edil caldense que desde muito novo se habituou a ver o seu trabalho. E, ainda que nem sempre estivesse em sintonia com o que Mário Soares pensava, Tinta Ferreira não deixa de registar que se tratou de uma das figuras mais ilustres da política portuguesa.
O autarca recorda também a sua ligação próxima às Caldas, realçando que fez a quarta classe na escola da Praça do Peixe, na altura em que estava a viver com a família Freitas, e que costumava em jovem passar férias na Foz do Arelho.
A Câmara já lhe prestou uma homenagem em vida, mas o autarca garante que haverá também um “registo póstumo a definir pelo município em reuniões futuras”.
Também a vereadora da Cultura, Maria da Conceição Pereira, reagiu a este desaparecimento, referindo que “morreu uma figura importantíssima da nossa democracia”. De acordo com a autarca, o facto de estarem em partidos diferentes não a impede de reconhecer o valor e a importância que o histórico socialista teve para a consolidação da democracia e para o desenvolvimento do país, nomeadamente na sua integração na União Europeia.
“Penso que é uma grande perda e é uma figura que fica na história de Portugal”, referiu Maria da Conceição Pereira. As suas ligações às Caldas também foram enaltecidas pela autarca, nomeadamente a infância e a ligação à família Maldonado Freitas.
“O seu filho [João Soares] relata muitas vezes que foi na Foz do Arelho que aprendeu a nadar”, recorda, acrescentando que a família Soares tem uma paixão muito grande pela região e muitos amigos nas Caldas da Rainha.
“ Soares é e sempre será fixe!”
A concelhia socialista das Caldas emitiu um comunicado onde torna público o seu pesar e manifesta a sua “profunda tristeza” pelo desaparecimento do fundador do partido. “Mário Soares, foi o maior de todos nós”, refere o comunicado, que o designa também como “pai da democracia e do Portugal Contemporâneo”.
De acordo com a concelhia caldense Mário Soares foi também um amigo próximo de todos os portugueses e, de uma forma muito particular, um amigo das Caldas da Rainha e dos caldenses, cidade que muito apreciava e onde passou longos períodos da sua juventude. “Aqui lhe deixamos pois, o nosso Adeus” e um “Até sempre Camarada”. “Soares é e sempre será fixe!”, conclui.
Fátima Ferreira
Testemunhos
“Umas bochechas mundialmente conhecidas”

O dr. Mário Soares foi um “muso”. Além de ter sido um homem que marcou a vida e a política portuguesa. Esteve sempre na ribalta e, por vezes, teve alguns discursos contraditórios, sobretudo quando se viviam tempos difíceis durante o período revolucionário.
Era também uma figura muito caricaturável. Todo o seu rosto era um convite à caricatura: tinha uns olhos enormes e umas bochechas mundialmente conhecidas.
Ele acabou o seu segundo mandato mostrando caricaturas dele próprio no Palácio de Belém. Não consta que tenha tido problemas com caricaturistas nacionais.
Fiz o seu Figurão que pertence à colecção da Bordallo Pinheiro e ele apreciou muito a peça. Tinha-a em sua casa e divertiu-se com esta sua representação.
António Antunes, (caricaturista)
“Um dos grandes nomes da política europeia do século XX”

O meu testemunho sobre o Dr. Mário Soares dá primazia ao seu conhecimento da história contemporânea, sobre a qual se interessou profundamente. Ele foi, por isso, um dos políticos do século XX mais bem preparados para analisar e entender os fenómenos históricos, as transições políticas e sociais e o papel das grandes personalidades.
No que respeita à história de Portugal, dedicou uma particular atenção ao período da Primeira República, onde estavam as suas raízes políticas familiares. O seu pai tinha tido uma acção proeminente na Primeira República e foi um militante corajoso e determinado da oposição à Ditadura e ao Estado Novo.
De todos os protagonistas políticos do pós 25 de Abril, o Dr. Mário Soares era o que tinha uma leitura mais consistente da experiência da Primeira República e a sua acção foi decisiva, na segunda metade da década de 70, para operar uma espécie de revisão e modernização dos princípios republicanos, neles incluindo agora o princípio da tolerância religiosa e o do estado social, para além do alargamento e aperfeiçoamento das regras da democracia política.
A dimensão cultural da figura de Mário Soares tem sido salientada por diversos comentadores. Nessa dimensão, cabe uma paixão de bibliófilo e uma paixão pela escrita. Eu acrescentaria uma paixão pela história. Esta dimensão fez sem dúvida de Soares uma personalidade política da estirpe dos grandes nomes da política europeia do século XX, como Mitterrand, Willy Brandt, Jacques Delors ou Olof Palme.
João Serra, Historiador
“Como contactei de perto com Mário Soares”

Em 2009 o Presidente da Junta de Freguesia da Foz do Arelho, Fernando Horta, convidou o PH para dinamizar um programa comemorativo do centenário da Escola do Primeiro Ciclo da mesma localidade, uma escola Grandela, em parceria com a Junta de Freguesia e a própria escola. Entre outros acontecimentos, fez parte desse programa comemorativo a inauguração de um busto de Grandela e de uma exposição sobre esse republicano, benemérito da Foz, organizada pelo PH. O convidado de honra, a quem coube descerrar o busto e inaugurar a exposição, foi Mário Soares. Na qualidade de Presidente do PH, convivi de modo muito amigável com Mário Soares nesse dia.
Comecei por lhe dizer que era filha de Cipriano Xavier e ele logo se lembrou do meu pai, já falecido, que estudara no Colégio Moderno, fora colega de um dos seus irmãos e seu contemporâneo de estudos. Logo parecemos ficar amigos, a sensação que tive foi a de que éramos velhos conhecido, nunca tendo faltado assunto entre nós. Ao jantar, no INATEL, alterou todo o protocolo, fazendo questão de que eu ficasse sentada a seu lado.
Poderia dar vários exemplos de temas e histórias interessantes que abordámos nessa longa conversa, mas vou destacar apenas um. No regresso, vim no carro de Mário Soares até às Caldas. Ao passarmos junto da estátua da rainha D. Leonor, contou-me um episódio da campanha presidencial de Humberto Delgado ali passado. Mário Soares acompanhou o candidato às Caldas, tendo-o apresentado aos seus apoiantes locais, e referindo os seus nomes, ia dizendo: “Custódio Freitas, António Freitas, Artur Freitas, João Freitas, novamente Custódio Freitas, Antónia Freitas…”. Humberto Delgado não fez comentários. Mais tarde, quando estavam junto da estátua da rainha, a fim de aí depositarem uma coroa de flores, Humberto Delgado virou-se para Mário Soares e perguntou-lhe: “Então, que rainha é esta? Leonor Freitas?”
Depois desta, encontrei Mário Soares outras vezes, lembrou-se sempre de mim (ou pareceu que se lembrava…) e foi sempre muito caloroso comigo. Era uma personalidade única, irradiante, com a qual senti empatia desde o primeiro instante como se o conhecesse desde sempre.
Isabel Xavier, Professora de História
“Com um sorriso contagiante”

Obviamente que Mário Soares é uma enorme referência da nossa História contemporânea e uma figura incontornável e decisiva para o estabelecimento da Democracia em Portugal. Muito se irá certamente escrever e dizer sobe ele nos próximos dias. Dele recordo, entre outros, um episódio inesquecível. Em 1994, Mário Soares teve a amabilidade de estar presente no lançamento da 1ª edição do meu livro: “Grandela e a Foz do Arelho” que teve lugar nesta localidade. Antes, porém, procedeu-se à inauguração de uma rua com o nome do seu pai – Dr. João Soares – que tivera uma colónia de férias na Foz em meados do século XX.
O então Presidente da Junta da Foz do Arelho trazia um longo discurso manuscrito em muitas páginas e, durante a leitura, atrapalhou-se com a ordem das páginas. Como não conseguia encontrar a sequência certa começou, ainda mais atrapalhado, a falar de improviso. Foi o próprio Mário Soares que veio em seu socorro e, com toda a calma deste mundo pegou nas folhas do discurso, leu-as (sem óculos), ordenou-as e devolveu-as no ponto certo em que antes se encontrava a leitura. Tudo isto com um sorriso contagiante – feliz por ter ajudado – que desencadeou consequentes instantes de descontração / boa disposição. Um momento mágico.
Vasco Trancoso, Médico e Autor
Mário Soares: um testemunho

Mário Soares foi a figura cimeira da História de Portugal da segunda metade do século XX. Depois da militância juvenil no PCP, Soares tornou-se gradualmente uma figura de destaque da chamada oposição democrática, assumiu um papel de relevo na defesa do general Humberto Delgado e veio a fundar o Partido Socialista em 1973.
Regressado do exílio a 28 de abril de 1974, Mário Soares tornou o PS na maior força política nacional e liderou a resistência à deriva totalitária durante o chamado PREC. Nesse sentido, emergiu como a figura liderante da jovem democracia portuguesa, tornando-se primeiro-ministro dos dois primeiros governos constitucionais.
A sua acção e o seu exemplo extravasaram as fronteiras nacionais: o sucesso da transição em Portugal foi decisivo para a Espanha, para o Sul da Europa e para os equilíbrios gerais da Guerra Fria na Europa. O seu papel na Internacional Socialista foi igualmente determinante nos esforços desta organização em promover a democratização da América Latina. O mesmo se diga quanto aos esforços dos socialistas europeus em estabelecer pontos de contacto com movimentos e organizações não-comunistas dos países da Europa de Leste.
Depois de uma nova passagem pelo governo, onde voltou a liderar uma solução política inovadora (o chamado “Bloco Central”), Soares decidiu candidatar-se às eleições presidenciais de 1985. Tratava-se de uma aposta política muito arrojada: os seus níveis de popularidade encontravam-se muito em baixo, depois da política de austeridade que tinha protagonizado no governo. As primeiras sondagens colocavam-no abaixo dos 10%.
Mas Soares persistiu e avançou na candidatura, tendo como objetivo inicial, derrotar os dois outros candidatos apoiados pelas forças políticas de esquerda (Salgado Zenha e Maria de Lurdes Pintassilgo) para assim poder disputar a segunda volta com Freitas do Amaral. A campanha da primeira volta foi muito intensa e, para mim, com 17 anos acabados de fazer, um verdadeiro batismo político.
Curiosamente, o dia de viragem coincidiu com uma visita às Caldas da Rainha do candidato Mário Soares. A meio da manhã irrompeu pela Praça da Fruta e, rodeado pelos seus apoiantes, distribuiu cumprimentos e abraços. Via-se que estava no seu ambiente natural e que “respirava” campanha. Na varanda de um dos edifícios da Praça, ocupara-me durante algumas horas de um equipamento de som, através do qual tínhamos decidido difundir música alusiva à campanha e anunciar regularmente que a chegada de Soares estava para breve. Após a sua chegada, contudo, deixei a música a tocar sem me preocupar que a cassete pudesse chegar ao fim e desci as escadas apressadamente ao encontro daquele que era já na altura o meu ídolo político. Ainda tive tempo de lhe estender a mão e de lhe dizer: “a juventude está consigo”.
Nesse mesmo dia, ao final da tarde, Mário Soares e a sua comitiva foram agredidos na Marinha Grande, naquele que seria, sem sombra de dúvida, um ponto de viragem na campanha eleitoral e o início da sua caminhada triunfal para o Palácio de Belém.
Luís Nuno Rodrigues, Director do Centro de Estudos Internacionais, ISCTE-IUL
Testemunhos de jovens caldenses sobre a morte de Mário Soares
“Foi tudo menos uma figura consensual”
Sou de uma geração que não viveu o 25 de Abril e que apenas estudou o antigo regime em manuais de História. No entanto, retenho que Mário Soares é uma figura incontornável da política portuguesa. Figura essencial não só no combate ao Estado Novo, mas também (e mais essencial ainda) na intermediação de forças e luta contra o comunismo nos tempos quentes pós-revolucionários, que conduziam Portugal a uma espécie de União Soviética. Tendo tido um papel preponderante na luta por uma democracia ocidental, foi também uma figura que muitas críticas gerou nomeadamente na questão das colónias ultramarinas. Criticado por muitos e adorado por tantos outros, foi tudo menos uma figura consensual. Mesmo não me revendo em muitas das suas posições, e achando que muitas vezes se julgou ser um espécie de governante “honoris causa”, opinando com um tom deveras paternalista, possuía uma série de características que deveriam inspirar uma nova geração de políticos: determinação, convicção e acima de tudo coragem.
Paz à sua alma.
Tiago Santos, 22 anos, Caldas da Rainha
Liberdade, Democracia e Desenvolvimento para descrever Mário Soares
Relativamente a Mário Soares, utilizarei simbolicamente as palavras: liberdade, democracia e desenvolvimento.
A liberdade, pois, lutou contra a sua falta no Estado Novo e após da revolução dos cravos. É um concretizador de um valor tão essencial para uma sociedade, que sem ele não poderia estar hoje a escrever um texto de opinião livre sobre um ex-líder político. Em segundo lugar a Democracia, deveu-se à sua voz o sucesso da transição democrática, que culminou 1976 com a primeira Constituição democrática da história de Portugal. E por último o Desenvolvimento, que se inicia com a assinatura de Mário Soares, em 1985 do tratado de adesão do nosso Estado à Comunidade Económica Europeia, a sua voz fez abrir portas a um novo projeto desconhecido, mas promissor, fez abrir portas a projeto de esperança e motivador.
Joana Maria Costa Lopes, 20 anos, Caldas da Rainha
“Soares trilhou um caminho”
Na morte, canonizar, como condenar, é um processo grave e meticuloso, complexo por estarmos perante um homem. Quanto a Soares, político, controlem-se as injustas tendências para o ilibar ou destruir.
Exige-se cuidado com as suposições e ponderação maior que a da facção. Soares trilhou um caminho. Tem responsabilidade no estado das coisas e a sua qualidade pede análise histórica abrangente – a criticar, que se leve às últimas consequências da falência da democracia.
A elegia está para além do pensamento unidimensional que mancha pelos abusos ou exulta pelos feitos. A incoerência é do homem e não o demoniza. O sincero está ao alcance de poucos e não deve ser a batalha campal do momento. Lamento.
Miguel Faria Ferreira, 21 anos, Caldas da Rainha
